No início da década de 1990, quando a geógrafa Ane Alencar começou suas pesquisas sobre meio ambiente, ainda era comum o discurso de que florestas tropicais dificilmente pegavam fogo. “Também se ouvia muito a teoria de que as árvores da região amazônica tinham raízes superficiais e o solo era pobre”, recorda a cientista, que em março se tornou a primeira latino-americana a receber o prêmio Leading Women in Machine Learning for Earth Observation, concedido pela Radiant Earth Foundation, instituição norte-americana que desenvolve modelos de aprendizado de máquina para observação do planeta.
Entregue no Dia Internacional da Mulher, a honraria premia a cada ano 14 cientistas que atuam na preservação do meio ambiente a partir de dados gerados por sistemas de sensoriamento remoto. “É um reconhecimento importante sobretudo por destacar a presença das mulheres na área da tecnologia, em geral dominada por homens”, lembra Alencar, que atualmente é diretora de Ciência no Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), onde coordena as plataformas MapBiomas para o Cerrado e MapBiomas Fogo, ambas voltadas para mapeamento e monitoramento da cobertura e uso do solo no país a partir de dados obtidos por satélites.
Nascida em Belém e atualmente morando em Brasília, Alencar dedicou sua trajetória profissional ao estudo do comportamento do fogo na Amazônia. Foi na graduação em geografia, na Universidade Federal do Pará (UFPA), durante um estágio na Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), que ela organizou sua primeira base de dados – no caso, sobre o solo da Amazônia. “Sempre fui apaixonada por mapas e fiquei fascinada com a oportunidade de gerar essa base de dados espaciais de perfis de solo que ajudou a esclarecer a importância do enraizamento profundo das árvores da Amazônia para manter a floresta sempre verde, inclusive em épocas secas”, conta. No mestrado na área de sensoriamento remoto, concluído em 2000 na Universidade de Boston, nos Estados Unidos, Alencar pesquisou queimadas em paisagens amazônicas. “Naquele período, havia a ideia errônea de que os incêndios aconteciam apenas em ecossistemas mais abertos e adaptados ao fogo, como o Cerrado, por exemplo. Incêndios em florestas tropicais eram percebidos como eventos muito raros”, explica.
Em sua tese de doutorado, defendida em 2010, na Universidade da Flórida, também nos Estados Unidos, investigou o impacto do desmatamento e das mudanças climáticas no aumento da inflamabilidade da floresta amazônica. “Por ser bastante úmida, em uma floresta tropical como a amazônica a presença de incêndios naturais pode ocorrer em intervalos de tempo que variam de 200 a mil anos. Porém, com a intervenção humana, o que se constatou é que essa recorrência do fogo diminuiu para 12 anos em áreas muito fragmentadas da região”, informa a pesquisadora ao lembrar que, nos últimos 36 anos, a cada 12 meses queima-se no país uma área maior do que a Inglaterra, conforme dados obtidos a partir da análise de imagens de satélite entre 1985 e 2020.
A investigação sobre as queimadas levou a cientista a cunhar a expressão “cicatrizes de fogo” para designar áreas florestais atingidas por incêndios.
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