Assim que a Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), em Cruz das Almas, voltar a funcionar como antes da pandemia, a botânica Lidyanne Aona, curadora do herbário da instituição, pretende, mais uma vez, garimpar armários descartados no almoxarifado para guardar as amostras de plantas do acervo, atualmente com mais de 30 mil exemplares. “Os armários estão cheios, sem espaço para o material das próximas coletas de campo dos pesquisadores”, inquieta-se.
O herbário da UFRB é um dos 72 com dificuldade para armazenar suas coleções, de acordo com um levantamento com 139 coleções científicas de amostras de plantas, publicado em abril de 2020 na revista Acta Botanica Brasilica. As universidades federais abrigam 40,28% dos herbários brasileiros e as estaduais 19,42%. Outros 10% ficam nos institutos de pesquisa e jardins botânicos, 7,9% em universidades comunitárias e o restante em ONGs e empresas privadas e públicas, de acordo com o levantamento. As maiores coleções estão no Rio de Janeiro: no Jardim Botânico (cerca de 850 mil amostras) e no Museu Nacional (cerca de 600 mil).
Os acervos cujos curadores responderam ao questionário guardam cerca de 6,7 milhões de amostras catalogadas, com local e data de coleta. Entre elas, estão 39 mil espécimes-tipo, que são os primeiros registros de uma espécie descrita e funcionam como uma certidão de nascimento dessas plantas e fungos. Apenas 6,4% desses herbários estão com seus acervos inteiramente digitalizados, com imagens, e acessíveis on-line. Se contar somente os dados das amostras, sem as imagens, o índice sobe para 32%.
Os 216 herbários em funcionamento no país em 2018 reuniam 8,4 milhões de exemplares, número similar ao do herbário do Museu Nacional de História Natural de Paris, o mais antigo e um dos maiores do mundo, com cerca de 8 milhões. As coleções guardam plantas e fungos recolhidos desde o século XVII, que servem como referência para identificar novas espécies e descrever a vegetação de uma região. Os ramos coletados com folhas, frutos e flores são prensados, secos, costurados em cartolinas e catalogados, quando ganham o nome de exsicatas. Os fungos – como os cogumelos e orelhas-de-pau – são secos, guardados em envelopes ou caixas e catalogados. Os muito pequenos podem ser depositados em lâminas de vidro.
“Depois de queimadas como as que ocorrem neste momento no Pantanal e na Amazônia, é possível que encontremos nas exsicatas o único registro de algumas espécies de plantas”, diz Aona, que analisou em seu doutorado, concluído em 2008, amostras do gênero Dichorisandra com 250 anos e identificou uma série de espécies que ainda não haviam sido descritas, das quais 16 já estão publicadas. Segundo ela, as coleções podem ser usadas também para projetar os impactos das mudanças climáticas ou para entender alterações da vegetação em determinada área ao longo do tempo.
“Cada coleção deveria ter seu regimento ou outro documento que a reconhecesse e permitisse ao curador cobrar dos responsáveis pela instituição as condições para cuidar adequadamente do acervo”, observa o botânico André Luís de Gasper, coordenador da Rede Brasileira de Herbários e autor principal do artigo na Acta Botanica Brasilica. Apenas 44% dos herbários que participaram da pesquisa têm alguma forma de reconhecimento oficial e somente 25% dos curadores consideram seu acervo valorizado pela instituição que o abriga.
O aperto orçamentário é constante. O artigo indicou que o financiamento de 35% dos acervos vem de projetos de pesquisa e de extensão, que às vezes incluem bolsistas para trabalhar temporariamente nos herbários, desse modo compensando a escassez de mão de obra. Entre os herbários examinados, 27% recebem eventualmente recursos de suas instituições, 24% têm orçamentos anuais e o restante se vale de fontes de recursos não especificadas que financiam projetos de pesquisa e extensão.
Em consequência, alguns herbários guardam suas amostras entre folhas de jornal e não entre cartolina, observa Gasper. Torna-se difícil também comprar armários deslizantes, recomendados para ganhar espaço, com escaninhos, mais caros que os de duas portas. Por isso, enquanto 47,48% dos herbários usam armários tradicionais, apenas 16,54% têm parte de seu acervo em armários deslizantes.
O herbário da Universidade Regional de Blumenau (Furb), do qual Gasper é curador, é um dos 5,7% que utilizam caixas de madeira ou de metal, colocadas em prateleiras. A substituição por armários deslizantes poderia dobrar para 120 mil a capacidade de armazenamento, segundo o biólogo. “A troca teria um custo estimado de R$ 500 mil”, calcula, sem previsão de ter esse recurso.
Faltam também recursos para investir em sistemas de proteção contra incêndio: 33 herbários não têm extintores e apenas nove utilizam sensores de fumaça. Em dezembro de 2013, houve um curto-circuito em um interruptor de ar-condicionado do herbário do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), hoje com 280 mil amostras. “Felizmente dois técnicos perceberem e apagaram as chamas com pranchas de cartolina. Se demorassem mais cinco ou 10 minutos, teríamos perdido a coleção inteira”, conta seu curador, o botânico Michael Hopkins. Segundo ele, o herbário ainda não tem um sistema antichamas adequado.
A saída para driblar a falta de verba é incluir a compra de armários e outros materiais em projetos de pesquisa que usem os acervos. “Dependemos cada vez mais do apoio extrainstitucional para manter o herbário”, diz Hopkins. Ele comprou armários deslizantes e pretende adquirir lupas e microscópios usando recursos de projetos financiados pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), pela Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (Fapeam) e pelo Herbário Virtual da Flora e dos Fungos.
Herbários virtuais
Uma exceção a esse cenário é o herbário do Jardim Botânico do Rio de Janeiro (JBRJ), o maior do país, com 850 mil amostras, já totalmente digitalizado. Tem sistema de detecção de fumaça, verba permanente para compra de materiais, mão de obra especializada e todas as exsicatas estão guardadas em armários deslizantes. “Preservar seus acervos é uma missão assumida pelo Jardim Botânico”, diz a botânica Rafaela Campostrini Forzza, curadora do herbário. “Quando permitem a criação de um acervo, as instituições deveriam prever seus custos de manutenção e de preservação.”
Forzza é coordenadora do projeto Reflora, que reúne informações sobre cerca de 4 milhões de amostras digitalizadas de 82 acervos do Brasil e de outros países, além de apoiar a digitalização de herbários brasileiros, com bolsistas e doação de equipamentos. “Por falta de verba já há dois anos, o ritmo de digitalização caiu bastante”, diz ela.
Por sua vez, o Herbário Virtual da Flora e dos Fungos, um Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia (INCT) sediado na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) tem cerca de 7 milhões de registros de amostras de plantas de 126 herbários brasileiros e de 20 do exterior. Entre eles, 4,2 milhões com imagens. “Os primeiros naturalistas europeus levavam as plantas e fungos que coletavam no Brasil para estudar e guardar em suas instituições de origem”, observa a botânica e micologista (especialista em fungos) Leonor Costa Maia, coordenadora do INCT, que também oferece bolsas e equipamentos a herbários brasileiros, além de promover cursos e treinamentos. “Hoje podemos acessar diretamente o material coletado no Brasil, e depositado no país ou no exterior, em nossos próprios herbários virtuais.”
Artigo científico
GASPER, A. L. et al. Brazilian herbaria: an overview. Acta Botanica Brasilica. v. 34, n. 2 p. 352-9. abr. 2020.