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Virologia

Homens na berlinda

Mais atenção à saúde sexual masculina pode ajudar a conter disseminação de vírus ligado ao câncer de útero

O Instituto Nacional do Câncer (Inca) estima que 19.260 brasileiras serão afetadas em 2006 pelo câncer de colo de útero, o mais comum entre as mulheres depois do câncer de mama. No mundo todo a doença, mais freqüente entre os 35 e os 45 anos, atinge cerca de 470 mil mulheres por ano — e mata metade delas. “No Brasil provoca mais mortes na população feminina do que a Aids”, alerta a bióloga Luisa Lina Villa, do Instituto Ludwig de Pesquisas sobre o Câncer. A melhor forma de combater o problema é incentivar a realização de exames ginecológicos preventivos, já que esse tumor é provocado por alguns tipos do papilomavírus humano, o HPV. Transmitidos quase sempre por via sexual, esses vírus se instalam na vagina e nos tecidos da entrada do útero, onde desencadeiam lesões. Ainda este ano a possibilidade de controle do câncer de colo de útero deve se ampliar com a chegada de uma vacina preventiva ao mercado internacional. É um avanço significativo que reforça as estratégias de combate ao vírus focadas nas mulheres.

Mas as vacinas não serão suficientes. Para o controle mais eficiente da disseminação do HPV é preciso levar em consideração um ator que apenas recentemente passa a ser percebido com a devida atenção: o homem, a um só tempo vítima e responsável pela transmissão do HPV. “Se não incluirmos os parceiros nesse processo, é possível que a mesma mulher, depois de ter eliminado o vírus, volte a se infectar”, avisa Luisa. Ela participou de um estudo coordenado pela Universidade de Caxias do Sul, publicado em fevereiro no Brazilian Journal of Medical and Biological Research, que analisou a relação entre o HPV e a população masculina.

Os resultados mostram que, dos 99 homens avaliados, todos parceiros de mulheres com câncer de colo de útero, 54 apresentavam material genético do vírus — destes, apenas 28% haviam desenvolvido lesões evidentes, como verrugas no pênis. Ainda não é possível saber o caminho original da contaminação, se do homem para a mulher ou o oposto, mas o trabalho indica uma situação perigosa, já que eles não têm o hábito de fazer exames para detectar a infecção. Em geral o médico só é procurado depois que surgem as verrugas, chamadas cristas de galo, encontradas em 3% a 5% dos homens.

O estudo confirma ainda que o sexo masculino, embora em menor escala, pode sofrer as conseqüências da infecção pelo vírus — às vezes bem graves. No limite, é possível que lesões leves se transformem em câncer de pênis. É verdade que esse tipo de tumor atinge apenas dois de cada 100 mil homens anualmente. “Mas é um fantasma que precisa ser conhecido com mais detalhes”, reconhece Luisa, responsável pela coordenação no Brasil dos estudos que resultaram na primeira vacina de prevenção contra o HPV a chegar ao mercado.

Chamada de quadrivalente, essa vacina foi aprovada no início de junho pela Food and Drug Administration (FDA), agência norte-americana que controla a liberação de medicamentos. Ela protege contra quatro tipos de HPV — o 16 e o 18, responsáveis por pelo menos 70% dos casos de câncer de colo de útero, além do 6 e do 11, relacionados a 90% das verrugas genitais nos homens e nas mulheres. “São conhecidos mais de 100 tipos de HPV, capazes de provocar problemas simples, como as verrugas genitais, e outros gravíssimos, como os cânceres invasivos”, explica Luisa. Até o final deste ano, uma segunda vacina preventiva deve chegar ao mercado europeu — a bivalente, que leva esse nome por atuar exclusivamente contra os tipos 16 e 18 do vírus.

Garantidos para as mulheres, os benefícios das duas vacinas para a população masculina ainda precisam ser confirmados. Enquanto os resultados não emergem, a saída é buscar estratégias de combate ao HPV que incluam esse grupo, uma tarefa nada fácil. Primeiro, seria preciso superar um tabu cultural: admitir que o órgão sexual masculino, símbolo de virilidade, não é invulnerável. “Os homens ficam sempre repetindo ‘não é comigo, não tenho nada, para que fazer exames?'”, diz Luisa. A tarefa seguinte: encontrar alternativas ao exame de peniscopia, que usa uma lente de aumento para detectar sinais deixados pelo vírus em quem já foi infectado. “Dependendo da região do pênis de onde é retirado o material para análise, o resultado dá negativo. Mas o HPV pode estar em outro ponto do órgão genital”, explica Cecília Maria Roteli-Martins, médica dos hospitais Nove de Julho e Leonor Mendes de Barros, ambos em São Paulo, e uma das participantes dos estudos feitos no Brasil sobre a vacina bivalente. Outro problema é que a peniscopia pode indicar contaminação por HPV quando, de fato, ela não ocorreu — resultado conhecido como falso-positivo, que pode levar à realização desnecessária de exames como a biópsia, em que se retira uma pequena amostra de tecido do pênis.

