Será provavelmente dispensável em uma viagem no futuro acomodar o notebook numa pasta ou mochila – bastará dobrá-lo e enfiar no bolso. Esse avanço tecnológico se tornará realidade quando as telas flexíveis de diodos orgânicos emissores de luz, os chamados Foleds (da sigla flexible organic light emitting device), chegarem ao mercado num futuro próximo. Vários fabricantes de equipamentos eletrônicos, como Sony, Philips, Fujitsu, e grupos de pesquisa no mundo perseguem esse objetivo, entre eles uma equipe de pesquisadores brasileiros do Instituto de Química da Universidade Estadual Paulista (IQ-Unesp), do campus de Araraquara, no interior de São Paulo, e do Instituto Nacional de Metrologia, Normalização e Qualidade Industrial (Inmetro), no Rio de Janeiro. Recentemente, eles desenvolveram o protótipo de um Foled que utiliza um substrato inédito baseado em biocelulose, uma espécie de papel transparente batizado pelos pesquisadores de biopaper, com transparência superior a 90% na região visível do espectro eletromagnético, o que significa deixar passar quase toda a luz incidida sobre ele. O grupo de pesquisadores, que está elaborando um pedido de patente do dispositivo, apresentou a novidade à comunidade científica internacional em dezembro de 2008 por meio de um artigo na revista Thin Solid Films.
Além de computadores de mão, os papéis eletrônicos flexíveis também são esperados para uso em painéis publicitários, revistas e jornais eletrônicos, cardápios de restaurantes e cartazes em lojas, por exemplo. Considerados uma das mais promissoras tecnologias de vídeo e imagem do futuro, os Foleds são uma resposta aos esforços para obtenção de um dispositivo eletrônico que combine as propriedades ópticas do papel, como alta refletividade, flexibilidade e contraste com a capacidade dinâmica das telas digitais convencionais que equipam notebooks, telefones celulares e PDAs, os pequenos computadores de mão usados no comércio e em restaurantes. De início, o substrato mais utilizado para a preparação desses dispositivos foi o vidro, material transparente e com boa resistência mecânica, mas com uma limitação evidente: a dificuldade de se fabricar telas e outros equipamentos flexíveis ou dobráveis, porque o material sofre fraturas com facilidade. A segunda aposta recaiu sobre materiais poliméricos, que permitem a obtenção de sistemas mais leves, flexíveis e portáteis, sem perder a transparência e a resistência necessárias. Diversos polímeros, incluindo o PET, sigla de poli (tereftalato de etileno), acetato de celulose, policarbonato e poliuretano, têm sido usados para a produção de dispositivos flexíveis. O problema é que, além de serem sintéticos ou derivados de petróleo, requerem diversos tratamentos adicionais para gerar um material ideal e, na maioria das vezes, não são biocompatíveis nem biodegradáveis.
As vantagens do substrato baseado em biocelulose criado pelos brasileiros estão relacionadas com o fator ambiental e com o sistema produtivo mais simples, além da matéria-prima renovável. Também chamada de celulose bacteriana (CB), ela é produzida pela bactéria Gluconacetobacter xylinus na forma de mantas altamente hidratadas, com 99% de água e apenas 1% de celulose. Seu processo produtivo não gera resíduos tóxicos ao ambiente como ocorre no método tradicional de produção de celulose. Por ser biodegradável e biocompatível, permite também o uso na fabricação de dispositivos médicos. “Embora possua a mesma estrutura química da celulose de plantas, a biocelulose apresenta, em comparação à sua congênere vegetal, maior pureza, alta cristalinidade e excepcional resistência mecânica”, explica o químico Younés Messaddeq, professor do Laboratório de Materiais Fotônicos (Lamf) do IQ-Unesp.
Na preparação final do papel transparente, os pesquisadores incorporaram um sistema híbrido contendo alumina e siloxano, um tipo de polímero à base de silício, à estrutura microfibrilar das membranas de biocelulose. A adição desses compostos eleva a transparência do biopaper, que saltou de um índice próximo a 40% na região visível do espectro eletromagnético para mais de 90%, diz Hernane Barud, doutorando em química do Lamf. A síntese do material híbrido alumina-siloxano fez parte da tese de doutorado do pesquisador José Maurício Almeida Caiut, que é bolsista de pós-doutorado da FAPESP no IQ-Unesp.
