Imprimir PDF Republicar

Humanidades

Gesto Inacabado desvenda tessitura da criação

Gesto Inacabado desvenda tessitura da criação

As pesquisas de processos criativos, sobretudo as que se desenvolvem sob a égide da Crítica Genética, ganham importante ferramenta teórica com o livro Gesto Inacabado, Processo de Criação Artística , lançamento da editora Annablume, com o apoio da FAPESP. Escrito pela professora doutora Cecília Almeida Salles, o trabalho revela uma pesquisadora em plena maturidade no seu território de investigação e oferece, tanto ao público especializado quanto ao leigo, subsídios para que se mergulhe no caótico mundo da produção de linguagens com indicadores mais precisos.

Vinculada ao Programa de Pós-graduação em Comunicação e Semiótica da PUC de São Paulo, Cecília Salles implementou o Centro de Estudos de Crítica Genética, reunindo pesquisadores de áreas distintas. Essa diversidade, associada a reflexões permanentes, rendeu à autora rico material que, associado à sua bagagem de refinada perspicácia, estabelece as bases para vôos teóricos de primeira linha.

A Crítica Genética nasceu na França do final da década de 1960, a partir de problemas metodológicos que pesquisadores encarregados de organizar manuscritos literários enfrentaram. Já nos anos 80, esse tipo de pesquisa desenvolve-se no Brasil, dando continuidade a seu caráter inaugural, ou seja, detectar nos manuscritos deixados por escritores pistas que possam dar conta de particularidades e generalidades do processo.

Figurando entre os pioneiros nas pesquisas de Crítica Genética no país, Cecília desencadeou pelo menos dois saltos nessa área. Primeiro, deu substância teórica aos estudos, resultado de frutífero encontro com a semiótica de C.S. Peirce. Depois, ampliou a área de investigação, antes restrita aos manuscritos literários, para produções inventivas de toda e qualquer mídia, inclusive as mais recentes, que se expandem juntamente com os computadores. Através desse enfoque, o conceito estrito de manuscrito deixa de fazer sentido e é substituído pelo de “documentos de processo”, que são todo e qualquer registro material do processo criador, independentemente das linguagens em que se inscreve.

Os resultados de tais iniciativas encontram, agora, uma síntese neste livro. Cecília, na apresentação, já define um dos pilares da Crítica Genética, que é a busca dos meandros da criação através dos rastros ou marcas deixadas pelos artistas durante o processo. Ou seja, estamos diante de uma proposta que enaltece uma espécie de materialidade da criação, cuja natureza é totalmente avessa aos postulados subjetivos ou movidos por epifanias que o senso comum alardeou sobre as obras de invenção.

Na primeira parte, Cecília oferece uma contribuição original para a Filosofia da Arte com o que chama de Estética do Movimento Criador. Segundo ela, ao narrar a gênese da obra, o pesquisador pretende tornar o movimento legível e revelar alguns dos sistemas responsáveis pela sua geração. E esses sistemas pautam-se por um caráter processual, pelo qual “as obras estão sempre num fazer”. Nesse sentido, o pesquisador “emoldura o transitório”.

A intervenção do acaso no ato criador ganha relevância, mas com outras tintas. Cecília lembra que o artista, envolvido no clima de produção de uma obra, passa a acreditar que o mundo está voltado para sua necessidade momentânea e seu olhar transforma tudo para seu interesse. Existe uma “lógica” do acaso quando se pensa no processo criador ativado em sistemas mais amplos.

As tensões do movimento criador também são contempladas nessa parte do trabalho, tensões essas que a autora vislumbra como pólos opostos de naturezas diversas e que agem dialeticamente um sobre o outro, mantendo o processo em ação. Dessas idéias desenhadas por Cecília emana uma interessante afinidade com as chamadas “teorias da complexidade”, que falam de sistemas dotados de incrível capacidade auto-organizativa, apesar do forte teor de caoticidade em que se articulam. Há, portanto, na perspectiva de criação que o livro projeta, ecos do que formulam pensadores de ponta neste final do século XX, como Edgar Morin e Ilya Prigogine.

Na segunda parte, a autora propõe algumas “abordagens para o movimento criador”, das quais se destaca o conceito de “ação transformadora”. Ela defende a idéia de que o percurso criativo observado sob o ponto de vista de sua continuidade “coloca os gestos criadores em uma cadeia de relações, formando uma rede de operações estreitamente ligadas”. O ato criador, nesse ponto de vista, é classificado como um processo inferencial.

Ao caracterizar o movimento criador como complexa rede de inferências, a autora contrapõe-se à idéia de que a criação é uma inexplicável revelação sem história ou uma descoberta que surge na forma de geração espontânea. O interesse do pesquisador, entretanto, deve recair na tessitura dos vínculos exibidos pelo processo inferencial. Segundo Cecília Salles, “a criação como processo de inferência mostra que elementos aparentemente dispersos estão interligados; já a ação transformadora mostra o modo como um elemento inferido é atado a outro”.

Em outro ponto alto de suas reflexões, Cecília enaltece o percurso organicamente intersemiótico do ato criador, em que pese a linguagem específica de cada objeto construído. Ou seja, há uma confluência de manifestações organizadas nas linguagens mais diversas que, em um processo ininterrupto de apropriação e tradução, ganha tintas especiais e originais na obra projetada.A autora também propõe um conceito de verdade artística, cuja natureza reside no trajeto do artista em direção à obra, delimitando, dessa forma, o que de fato interessa à Crítica Genética: a construção, o processo em que a obra definitiva se encerra, e no qual as marcas apontam para uma semiose sem fim. Isso porque, ao entrar em circulação, a obra desencadeia novos processos tradutórios para o mesmo artista na busca de sua poeticidade máxima, ou para outros.

Gesto Inacabado , portanto, oferece rico painel para se pensar a produção de signos nas mais variadas linguagens. Tudo isso através de um texto que, mesmo com rigor acadêmico, revela uma autora de elegante fluência, que mescla pitadas de jornalismo com o ensaio, num resultado delicioso.

Ronaldo Henn é Jornalista, professor da Unisinos (RS) e doutorando em Comunicação e Semiótica na PUC-SP

Republicar