Um sistema de inteligência artificial capaz de estimar o histórico de temperatura de equipamentos auxiliou na tarefa de determinar a vida útil de componentes estratégicos essenciais para a renovação da licença operacional da usina nuclear Angra 1, localizada no município de Angra dos Reis, no litoral fluminense. A licença de operação da instalação venceria em 31 de dezembro de 2024 e a estatal Eletronuclear reivindicava a extensão do licenciamento por mais 20 anos na Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN). No final de novembro, após avaliação técnica e de segurança, a comissão autorizou a extensão da vida útil operacional de Angra 1 até 2044.
Batizado de Sistema de Vida Qualificada (SVQ), o software foi desenvolvido por pesquisadores do Laboratório de Monitoração de Processos (LMP) do Programa de Engenharia Nuclear do Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa de Engenharia, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Coppe-UFRJ). “O SVQ usa dados coletados por sensores atuais para conhecer a temperatura passada, com a qual os equipamentos operavam em uma época em que não havia ainda sensores do gênero em operação nas usinas nucleares”, descreve o físico Roberto Schirru, coordenador do LMP. “O SVQ também será capaz de prever a temperatura futura.”
A temperatura operacional é o principal fator a determinar a obsolescência de equipamentos e dispositivos elétricos em uma usina nuclear, entre eles motores, válvulas, bombas e cabos. A exposição à radiação e à umidade também é parâmetro relevante, mas em menor escala.
Angra 1 entrou em operação comercial em 1985 e tem potência instalada de 640 megawatts (MW), energia suficiente para atender a uma cidade de 2 milhões de habitantes. Quando foi construída, as usinas nucleares ainda não eram aparelhadas com sensores de temperatura instalados nos equipamentos situados no interior do edifício que abriga o reator nuclear, como ocorre hoje. A usina brasileira só implantou esses dispositivos em 2015.
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A equipe do LMP usou os dados obtidos dos sensores entre 2015 e 2020, ano em que a primeira versão do SVQ foi elaborada, para desenvolver modelos matemáticos de variação da temperatura operacional dos equipamentos. Juntou a esses dados informações do histórico de temperatura ambiente no interior do edifício do reator desde sua entrada em operação, obtidas por meio do Sistema Integrado de Computadores de Angra (Sica), também criado pelo LMP. Além da temperatura ambiente, o Sica monitora mais de 6 mil parâmetros de segurança da usina.
O SVQ, explica Schirru, foi treinado com redes neurais profundas a correlacionar os dados dos sensores instalados nos aparelhos depois de 2015 com as informações fornecidas pelo Sica para estabelecer padrões e, assim, inferir a temperatura nos equipamentos no período de 1985 a 2015 – os primeiros 30 anos de operação da usina. Para validar os dados, a equipe do LMP também calculou com o SVQ a temperatura dos equipamentos entre 2015 e 2020. Depois, comparou com os dados reais obtidos com os sensores instalados.
Em artigo publicado em 2023 na revista Progress in Nuclear Energy Journal, os pesquisadores da UFRJ informam que os resultados obtidos apresentam um erro médio inferior a 2 graus Celsius (ºC) em 89% dos casos estudados. “Com informações sobre o histórico da temperatura operacional, os engenheiros de Angra 1 passam a ter uma referência mais precisa para avaliar o tempo de vida útil dos equipamentos”, destaca Schirru.
Os equipamentos de uma usina nuclear são projetados para uma vida útil de 40 anos. Como detalha o engenheiro eletrônico Marcos das Candeias da Silva, do Departamento de Sistemas Elétricos e de Instrumentação e Controle da Eletronuclear, responsável pela operação de Angra 1, os fabricantes estipulam o tempo de vida nominal dos equipamentos usando como referência os limites estabelecidos de temperatura e radiação nos quais eles estarão inseridos.
