O esqueleto de uma ave desdentada, com olhos grandes encaixados em um crânio alto e redondo, pode ajudar a solucionar um mistério que ronda a paleontologia mundial: como o cérebro das aves evoluiu.
Há décadas, os paleontólogos buscam fósseis bem preservados de um grupo muito diverso e extinto chamado Enarntiornithes, que viveu nas Américas, na Europa e na Ásia entre 130 milhões e 66 milhões de anos atrás, na mesma época que os dinossauros.
A partir de escavações pelo planeta, os cientistas descobriram como era a anatomia da ave mais antiga do mundo, do gênero Archaeopteryx, e de outros ancestrais, como Hesperornis. Mas a aparência dos parentes mais próximos das aves atuais nunca foi bem compreendida, porque os esqueletos são em geral destruídos por ação de carnívoros, transporte pela água, ventanias ou enxurradas e exposição à luz solar e chuva.
Um pequeno crânio encontrado ao lado de um esqueleto quase perfeitamente articulado em um sítio paleontológico no que hoje é o município de Presidente Prudente, interior de São Paulo, pode ajudar a resolver o dilema, segundo um artigo publicado esta semana (12/11) na revista Nature.
O esqueleto era de uma espécie batizada como Navaornis hestiae e viveu entre 83 milhões e 72 milhões de anos atrás. Apesar do tempo, a ossada foi tão bem preservada por fatores naturais que os paleontólogos conseguiram estudar, além das características ósseas, o formato de algumas estruturas do cérebro do animal.
“A preservação é surpreendente”, avalia o paleontólogo Ismar de Souza Carvalho, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), um dos autores do estudo. “Provavelmente os ossos foram soterrados rapidamente após a morte do animal, reduzindo as chances de outros fatores destruírem o esqueleto”, aponta.
O fóssil é uma exceção internacional. “As aves desenvolveram um grau muito alto de pneumatização [ossos mais ocos], o que torna os ossos mais leves, mas também mais difíceis de serem preservados”, explica, a Pesquisa Fapesp, o paleontólogo português Silvério Figueiredo, do Instituto Politécnico de Tomar, em Portugal, que não participou da pesquisa. “Em Portugal, com exceção de alguns dentes de Archaeopteryx, não existem fósseis de aves do Mesozoico. Fósseis contemporâneos a N. hestiae são muito raros”, afirma Figueiredo, que é especialista em aves ancestrais.
Os paleontólogos fizeram um desenho interpretativo do crânio, submeteram os ossos a uma tomografia computadorizada e concluíram a análise com uma reconstrução tridimensional dos ossos da cabeça do animal, com detalhes suficientes para inferir como era seu cérebro. São métodos que apenas recentemente passaram a contribuir para a paleontologia brasileira, que ajudam a desvendar a estrutura dos animais antigos. “A reconstrução 3D e a tomografia computadorizada são métodos fiáveis e importantes para a paleontologia e para a expansão do nosso conhecimento sobre a vida de organismos do passado”, defende Figueiredo.
Depois dos exames, os pesquisadores compararam o grau de expansão de estruturas cerebrais de N. hestiae com o de espécies de dinossauros (dos quais as aves descendem) e do gênero Charadrius, existente até hoje e representante do grupo Neornithes, como são chamadas as aves modernas. As descobertas surpreenderam pela combinação de características das aves atuais e ancestrais.
A falta de dentes (diferente de aves ancestrais, que tinham arcadas dentárias na parte de trás do bico ou em toda a estrutura), o tamanho e a altura dos olhos e crânio, o formato do labirinto ósseo e o grau de flexão cerebral são bem parecidos com as aves atuais, apesar de o labirinto de N. hestiae ser maior. Por outro lado, a nova espécie também tem características similares às das aves primitivas que surgiram antes na história evolutiva, como dos gêneros Archaeopteryx e Gobipteryx: a grande maxila, o palato, o pequeno cerebelo (parte do cérebro responsável por coordenar movimento e equilíbrio) e um telencéfalo (maior parte do cérebro, responsável pela cognição) pouco expansivo.
“Navaornis fornece informações há muito procuradas sobre detalhes da morfologia craniana e endocraniana das aves primitivas. É uma descoberta que permite entender como e quando ocorreram os processos evolutivos e até mesmo da neuroanatomia, que conduziu à origem das aves modernas”, diz Carvalho. Os pesquisadores também explicam que, apesar de N. hestiae ser contemporânea de gêneros já conhecidos, como Hesperornis, a nova espécie não é evolutivamente tão próxima das aves atuais. “É essa lacuna, ainda muito grande, que N. hestiae ajuda a preencher”, defende o paleontólogo Rodrigo Santucci, da Universidade de Brasília (UnB), o outro autor brasileiro do artigo.
Para Figueiredo, “a análise do crânio de N. hestiae realmente permite lançar novas luzes sobre a evolução das aves primitivas e suas relações com grupos atuais”. “Esse novo material mostra que a evolução do sistema nervoso das aves é bem complexa”, pontua Santucci. “Por exemplo, o labirinto de N. hestiae, que é bem parecido com o de aves modernas, é uma estrutura importante, que diz muito sobre o senso de orientação e capacidade auditiva do animal.”
Apesar disso, nem todas as perguntas estão respondidas. “Não sabemos se essas características estavam presentes no ancestral comum das aves modernas e das Enantiornithes ou se surgiram duas vezes na evolução desses organismos”, diz o paleontólogo da UnB. A resposta para essas perguntas vai depender da sorte dos paleontólogos em novas escavações.
Artigo científico
CHIAPPE, L. M. et al. Cretaceous bird from Brazil informs the evolution of avian skull and brain. Nature. On-line. 12 nov. 2024.