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Epidemiologia

Gripe aviária pode ser transmitida entre mamíferos

Estudo brasileiro sugere propagação do vírus H5N1 em leões-marinhos na América do Sul

Leão-marinho em Santa Catarina: risco de mortalidade por gripe aviária

PMP-BS/Univille

A morte recente de leões-marinhos-da-patagônia (Otaria flavescens) no litoral catarinense em decorrência do vírus da influenza A (H5N1), acende um alerta entre pesquisadores e autoridades de saúde pública. Um estudo publicado no início de julho, na revista científica BMC Veterinary Research, traz evidências de adaptação do vírus da gripe aviária aos mamíferos, com possibilidade de transmissão dentro da espécie.

“Esse vírus encontrado nos leões-marinhos pode conseguir, pelos marcadores moleculares que identificamos, se ligar a receptores de mamíferos e de aves”, destaca a veterinária Helena Lage Ferreira, da Universidade de São Paulo (USP), uma das autoras do trabalho. “Essa é a grande preocupação, porque o vírus está cada vez mais adaptado aos mamíferos e com aumento da virulência.”

Ferreira participa de uma rede de pesquisadores que monitora trechos do litoral brasileiro em parceria com o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). A partir desse acompanhamento é que se identificou, em junho de 2023, mortes de aves marinhas em praias da região Sudeste e em Santa Catarina. Em outubro do mesmo ano, houve um aumento repentino na mortalidade de leões-marinhos no litoral catarinense.

Na ocasião, equipes da Universidade do Vale do Itajaí (Univali) que integram o Projeto de Monitoramento de Praias da Bacia de Santos, coordenado pelo Ibama, coletaram amostras de tecido dos tratos digestório e respiratório desses animais para investigar a presença de H5N1 – o vírus da influenza aviária se multiplica melhor nessas células. Também colheram amostras das cloacas de 190 aves marinhas usando um swab – espécie de cotonete comprido – para analisar a transmissão potencial entre aves e mamíferos na mesma área.

Ao todo, o estudo incluiu 17 espécies diferentes, extraindo RNA total e fazendo testes para detectar o vírus. Ao comparar o genoma do vírus encontrado nos leões-marinhos de Santa Catarina com outros encontrados na América do Sul, além de comprovar a infecção, os autores identificaram mutações no genoma do vírus que podem provocar alterações em proteínas responsáveis pela replicação viral em células de mamíferos.

“Um dado que não está no artigo da BMC Veterinary Research, que identificamos depois, quando compartilhamos o vírus com a FAO [Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura], é que as sequências genéticas encontradas são muito próximas às de leões-marinhos das ilhas Malvinas, na Argentina”, destaca a pesquisadora, que atualmente preside a Sociedade Brasileira de Virologia. Mas não são idênticas, o que já sugere um processo evolutivo.

O achado indica uma transmissão entre leões-marinhos – e não mais unicamente de aves para esses mamíferos, como havia sido registrado até então. É a primeira evidência da propagação em mamíferos da fauna silvestre. Um estudo publicado em julho na revista Nature pelo veterinário brasileiro Leonardo Caserta, da Universidade Cornell, nos Estados Unidos, aponta também a transmissão entre bovinos naquele país.

“Isso indica que há o que chamamos de microevolução do vírus. Ele não para de evoluir dentro de espécies de mamíferos; não encontramos essas mesmas mutações em aves”, enfatiza o virologista Fernando Spilki, da Universidade Feevale, no Rio Grande do Sul, e coordenador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia (INCT) em Vigilância Genômica de Vírus e Saúde Única. “Agora é mais difícil afirmar que todo e qualquer caso em mamíferos foi infecção por aves.”

O virologista veterinário chileno Victor Neira, da Universidade do Chile, concorda. “Não estávamos certos se o vírus que começamos a observar aqui no Chile já estava sendo transmitido entre os leões-marinhos, mas, depois que ele se espalhou no Atlântico, com esse novo achado no Brasil e dados de grupos argentinos e uruguaios, fica evidente que é o mesmo vírus”, relatou a Pesquisa FAPESP. Ele é um dos autores de um estudo sobre a mortalidade de leões-marinhos na costa chilena, publicado em outubro de 2023 na revista Veterinary Quarterly.

Spilki destaca a contribuição humana na série de fatores que contribuem para o surgimento de vírus. “Degradação ambiental, modificações no uso e na ocupação do solo, adensamento de espécies, perda de hábitats e outros fenômenos como mudanças no regime hídrico em decorrência das mudanças de temperatura”, afirma. “É um conjunto de causas complexo.”

Alexandre Affonso/Revista Pesquisa FAPESP

Panorama do H5N1
Além dos leões-marinhos, o site da Organização Mundial de Saúde Animal (OMSA) registra casos de gripe aviária em focas, lontras, raposas, ursos, guaxinins, gatos, cães, cabras, entre outras espécies de mamíferos – incluindo seres humanos. Em 2023, o vírus foi responsável por uma mortalidade em massa de elefantes-marinhos-do-sul (Mirounga leonina) na Argentina, especialmente filhotes. Recentemente, nos Estados Unidos, o H5N1 foi detectado no leite cru de vacas leiteiras infectadas. Especialistas dos órgãos norte-americanos responsáveis pela saúde pública afirmam, contudo, que a pasteurização parece inativar o vírus e tornar o leite seguro para o consumo.

O Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa) sinaliza que, no Brasil, há 166 focos com resultado laboratorial positivo para vírus da influenza aviária de alta patogenicidade. Cada foco é uma unidade epidemiológica na qual foi confirmado ao menos um caso da doença. Os dados são de 22 de julho e estão disponíveis em um painel sobre focos confirmados da influenza aviária atualizado duas vezes ao dia.

O primeiro caso de H5N1 no país foi registrado em maio de 2023. Na época, uma portaria declarando estado de emergência zoossanitária em todo o território nacional foi assinada pelo ministro da Agricultura e Pecuária, Carlos Fávaro. De lá para cá, 3.160 casos foram investigados e não houve confirmação de contágio entre aves comerciais, o que poderia ter um impacto significativo na economia e na saúde pública nacionais.

Até o momento também não há registro de casos humanos confirmados para a influenza aviária no Brasil, segundo informou em nota o Ministério da Saúde. Em parceria com as secretarias estaduais de Saúde, o ministério monitora o número de focos animais, de pessoas expostas a animais infectados, de casos suspeitos e descartados.

Desde 2003, quase 900 casos em seres humanos foram relatados à Organização Mundial da Saúde (OMS). Naquele ano o vírus, detectado na China em 1996, ressurgiu e se espalhou entre aves de vários países asiáticos. Em 2021, uma nova variante de H5N1 emergiu na Europa e se espalhou pelo mundo. Ao longo desses 20 anos, 24 países registraram ocorrências. Os sintomas da infecção por H5N1 podem incluir febre alta, mal-estar, tosse, dor de garganta, dores musculares e conjuntivite. Às vezes, a infecção progride para uma doença respiratória grave e alterações neurológicas, como alteração do estado mental ou convulsões.

Potencial pandêmico
Para a virologista Paola Cristina Resende, do Laboratório de Vírus Respiratórios, Exantemáticos, Enterovírus e Emergências Virais, do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz), quando o vírus da influenza A H5 é identificado em outras espécies, especialmente em mamíferos, acende-se um sinal de alerta para o poder público. “A vigilância nunca pode relaxar com esse vírus”, explica a pesquisadora. “O H5N1 sempre tem um potencial pandêmico em função de ser um vírus novo para a memória imunológica da população humana. Os vírus Influenza A podem sofrer mutações pontuais e rearranjo gênico, que podem culminar na emergência de novos subtipos virais.”

Contudo, ela reforça que há uma rede de vigilância global já bem implementada desde 1952, coordenada pela OMS, com cerca de 160 laboratórios em 129 países, três deles no Brasil. Além disso, no território brasileiro há 308 unidades sentinelas em síndrome gripal, em 220 municípios, que buscam identificar casos positivos, desencadeando uma rápida resposta dos órgãos de saúde.

Além da vigilância, Resende enfatiza que é importante que o país tenha estoque do antiviral Oseltamivir, eficiente contra o H5N1, e uma estratégia de vacinação. “Ter um estoque de vacinas com sementes pré-pandêmicas do vírus H5N1 ajuda a dar início rapidamente à imunização de populações vulneráveis e a mitigar uma possível dispersão do vírus.”

O Instituto Butantan, em São Paulo, iniciou o processo de produção de uma vacina contra a doença. Em nota, a instituição informa que os testes são realizados com cepas vacinais cedidas pela OMS e o primeiro lote-piloto está pronto para testes pré-clínicos, que antecedem os realizados em seres humanos. Em andamento, o ensaio deve avaliar o potencial terapêutico e a segurança da vacina.

Para evitar o contágio com o vírus H5N1, a orientação é não tocar em aves silvestres ou leões-marinhos doentes ou mortos. Ao passear com animais domésticos, é preciso cuidar para que os cães também não tenham contato. Além dessas ações, é recomendável notificar, via internet, o Serviço Veterinário Oficial brasileiro ao avistar uma ave ou leão-marinho nessas condições.

Projeto
Um programa de pesquisa conjunto entre a Coreia e o Brasil em doenças de alta relevância em animais, utilizando a influenza aviária como modelo (nº 23/08501-0); Modalidade: Auxílio à Pesquisa – Regular; Convênio NRFK-FAPESP; Pesquisadora responsável: Helena Lage Ferreira (USP); Investimento R$ 169.103,48 + US$ 15.681,00.

Artigos científicos
ARAUJO, A. de C. et al. Mortality in sea lions is associated with the introduction of the H5N1 clade 2.3.4.4b virus in Brazil October 2023: Whole genome sequencing and phylogenetic analysis. BMC Veterinary Research. v. 20, 285. 2 jul. 2024.
CASERTA, L. C. et al. Spillover of highly pathogenic avian influenza H5N1 virus to dairy cattle. Nature. On-line. 25 jul. 2024.
ULLOA, M. et al. Mass mortality event in South American sea lions (Otaria flavescens) correlated to highly pathogenic avian influenza (HPAI) H5N1 outbreak in Chile. Veterinary Quarterly. v. 43, n. 1, p. 1-10. 19 out. 2023.

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