O processo de inspeção da usina contou com um sistema de avaliação da radiação criado no país
“Um equipamento certificado para 40 anos de uso sob uma temperatura ambiente hipotética de 50 ºC terá uma vida útil maior se a temperatura efetiva na qual ele operou for menor, por exemplo, que 35 ºC ou 40 ºC – e uma vida útil menor, se a temperatura for maior que os 50 ºC projetados”, exemplifica o engenheiro.
Para estimar a vida útil, os técnicos usam a equação de Arrhenius, que permite calcular a variação da constante de velocidade de uma reação química – das que provocam desgaste das peças, no caso – com a temperatura. O método foi criado pelo físico-químico sueco Svante August Arrhenius (1859-1927), vencedor do Prêmio Nobel de Química em 1903.
Candeias é responsável pelo Programa de Qualificação Ambiental de Equipamentos Elétricos de Angra 1. Ele relata que o SVQ demonstrou que todos os equipamentos elétricos da usina trabalharam ao longo dos últimos 40 anos com temperaturas menores do que aquelas para as quais foram projetadas. “O sistema permitiu a manutenção da qualificação ambiental dos equipamentos para além da vida nominal prevista”, afirma.
Foram avaliados em torno de 1.500 equipamentos e mais de 100 tiveram suas vidas prolongadas. Os ganhos com a extensão do uso dos equipamentos são múltiplos. “Além da economia financeira, não perdemos tempo de operação da usina com as trocas, caso fossem necessárias. Por fim, evitamos o descarte desnecessário de materiais que ainda são úteis”, relaciona o engenheiro.
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EletronuclearVista da Central Nuclear Almirante Álvaro Alberto, formada pelas usinas Angra 1, 2 e 3 (em construção)Eletronuclear
Sem o SVQ, os gestores da Eletronuclear teriam que realizar a troca dos equipamentos conforme a vida útil certificada de cada um deles ou confiar exclusivamente na ação de inspeção e teste dos itens. “Angra 1 é a única usina no mundo a contar com um sistema de IA dando suporte às decisões técnicas sobre a necessidade ou não de renovação de suas peças”, afirma Candeias.
Em julho de 2024, após 10 dias de inspeções, uma equipe de especialistas da Agência Internacional de Energia Atômica (Aiea) publicou uma avaliação de segurança operacional de Angra 1, em que destacou positivamente o programa de gerenciamento de envelhecimento da usina e enfatizou a importância do uso do software de inteligência artificial SVQ criado na Coppe-UFRJ para gerenciar o envelhecimento da usina.
A equipe liderada pelo físico húngaro Gabor Petofi, diretor sênior de segurança nuclear da Aiea, ainda recomendou que as práticas de Angra 1 sejam compartilhadas com a indústria nuclear globalmente. De acordo com a Associação Nuclear Mundial, existem em operação no mundo 437 reatores nucleares, a maioria construída nos anos 1970, 1980 e 1990. A praxe internacional é o licenciamento dessas usinas por 40 anos, com a posterior renovação de licença a cada 20 anos.
“O SVQ tem uma relevância enorme. Para ser segura, uma usina nuclear precisa saber o histórico operacional de seus equipamentos desde o momento em que eles entraram em atividade. Instalações antigas, como Angra 1, não têm esse histórico, pois não contavam com sensores que fornecessem essas informações. O SVQ é capaz de estimar os dados do passado com boa precisão”, diz o engenheiro eletricista Cláudio Márcio do Nascimento Abreu Pereira, professor de métodos computacionais do Instituto de Engenharia Nuclear (IEN) do CNEN.
A equipe do LMP já desenvolveu uma segunda versão do SVQ, entregue em 2024. Os técnicos da Eletronuclear estão no momento sendo treinados para o uso da nova ferramenta. De acordo com a física Andressa Nicolau, gerente do projeto SVQ no LMP, enquanto o primeiro modelo fornece apenas dados de temperatura até 2020, a nova versão do software permitirá aos engenheiros da Eletronuclear retreinar o algoritmo com dados atuais, coletados por meio dos sensores instalados, obtendo uma reavaliação contínua das condições operacionais.