Na opinião de Cecília, o fundamental é educar os homens para usarem preservativos, além de ampliar estudos sobre a população masculina. “É uma tendência que começa a se manifestar”, comemora Cecília. Atenta a essa necessidade, Luisa iniciou, em parceria com equipes dos Estados Unidos e do México, um trabalho que envolve 3 mil homens com idade entre 18 e 45 anos para avaliar os impactos do HPV sobre a população masculina. Os primeiros resultados deverão ser conhecidos até o final do ano.

Se no caso dos homens a trajetória está apenas começando, a caminhada em relação ao segmento feminino chega a um momento especial. Os testes clínicos mostram que a vacina quadrivalente protege tanto contra o desenvolvimento de verrugas como o do câncer de colo de útero, sem efeitos colaterais importantes. A proteção pode se estender por um período de cinco anos. Os estudos envolveram cerca de 18 mil mulheres, com idade entre 16 e 25 anos, em 33 países— dentre eles Brasil, Estados Unidos, Alemanha e Canadá. Os resultados foram divulgados em abril, em Paris, durante o congresso da European Research Organization on Genital Infection and Neoplasia (Eurogin). No Brasil, a expectativa é de que o produto, produzido pelo laboratório norte-americano MerckSharp & Dhome, seja liberado até dezembro pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).

Cinturão anti-HPV
Também chamada de partícula semelhante a vírus (VLP, na sigla em inglês), a vacina estimula e engana o organismo humano. A estratégia é simples: insere-se em um vetor o gene L1, responsável pela produção da principal proteína da cápsula do HPV. Esse vetor, em geral um vírus, infecta a levedura de cerveja, Saccharomyces cerevisae, e se apropria dos sistemas de multiplicação do material genético. Graças à engenharia genética é possível extrair da levedura cópias do gene L1 sem o material genético do vetor viral, ou seja, um vírus vazio e inofensivo. Eis a vacina, aplicada nas mulheres em três doses ao longo de seis meses. “Como ela imita o HPV, o corpo entende que é hora de combater o invasor”, explica Luisa. Mulheres que recebem a vacina chegam a produzir 50 vezes mais anticorpos que as não-vacinadas. Quando o HPV penetra no corpo, em geral próximo à entrada do útero, aumenta a concentração de anticorpos nessa região, formando um cinturão que evita a instalação do vírus e as infecções.

A vacina bivalente segue a mesma lógica de atuação. Mas sua produção usa um vetor diferente: um baculovírus, vírus que infecta insetos. Nesse caso, os estudos, financiados pelo laboratório GlaxoSmithKline, sediado na Bélgica, envolveram cerca de 18 mil mulheres, em mais de 25 países. Eles indicam que a proteção, a exemplo do verificado com a quadrivalente, é de 100% e sem efeitos colaterais — melhor ainda, pode se estender por dez anos. O pedido de comercialização da vacina bivalente foi feito em março à European Agency for the Evaluation of Medicinal Products (Emea), órgão similar ao FDA.

A chegada dessas vacinas ao mercado intensifica o debate sobre qual faixa etária deverá ser alvo de campanhas de vacinação. Nos Estados Unidos a vacina foi aprovada para mulheres de 9 a 26 anos. Para as pesquisadoras brasileiras, o ideal é que seja atingida a população feminina que ainda não iniciou a vida sexual — e não se deixou contaminar pelo HPV. “Acredito que esse procedimento deva envolver pré-adolescentes e adolescentes, na faixa dos 10 aos 15 anos”, imagina Luisa. O Censo 2000 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) estima que existam aproximadamente 9 milhões de brasileiras nessa faixa etária.

