Encontrar um fóssil é parte importante do trabalho de um paleontólogo e talvez a mais célebre, mas, em muitos casos, esse é apenas o primeiro passo de um intenso esforço de interpretação dos ecos de um passado tão remoto que quase não podem mais ser ouvidos. Dois estudos recentes de equipes brasileiras mostram como o uso de imagens tridimensionais, geradas por tomógrafos, pode levar a reinterpretações sobre hábitos e características de fósseis já conhecidos e permite reconstituir digitalmente como devem ter sido os movimentos de animais que viveram centenas de milhões de anos atrás.
Um trabalho de paleontólogos paulistas e fluminenses sugere que uma espécie de crocodilo extinto, descoberto em 2004 em Monte Alto, no interior paulista, tinha hábitos de locomoção terrestre. A hipótese se baseia na análise da anatomia das patas do réptil, que viveu há 80 milhões de anos. Outro estudo, produzido por paleontólogos de São Paulo, Minas Gerais e da Alemanha, reconstrói as estruturas do cérebro de um dinossauro de 230 milhões de anos, encontrado na década de 1990 no Rio Grande do Sul. No trabalho, os autores defendem a ideia de que o animal tinha um pescoço tão ágil que lhe permitia ser basicamente carnívoro, e não estritamente herbívoro, como típico do grupo a que pertencia.
Mais de uma década depois de ter participado da descoberta de fósseis do crocodilo Montealtosuchus arrudacamposi, a paleontóloga Sandra Simionato Tavares, diretora do Museu de Paleontologia de Monte Alto, no interior paulista, reconstituiu as articulações e a musculatura do animal. Em parceria com pesquisadores do Instituto de Radiologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP), ela obteve imagens de tomografia das diferentes partes do fóssil, composto por crânio, vértebras e uma pata dianteira. Essas imagens foram depois trabalhadas por colaboradores no Centro de Tecnologia da Informação Renato Archer (CTI) e no Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS), ambos em Campinas, no interior de São Paulo, e permitiram recriar os movimentos do réptil em um ambiente virtual. O resultado desse trabalho, que contou com a participação de Fresia Ricardi Branco, do Instituto de Geociências da Universidade de Campinas (Unicamp), foi publicado em julho deste ano na revista Cretaceous Research.
“O crocodilo estudado possui algumas características de espécies atuais e outras dos seus ancestrais mais remotos”, conta Sandra. As articulações da mandíbula com o crânio do Montealtosuchus eram semelhantes às dos crocodilos vivos. Porém, o posicionamento frontal das narinas e as órbitas alocadas lateralmente no crânio da espécie extinta são indicativos de que a espécie habitava ambientes terrestres. Por meio de exames de tomografia, os pesquisadores do grupo de Sandra puderam ir além das descrições das características morfológicas do bicho e compreender aspectos de sua biomecânica. Os resultados das análises indicam que a postura das patas do Montealtosuchus era mais ereta do que a de seus congêneres atuais, de vida aquática.
O crocodilo extinto, que media entre 1,30 metro (m) e 1,50 m, pesava de 25 a 50 quilos. A reconstituição digital sugere que as articulações dos ossos da sua cintura escapular e do seu esqueleto apendicular anterior, que auxilia na sustentação e na movimentação corporal, distribuíam-se de modo a permitir que as patas fossem posicionadas verticalmente abaixo do corpo e não ao lado. A reorganização em 3D dos ossos indica que a articulação entre a escápula, o coracoide e o úmero, juntamente com os metacarpos mais comprimidos e próximos uns dos outros, possibilitava ao crocodilo movimentar-se em ambientes terrestres por longas distâncias em busca de presas, sem depender de grandes corpos de água ou de ambientes muito úmidos.
“O entendimento do passado da vida na Terra deve transcender ao simples conhecimento da diversidade de formas existentes”, destaca o paleontólogo Ismar Carvalho, do Instituto de Geociências da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), um dos coautores do trabalho. Para o pesquisador, avaliar a mecânica dos movimentos e a fisiologia desses animais permite aprimorar interpretações ecológicas. “As soluções anatômicas e fisiológicas dos animais traduzem aspectos dos espaços ecológicos em que eles vivem, mas esse conhecimento é limitado pela dificuldade de se extrair mais informações dos fósseis sem danificá-los. As tomografias permitem a modelagem de como a musculatura se inseria e se distribuía no corpo, aspectos dificilmente possíveis de serem avaliados pela simples observação dos registros fósseis”, informa.