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EletronuclearSala de controle de Angra 1, a primeira planta nuclear do paísEletronuclear
A nova versão também possibilitará inferir a temperatura futura e projetar a vida útil dos equipamentos ao longo dos anos e corrigir automaticamente a previsão feita de acordo com as condições reais que a usina apresente com o passar do tempo. “O engenheiro poderá ainda estabelecer novos parâmetros de avaliação e retreinar o software de acordo com as novas necessidades”, acrescenta Nicolau.
O processo de inspeção da vida útil de Angra 1 também conta com um sistema próprio de avaliação da radiação desenvolvido no país. Radiação é o segundo fator de maior impacto no envelhecimento dos equipamentos de uma instalação nuclear. O sistema utiliza um dosímetro de alanina/ESR para medir a radiação. O dosímetro é uma pequena caixa que contém alanina, um dos aminoácidos que os seres vivos usam para sintetizar proteínas. Após a exposição à radiação, a alanina é levada para um laboratório, onde um espectrômetro de ressonância de spin (ESR) mede a dose de radiação recebida. Sistemas análogos são empregados para a medida de radiação em tratamentos radioterápicos complexos e processos industriais.
A equipe do físico Oswaldo Baffa, do Departamento de Física da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP), desenvolveu, com apoio da FAPESP, um sistema baseado nesses dispositivos para medir a radiação que incide sobre os equipamentos de Angra 1. O aparelho está em operação desde 2015.
Segundo Baffa, os dosímetros de alanina apresentam uma importante vantagem. “São capazes de medir desde doses de radiação muito baixas, inferiores à 1 gray (Gy), até doses elevadas de milhares de Gy”, explica – gray é a unidade de medição de radiação absorvida. As usinas nucleares tradicionalmente utilizam dosímetros de luminescência ou de termoluminescência, que não operam com uma abrangência tão ampla de faixas de radiação, informa o pesquisador da USP.
Até sua adoção por Angra 1, só havia uma referência na literatura científica sobre o uso dos dosímetros de alanina/ESR em usinas nucleares. Era um trabalho de 2008 de cientistas da Coreia do Sul, mas que não chegou a ter aplicação prática. Em 2022, a equipe do Departamento de Física da USP publicou um artigo na revista Radiation Physics and Chemistry com a avaliação da medição da radiação nos equipamentos de Angra 1 realizada por meio de 85 dosímetros de alanina/ESR. Os autores do trabalho concluíram que os dados obtidos em todas as aferições apresentam radiações menores do que o valor esperado para 40 anos de operação, que é de 400 Gy. Os resultados foram comparados com os níveis de radiação definidos em um relatório de análise de segurança da usina.
Além de Angra 1, o parque eletronuclear brasileiro também conta com Angra 2, com potência de 1.350 MW, que entrou em operação comercial em 2001. A usina mais recente possui sensores de temperaturas e de radiação. A expectativa entre os técnicos da Eletronuclear é de que o SVQ e o dosímetro de alanina/ESR também exerçam papel relevante em seu processo de renovação de licenciamento, previsto para 2040.
A reportagem acima foi publicada com o título “Para medir a temperatura passada” na edição impressa n° 347, de janeiro de 2025.
Projeto
Avanços em dosimetria, datação arqueológica e caracterização de biomateriais por ressonância de spin eletrônico (n° 07/06720-4); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Oswaldo Baffa Filho (USP); Investimento R$ 507.101,37.
Artigos científicos
NICOLAU, A. S. et al. Deep neural networks for estimation of temperature values for thermal ageing evaluation of nuclear power plant equipment. Progress in Nuclear Energy Journal. fev. 2023.
BAFFA, O. et al. Alanine/electron spin resonance dosimetry for environmental qualification of electric equipment in a nuclear power plant. Radiation Physics and Chemistry. abr. 2022.