Mas há um obstáculo: o custo das vacinas, que pode torná-las inacessíveis à maioria das brasileiras — para se ter uma idéia, as três doses da vacina quadrivalente devem sair nos Estados Unidos por US$ 360. “A vacina é uma alternativa de prevenção promissora, que pode fracassar por causa dos custos elevados”, admite Luisa. “Meu desafio é incentivar negociações entre governo e iniciativa privada com o objetivo de tornar viável a incorporação das vacinas às políticas públicas de combate ao HPV”, afirma a bióloga que há 25 anos investiga formas de detectar e combater o vírus. Na opinião de Luisa, o governo teria de tomar uma decisão política e transformar o combate ao câncer de colo de útero em prioridade, a exemplo do que aconteceu nos anos 1990 com o tratamento da Aids. “Estamos falando de investimentos em saúde pública”, reforça.

Mesmo assim se questiona se esse investimento não seria elevado em relação à população potencialmente beneficiada, já que a vacina teria efeitos apenas para as mulheres ainda não infectadas por HPV. “É importante, mas teria ação específica e não cobriria toda a população”, diz Marcos André Félix da Silva, da Divisão de Atenção Oncológica do Inca. Luisa insiste: “Continuamos gastando com tratamento ou canalizamos esses recursos para prevenção?”. Afinal, mesmo para as mulheres que já iniciaram a vida sexual, a vacina quadrivalente pode trazer benefícios, segundo Luisa. Se a mulher tiver apenas um dos tipos do vírus — o 6, por exemplo — e receber a vacina, ficará protegida contra os outros três (11, 16 e 18). Ainda que ela já tenha sido infectada pelos quatro tipos, há indícios de que terá 30% menos chance de desenvolver lesões precursoras do câncer.

“É uma vacina universal”, define a pesquisadora do Ludwig. E possivelmente também funcione para os homens. A expectativa é de que testes em andamento confirmem até 2007 a eficácia da vacina para proteger também os homens da infecção por HPV. Mas o xeque-mate virá — se vier — com uma vacina curativa, capaz de destruir tumores já desenvolvidos. Luisa trabalha no desenvolvimento dessa vacina em parceria com pesquisadores da Universidade do Colorado, Estados Unidos, com financiamento da Fundação Bill e Melinda Gates. A idéia é desativar as proteínas E6 e E7 do vírus, com maior potencial cancerígeno, e provocar uma reação intensa do sistema de defesa que elimine as células cancerosas. Ainda em fase inicial, os experimentos com animais de laboratório vêm mostrando resultados animadores.

Prevenção e tratamento
Enquanto aguardam a liberação das vacinas preventivas no país, as especialistas reforçam a necessidade de intensificar o combate ao HPV por meio do acompanhamento ginecológico preventivo e da realização de exames como o papanicolau, que indica a presença de lesões e pode ser feito pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Dependendo do diagnóstico, por exemplo, suspeita de câncer, a mulher é encaminhada para um segundo teste chamado colposcopia para confirmar o local e a extensão da lesão antes de definir o tratamento — nos casos mais graves, uma cirurgia para extração do útero. Em 2005, o Ministério da Saúde realizou 11,5 milhões de exames de papanicolau e 1 milhão de colposcopias. “São procedimentos eficientes para a detecção precoce de verrugas e tumores”, afirma Félix da Silva. “Mas a cobertura é muito baixa. Calcula-se que apenas 15% das brasileiras façam a prevenção regularmente”, diz Luisa.

A aversão das brasileiras àquilo que deveria ser rotina é explicada, em parte, pela desinformação e pelo desconforto causado pelo exame da região genital. Também há casos de pacientes que procuram os postos de saúde, fazem a coleta de material para análise e nunca retornam para buscar os resultados. “Mulheres que vivem nas cidades são contempladas, o que não acontece no meio rural”, completa Cecília. Estudo do Hospital das Clínicas (HC) de São Paulo divulgado em maio contesta a eficácia desse procedimento padrão — papanicolau, seguido de colposcopia — em determinadas situações. Em um primeiro momento, 90% das 60 jovens grávidas com idade entre 12 e 18 anos não tinham o HPV. Mas a realização de um exame mais sensível, conhecido como a captura híbrida, revelou que 51% delas apresentavam o DNA do vírus. “Por causa dos custos”, observa o médico Waldemir Rezende, da Divisão de Obstetrícia do Instituto Central do HC e orientador da pesquisa, “a captura não pode ser incorporada à rede pública como rotina”. Na opinião de Luisa, esse teste não deveria ser usado de modo indiscriminado, pois detecta muitas infecções não associadas ao câncer de útero.

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