Luz própria
Abiocelulose tem a estrutura de uma rede tridimensional de fios de dimensões nanométricas (medidas equivalentes a 1 milímetro dividido por 1 milhão) – as nanoceluloses – e proporciona um amplo leque de aplicações, que vai da medicina, como substituta temporária de pele em curativos que já estão à venda, produzidos pela empresa Fibrocel, de Londrina, no Paraná, à indústria de alimentos, na fabricação de fibras dietéticas, como a nata de coco, passando por substratos flexíveis para a deposição de Oleds, sigla em inglês para dispositivos orgânicos emissores de luz. A vantagem dos Oleds ante as telas convencionais (plasma, LCDs) atualmente em uso é sua capacidade de produzir luz própria. Sua estrutura baseia-se na colocação de películas orgânicas entre dois materiais condutores. Quando uma corrente elétrica passa por ele, o dispositivo emite luz brilhante, num processo conhecido como eletroluminescência.
O protótipo preparado pela Unesp e Inmetro é baseado na fabricação de Oleds sobre um substrato flexível, o biopaper, e tem estrutura semelhante à de um sanduíche. Ele é composto por uma série de filmes nanométricos com propriedades e funções específicas. O substrato, por sua vez, é composto pela biocelulose, uma camada de material condutor e uma camada de dióxido de silício (SiO2) que tem a função de retirar a rugosidade do papel que interfere na condução elétrica do dispositivo. O material condutor é nesse caso um filme de óxido de índio dopado com estanho, composto que leva o nome de ITO, ou indium tin oxide, material usado na fabricação de telas de cristal líquido.
Na divisão de tarefas, coube à Unesp a criação da biocelulose e do biopaper, enquanto o Laboratório de Dispositivos Orgânicos (Lador) da Divisão de Metrologia Científica do Inmetro ficou responsável pela fabricação e caracterização do Foled. “Uma das missões do nosso laboratório é realizar pesquisas metrológicas de novas tecnologias baseadas em materiais orgânicos, além de apoiar a indústria nacional e outros centros de pesquisa no desenvolvimento e na caracterização de materiais”, afirma Cristiano Legnani, pesquisador do Lador. “Desde 2006 estamos desenvolvendo no Inmetro pesquisas em Oleds sob vidro e também sob substratos flexíveis poliméricos, como poliuretano e polieteremida.”
Corrida ao sucesso
Foi numa visita a Araraquara, em 2005, que o pesquisador Marco Cremona, professor do Departamento de Física da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e chefe do Lador, conheceu as pesquisas relativas à biocelulose conduzidas pelos professores Messaddeq e Sidney José Lima Ribeiro. Desse encontro surgiu o interesse em fazer, em conjunto, o dispositivo flexível. Segundo Messaddeq, o uso de biocelulose para fabricação de Foleds é inédito, embora um grupo japonês do Research Institute for Sustainable Humanosphere da Universidade de Kioto já tenha conseguido desenvolver com sucesso um protótipo que usa um substrato feito com celulose vegetal, embora também não tenha um produto final.
Os pesquisadores Marco Cremona, Cristiano Legnani e Welber Quirino também esperam que a inovação criada por eles possa ser usada em terapia fotodinâmica para tratamento de câncer de pele e outras doenças dermatológicas. O uso de um substrato flexível com propriedades biocompatíveis, como a biocelulose, é crucial para o desenvolvimento dessa tecnologia. No método convencional dessa terapia, um medicamento fotossensibilizante é aplicado no paciente e se concentra no tumor, que recebe um foco de luz (laser ou LEDs), resultando na destruição do tecido lesado. Com o Foled, que seria alimentado por uma pequena bateria, menor que a de um celular, a droga seria incorporada ao dispositivo e este colocado sobre a pele. “Como ele emite luz própria, o paciente poderia ir para casa e desenvolver suas atividades normais, sem precisar ficar na clínica recebendo a luz do tratamento convencional”, explica Legnani.
Os resultados iniciais do Foled de biocelulose foram, segundo Messaddeq, semelhantes aos de dispositivos similares feitos com vidro, mas ainda é preciso reduzir as rugosidades na superfície das membranas de biocelulose e, assim, aumentar a eficiência eletroluminescente do papel eletrônico. Só depois a tecnologia poderá ser repassada à indústria. “A eficiência, entendida como a razão entre a quantidade de energia luminosa fornecida pelo dispositivo e a energia elétrica consumida para isso, e a qualidade devem ser pelo menos comparáveis com as dos dispositivos atualmente no mercado (como as telas de LCD)”, explica Messaddeq, para quem, na previsão mais otimista, os primeiros produtos baseados em Foleds devem estar no mercado em 2015.
Artigo científico
LEGANI, C. et al. Bacterial cellulose membranes as flexible substrates for organic light emitting devices. Thin Solid Films. v. 517, p. 1016-20, Dec. 2008.