Gilberto Freyre está na moda? É o que parece. Uma das manifestações mais visíveis da “badalação” em torno do autor é a recente reedição de parte significativa da sua obra. No universo acadêmico brasileiro também verificamos a elaboração de numerosas teses acerca de seus escritos. Críticos literários, sociólogos, antropólogos e historiadores ocupam-se em compreender as idéias do polêmico pernambucano.
A pergunta que segue esta constatação é inevitável: por que esse repentino interesse por Gilberto Freyre? A leitura dos artigos de Gilberto Freyre em quatro tempos pode nos ajudar a responder a esta indagação. O livro contém uma amostra significativa dos trabalhos sobre o autor que estão sendo desenvolvidos hoje no Brasil. Os textos que o compõem foram apresentados na VII Jornada de Ciências Sociais realizada pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), de Marília, em novembro de 2000.
Nas páginas deste livro, o que vemos são alguns dos melhores especialistas de diversas áreas de conhecimento reinterpretando tanto os escritos mais consagrados quanto os menos conhecidos de Freyre. Procuram reconhecer suas influências e diálogos, chamam a atenção para determinados fatores explicativos explorados pelo sociólogo, investigam a recepção de suas obras, decifram conceitos, apontam paradoxos. Os textos representam muito bem o fenômeno recente de reavaliação crítica da obra de Freyre. Segundo os organizadores do livro, é possível finalmente (agora que estamos mais distantes das polarizações ideológicas) que a interpretação da obra de Freyre seja mais criteriosa.
Por trás da variedade de temas e abordagens dos artigos (que atestam a complexidade do sociólogo que é objeto das análises), percebe-se um esforço para identificar a contribuição de Gilberto Freyre para revelar (e, em alguns casos, ocultar) os processos sociais no Brasil. Destaco um dos artigos que é particularmente representativo disso: o de Jessé Souza, cujo título emblemático é A atualidade de Gilberto Freyre.
O autor deste artigo propõe uma leitura alternativa de Casa-Grande & Senzala e Sobrados e Mucambos. Para isso, lança mão de uma estratégia interessante: a de usar os dados descritos nas obras contra os argumentos do próprio Freyre. Deseja, assim, extrair uma contribuição para o entendimento das razões pelas quais não existem na sociedade brasileira cidadãos, mas apenas subcidadãos ou supercidadãos.
Em primeiro lugar, Souza chama a atenção para a singularidade da sociedade colonial brasileira, marcada por uma forma peculiar de escravidão caracterizada por uma identificação (socialmente condicionada) dos escravos com os valores e a vontade do senhor. Este fenômeno permitiu, entre outras coisas, que no Brasil escravocrata negros fossem feitos feitores ou capitães do mato (situação impensável na escravidão norte-americana).
Em seguida, Souza busca caracterizar o processo de modernização brasileiro. Constata que o Estado racional e o mercado capitalista foram instituições que, embora tenham ferido de morte o patriarcalismo, não foram capazes de criar a homogeneização das condições e oportunidades sociais.
É que, segundo Souza, uma continuidade do passado colonial dificultou a formação de uma ideologia igualitarista no Brasil: a escravidão. Ela instituiu aqui um padrão perverso de inclusão e exclusão social. Por um lado, arremessou toda uma classe social – a dos escravos – para fora da função produtiva. Por outro, criou um mecanismo de regulação da ascensão social, garantindo-a apenas para aqueles que se identificavam com os valores dominantes.
Esta discussão empreendida por Jessé Souza (cujo conteúdo apenas sugerimos) revela a fecundidade da reflexão sobre a obra de Freyre para a compreensão do Brasil contemporâneo e responde por que, afinal, o interesse pela sua obra.
Simone Meucci é mestre em Sociologia, doutoranda em Ciências Sociais pelo IFCH/Unicamp e membro do Centro de Estudos Brasileiros (CEB/Unicamp).
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