Foi graças ao aprimoramento da tomografia computadorizada que pesquisadores da USP de Ribeirão Preto e da Universidade de Munique Ludwig-Maximilians, na Alemanha, conseguiram estudar em detalhes os fósseis de ossos que ficam ao redor do cérebro, o chamado neurocrânio, do Saturnalia tupiniquim. Encontrado em rochas do período Triássico do Rio Grande do Sul, esse é um dos dinossauros mais antigos do mundo. A espécie faz parte da linhagem de dinossauros sauropodomorfos, a mesma dos maiores animais terrestres que já habitaram o planeta, herbívoros pescoçudos de até 40 m de comprimento e 90 toneladas. Diferente de seus descendentes famosos, o dinossauro brasileiro era baixinho. Media cerca de 1,5 m. Além de plantas, também devia comer pequenos animais. A compreensão sobre os hábitos alimentares do animal foi ampliada por meio da reconstituição da estrutura interna do crânio, que permitiu estimar a forma e a dimensão do cérebro e dos outros órgãos que constituem o encéfalo. Dessas análises vieram as evidências adicionais de que os sauropodomorfos mais antigos também deveriam ser predadores.
Em uma reconstituição virtual, os pesquisadores preencheram o neurocrânio fossilizado e perceberam estruturas bastante volumosas, como o flóculo e o paraflóculo, que integram o cerebelo e estão relacionadas ao controle da visão e de movimentos da cabeça e do pescoço do animal. “Estruturas tão desenvolvidas sugerem que ele deveria apresentar um comportamento típico dos predadores, que usam movimentos rápidos de pescoço e cabeça para capturar presas pequenas e esquivas”, diz o paleontólogo Mario Bronzati Filho, primeiro autor do artigo, publicado em setembro na Scientific Reports, com os resultados da análise. Bronzati atualmente faz doutorado na universidade alemã.
De acordo com Max Cardoso Langer, do Departamento de Biologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP) da USP, foi a primeira vez que partes do cérebro de um dinossauro tão antigo foram reconstituídas virtualmente. “Com esse estudo, foi possível ir além na compreensão de hábitos que costumam ser inferidos com base apenas na morfologia dos dentes e de outras partes do esqueleto e que estão intimamente relacionados à evolução da vida na Terra”, diz o pesquisador, um dos descobridores do dinossauro na década de 1990. O paleontólogo Jonathas de Souza Bittencourt Rodrigues, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), também participou do estudo com o Saturnalia.
Para o paleontólogo Sérgio Alex Azevedo, do Museu Nacional da UFRJ, que não participou dos estudos com o crocodilo de Monte Alto nem com o dinossauro gaúcho, o uso de tomografia nas pesquisas paleontológicas não é uma novidade, mas tem se tornado mais eficiente com o desenvolvimento de tecnologias de maior resolução. Esses aparelhos mais sofisticados permitem enxergar além do que os tomógrafos médicos são capazes. No caso dos fósseis, não há a preocupação de controlar rigidamente a radiação empregada nos exames a fim de evitar danos à saúde dos animais, mortos há muito tempo. “Trata-se de uma técnica não invasiva, que não altera em nada a forma do que está sendo analisado, fundamental quando estamos lidando com materiais que estão resistindo à deterioração natural e não podem correr o risco de sofrer danos mecânicos. Com isso, temos acesso a uma série de informações que antes não estavam disponíveis, como estruturas em cavidades internas”, explica.
Projeto
A origem e irradiação dos dinossauros no Gondwana (Neotriássico – Eojurássico) (nº 14/03825-3); Pesquisador responsável Max Langer (USP); Modalidade Projeto Temático; Investimento R$ 1.959.890,17.
Artigos científicos
TAVARES, S. et al. The morphofunctional design of Montealtosuchus arrudacamposi (Crocodyliformes, Upper Cretaceous) of the Bauru Basin, Brazil. Cretaceous Research. 11 jul. 2017.
BRONZATI, M. et al. Endocast of the Late Triassic (Carnian) dinosaur Saturnalia tupiniquim: implications for the evolution of brain tissue in Sauropodomorpha. Scientific Reports. v. 7, 11931. 20 set. 2017.