A cada página da leitura do livro publicado pela Editora Ouro sobre Azul em parceria com a FAPESP, organizado por Franklin de Mattos e Sergio Miceli, mais se fortalece uma impressão inteiramente confirmada ao final: Gilda de Mello e Souza teria gostado muito deste livro. Não simplesmente porque ele seja uma homenagem a ela, mas porque é, de fato, muito mais do que isso. Ela tomaria do livro antes os assuntos do que a sua própria figura, aqui de corpo inteiro, e sobre eles discorreria entre encantada e distanciada. E o faria com o rigor e a discrição característicos da grande intelectual que, do mais miúdo ao mais complexo, da observação mais cotidiana à reflexão mais elaborada, procurava sempre pelos fios retos e enviesados que se cruzam nas tramas dos tecidos, das roupas e seus usos, dos modos de ler, escrever, fazer cinema e pintura ou, para ser definitiva, de enfrentar a vida.
O livro fala de Gilda e também de cada um dos seus interlocutores, pois é o que eles continuam sendo. De um modo ou de outro e de muitos modos em cada um deles, a convivência com os ensaios, livros, e com o jeito muito próprio com que a professora de estética do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo se integrava na sua geração fizeram parte de sua formação. Os enfoques escolhidos e as obras comentadas, as análises que essas obras instigam, as histórias particulares que guardam sempre um sentido que vai além do caráter episódico meramente biográfico deixam claro o lugar de Gilda para os interlocutores. E os ensaios debruçados sobre seus interesses, métodos, resultados críticos e produção de contista dão conta, na verdade, do que ela ainda tem a ensinar.
É duplo, portanto, o privilégio do leitor em cada um dos textos deste belo volume que, no conjunto, traça uma história comum (e também diferenciada), que tem a presença irradiante de Gilda reunindo Bento Prado Júnior, Marilena Chaui, Walnice Nogueira Galvão, Otília Fiori Arantes, Paulo Eduardo Arantes, Heloisa Pontes, Joaquim Alves de Aguiar, Vilma Arêas, Ismail Xavier, Eduardo Escorel, Roberto Schwarz, Davi Arrigucci Jr., Modesto Carone, Nelson Aguilar, José Miguel Wisnick, Laura de Mello e Souza, e trazendo uma entrevista que concedeu a Nelson Aguilar. “Nossa mestra de estética”, resume Bento Prado Júnior.
Tal como o livro nos mostra, enfatizo sua tarefa formativa muito maior do que a permitida pelo contato institucional e acadêmico junto aos alunos, amigos e a quem conviveu com ela. Tarefa que vinha do empenho vital também exigido pelos seus ensaios, e que se mantinha inteiro em conversas onde ela dava a ver seu espírito de indagação constante e permanente, sua disponibilidade para compartilhar a mescla decantada de experiência pessoal, profundo enraizamento no particular brasileiro e atenção às teorias e histórias da arte que ajudassem a compreendê-lo melhor. A consideração dos conteúdos inalienáveis da forma permitiu que Gilda desse conta de modo preciso, abrindo conversas que por certo virão e entre outras questões da maior importância, do período de formação da pintura brasileira, da negatividade dilacerada de Macunaíma, do lugar da mulher no mundo da produção e da arte ou, ponto dos mais altos, dos impasses do cinema nacional.
Para quem não a conheceu, além de tudo o que ela escreveu e dos diálogos abertos neste volume instigando ainda outros, fica a belíssima imagem de Gilda aqui referida por Heloisa Pontes, na entrevista concedida a Carlos Augusto Calil e disponível como extra no DVD do filme de Luchino Visconti, Violência e paixão.
Salete de Almeida Clara é professora livre-docente da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (USP) e doutora em Teoria Literária e Literatura Comparada (USP)
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