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Itinerários de pesquisa

Geógrafo investiga como países do Sul global podem articular redes de cooperação

Jorge Mortean morou no Irã, onde fez mestrado e aprendeu persa, língua oficial daquele país

Mortean no campus Butantã da USP

Léo Ramos Chaves / Revista Pesquisa FAPESP

Na infância eu passava horas destrinchando mapas. Gostava de localizar as fronteiras dos países, os rios, os desertos. Um pouco mais velho, me interessei pela aviação. Daí pesquisava sobre as capitais brasileiras e desenhava novas rotas de voos. Um dos meus passeios preferidos era ir com meu pai ao aeroporto de Congonhas, em São Paulo, cidade onde nasci e cresci, fotografar os pousos e decolagens. Mas nunca pensei que poderia estar em um daqueles aviões e que no futuro iria estudar e trabalhar em outro país.

Já adulto, morei no Irã entre 2009 e 2012. Além do persa, língua oficial do país, aprendi que, assim como o Brasil, esse país do Oriente Médio apresenta grandes contrastes. Trata-se da 18ª maior economia do mundo, alimentada pelas vastas reservas de petróleo e de gás natural, mas essa riqueza não se reflete na renda média da população. Apesar da dependência do petróleo, o Irã tem buscado diversificar sua economia por meio de investimentos em setores como agricultura e turismo. Também tem intensificado as relações comerciais bilaterais.

Meu interesse pelo Oriente Médio surgiu no início da graduação em geografia, que cursei entre 2002 e 2008 na Universidade de São Paulo [USP]. Fui impactado especialmente pela disciplina sobre regionalização do espaço mundial, do professor André Martin. Nela estudamos os processos de divisão do mundo a partir das características naturais, culturais ou econômicas, visando facilitar análises e o planejamento de políticas públicas.

No segundo ano, fui aceito como pesquisador no Laboratório de Geografia Política [Geopo], em que ele é um dos coordenadores. No trabalho de conclusão de curso, analisei a estratégia do Irã e do Qatar para driblar o domínio do dólar no comércio mundial de petróleo.

Semanas após ter concluído a graduação, em 2008, soube que o Ministério de Relações Exteriores do Irã estava buscando um estudante recém-graduado interessado em fazer mestrado sobre assuntos contemporâneos iranianos. Fiz a inscrição e fui escolhido entre os 75 candidatos brasileiros.

Viajei para Teerã em 2009. Não tive grandes dificuldades de adaptação, mas alguns estranhamentos foram inevitáveis em se tratando de um regime autoritário. A internet é censurada de modo geral e a Sharia, ou lei islâmica, base do sistema jurídico iraniano, impõe uma série de restrições sociais, criando contrastes. Por exemplo, homens e mulheres frequentam escolas separadas, mas os cursos superiores são mistos. Além disso, as mulheres podem estudar e seguir qualquer profissão, mas não podem frequentar um estádio de futebol ou cantar em público.

A despeito disso, penso que tive a sorte de participar da última edição do Programa de Mestrado em Estudos Regionais do Oriente Médio, da School of International Relations, financiado pelo governo iraniano. Ministrado em inglês, o curso tinha uma estrutura parecida com o de formação dos diplomatas iranianos. Por isso, oferecia uma visão ampla do Irã por meio de disciplinas como história, geografia e relações internacionais.

Na pesquisa de mestrado, fiz uma análise comparativa das relações comerciais entre o Brasil e o Irã em dois momentos: a década de 1970 e os anos 2000. Busquei entender como o regime político e o cenário internacional impactaram o perfil do comércio entre os dois países. Enquanto o Irã enfrentava uma revolução teocrática que gerou um isolamento comercial, o Brasil vivia o “milagre econômico”, marcado entre outros fatores pela chegada de multinacionais ao país e pela aceleração da urbanização. Ao longo de 30 anos, houve uma inversão na balança comercial entre os dois países, com superávit para o Brasil por causa da exportação para o Irã de produtos agrícolas, principalmente soja e milho.

Arquivo pessoalEm 2010 na praça Naghsh-e Jahan, em Esfahan (Irã)Arquivo pessoal

O estudo do persa em sua forma mais clássica era uma disciplina complementar na grade do programa. De origem indo-europeia, a língua confere ao país uma identidade única em relação aos países vizinhos, que compartilham uma herança cultural árabe. Segui estudando o persa, mesmo após concluir a disciplina, dessa vez em um instituto de linguística ligado à Universidade de Teerã. Com o tempo adquiri fluência no idioma, incluindo o persa mais coloquial.

Durante o mestrado, fui convidado em 2010 pela embaixada brasileira em Teerã a ajudar nos preparativos da visita ao Irã do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e um grupo de 200 empresários de vários setores. Um dos objetivos da comitiva era ampliar o comércio com aquele país.

Essa experiência acabou resultando em outro convite pouco depois, quando eu já tinha finalizado o mestrado. Dessa vez, era para assumir uma vaga permanente na embaixada como assistente de promoção comercial. O trabalho envolvia uma série de ações para fortalecer as relações bilaterais, como a realização de encontros entre empresários brasileiros e iranianos.

No período, pude colocar também em prática meus conhecimentos de comunicação. Sou formado em publicidade e propaganda pela Faap [Fundação Armando Álvares Penteado]. Fiz essa graduação entre 2001 e 2004 pela manhã, enquanto cursava geografia à noite. Um de meus sonhos de adolescente era ser redator publicitário. Após concluir a graduação, cheguei a trabalhar por um tempo na área, mas não me adaptei.

Em 2012, retornei ao Brasil para ficar perto da minha família. Precisava ajudar minha mãe a cuidar da minha avó materna, que, naquela altura, estava em estágio avançado de Alzheimer. Ela morreu no ano seguinte.

De volta ao país, trabalhei como docente no ensino superior privado e ministrei aulas de relações internacionais, inclusive na Faap, onde tinha estudado publicidade. Em 2021, fui aceito no Programa de Pós-graduação em Geografia Humana da USP. Uma bolsa da Capes [Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior] viabilizou minha dedicação integral à pesquisa de doutorado. Parte dela foi feita no Indian Ocean World Center [IOWC], no Canadá, onde hoje sou pesquisador associado.

Intitulada “Ilhas Maurício: A encruzilhada meridional brasileira no oceano Índico”, a pesquisa é baseada na teoria meridionalista, elaborada pelo professor Martin, da USP, que orientou o trabalho. Ela propõe a criação de um comitê do Sul, composto por potências regionais como Brasil, Índia, África do Sul e Austrália, para articular uma agenda comum e redes de colaboração econômica, política, tecnológica e militar.

Na pesquisa, a partir de uma análise das Ilhas Maurício, defendo que o aprofundamento das relações entre o Brasil e esse país poderia fortalecer a presença brasileira no oceano Índico. Isso ajudaria a consolidar uma agenda meridionalista para o século XXI.

Defendi minha tese em abril de 2025. Neste segundo semestre, serei um dos professores do curso de pós-graduação lato sensu Geopolítica do Mundo Contemporâneo, ministrado on-line pela PUC-MG [Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais]. Estou animado com esse novo desafio.

A reportagem acima foi publicada com o título “Caminhos pelo mundo” na edição impressa nº 354, de agosto de 2025.

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