Polos de desenvolvimento da Amazônia brasileira, encravadas na imensa, quente e úmida floresta tropical, Manaus e Belém começam a apresentar alterações climáticas típicas das grandes cidades. Entre 1961 e 2010, a temperatura média da capital amazonense aumentou 0,7º grau Celsius (ºC) e atingiu 26,5ºC, segundo levantamento do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). No mesmo período, a temperatura média da capital paraense subiu 1,51°C e alcançou 26,3ºC. Em ambos os casos, a elevação se deve principalmente ao crescimento da área urbanizada das cidades, processo que se acentuou nas duas últimas décadas, embora efeitos mais globais, ligados às mudanças climáticas de grande escala, também possam ter tido algum impacto sobre esse índice. Em 1973, as áreas urbanas de Manaus e da Região Metropolitana de Belém eram, respectivamente, de 91 e 76 quilômetros quadrados. Em 2008, esses números haviam subido para 242 e 270 quilometros quadrados (ver quadros nas páginas 79 e 81).
Com mais prédios, concreto e asfalto tomando o lugar da vegetação nativa, o chamado efeito ilha urbana de calor, fenômeno conhecido há tempos por paulistanos e cariocas, também apareceu com força nas duas principais capitais da região Norte. Numa mesma hora do dia, a temperatura nas áreas dessas cidades mais densamente povoadas e ocupadas por construções e edifícios é consistentemente maior do que nas zonas rurais próximas, onde a floresta se mantém preservada. Os dados sobre ilhas de calor são mais nítidos no caso de Manaus, hoje a sétima cidade brasileira mais populosa, com mais de 1,8 milhão de habitantes, à frente de capitais do Nordeste, como Recife, e do Sul, como Porto Alegre e Curitiba. A diferença de temperatura entre as partes mais urbanizadas da metrópole amazonense e uma área de floresta distante cerca de 30 quilômetros, a Reserva Biológica do Cuieiras atinge picos de mais de 3ºC em 5 dos 12 meses do ano.
Esses resultados se baseiam em informações colhidas hora a hora por quatro estações meteorológicas entre 2000 e 2008 e constam de um artigo científico publicado no dia 8 de agosto no site da revista Meteorological Aplications por Diego Souza e Regina Alvalá, ex-pesquisadores do Inpe e atualmente no Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), em Cachoeira Paulista.
O trabalho também indica que a atmosfera das áreas urbanizadas de Manaus se tornou mais seca do que a das florestas vizinhas. Durante o período analisado, a umidade relativa do ar nas zonas centrais da capital amazonense foi, em média, 1,7% menor do que nas matas adjacentes. Essa distinção alcançou seu nível máximo em fevereiro, no meio da estação mais chuvosa, quando a cidade chegou a ser 3,5% mais seca do que a floresta. “Esses dados mostram claramente o efeito ilha de calor em Manaus”, afirma Regina, engenheira cartográfica especializada no mapeamento de usos e cobertura da terra para modelagem meteorológica.
Em Belém, os estudos da dupla do Cemaden não conseguiram caracterizar a dimensão do efeito ilha urbana de calor devido à ausência de longas séries históricas com dados diários, obtidos de hora em hora, em diferentes pontos da cidade e de seu entorno não desmatado. No entanto há indícios de que esse fenômeno na capital paraense – a décima primeira mais populosa cidade brasileira, com pouco mais de 1,4 milhão de pessoas – apresenta seus valores máximos durante a madrugada.
Embora possam parecer pequenas para os milhões de moradores das duas megacidades brasileiras (São Paulo e Rio de Janeiro), as capitais do Amazonas e do Pará se tornaram grandes aglomerados urbanos para os padrões mundiais. Se fossem, por exemplo, cidades francesas ou italianas, ficariam atrás, em termos populacionais, apenas de Paris e Roma.
Dois picos
Um aspecto singular, e polêmico, apontado pelo estudo foi a identificação de dois picos diários em que o efeito ilha de calor se exacerba na capital amazonense: o primeiro por volta das 8 horas da manhã e o segundo entre as 15 e as 17 horas. “Na maioria das cidades há apenas um pico diário do efeito ilha de calor e ele em geral ocorre durante a noite ou madrugada”, diz o meteorologista Souza. Os pesquisadores não sabem ao certo por que os picos ocorrem nesses dois momentos do dia, mas especulam que eles podem estar associados ao horário de rush do trânsito manauara. O calor gerado pela combustão é um dos fatores que contribuem para aquecer localmente a atmosfera.
Um estudo realizado por Francis Wagner e Rodrigo Augusto de Souza, físicos da Universidade do Estado do Amazonas (UEA), também avaliou o efeito ilha de calor em Manaus. Nem todas as características do fenômeno bateram com as informações divulgadas no artigo do Cemaden. Mas, além de diferenças metodológicas, o trabalho dos pesquisadores da UEA abrangeu outro período de tempo. Entre maio de 2010 e abril de 2011 foram analisados dados de temperatura do ar de quatro estações, duas na área urbana e duas na rural. Wagner e Rodrigo Souza encontraram dois picos do efeito ilha de calor, um às 7 e outro às 20 horas. A maior diferença de temperatura entre a área urbana e a rural foi da ordem de 3,5ºC.
A partir de dados do satélite ambiental Aqua, que esquadrinha o território com uma resolução espacial de 1 x 1 quilômetro, os cientistas da UEA estimaram as variações de temperatura na superfície da capital amazonense entre agosto e setembro de 2009, meses normalmente mais secos. As zonas mais quentes foram justamente as mais urbanizadas e as mais frias, as com maior vegetação preservada. No solo, as diferenças de temperatura entre áreas cobertas por concreto e asfalto, como o centro e os bairros de Cidade Nova e Petrópolis, e os setores de floresta chegaram a 10ºC. “Estamos fazendo um estudo do microclima na área urbana de Manaus para fornecer subsídios à formatação de um plano diretor de arborização e zoneamento ecológico”, diz Wagner, cujo projeto conta com financiamento do Fundo Municipal do Desenvolvimento e Meio Ambiente da capital amazonense.
Um possível reflexo do efeito ilha de calor é alterar o regime de chuvas sobre o território das duas cidades amazônicas. Em São Paulo, por exemplo, a quantidade de chuva média anual que cai na maior cidade brasileira aumentou 30% nos últimos 80 anos – e parte dessa elevação pluviométrica, particularmente na primavera e verão, é creditada por alguns estudos à crescente urbanização de seu território, (ver Pesquisa FAPESP nº 195, de maio de 2012). Resultados de estudos de modelagem atmosférica de alta resolução feitos por Diego Souza e Regina indicam que, caso a área urbana das duas capitais continue crescendo, haverá uma tendência de queda na quantidade de chuvas em Manaus, enquanto Belém deverá apresentar um leve aumento na pluviosidade. “Mas as mudanças no regime de chuvas não parecem ser muito significativas”, comenta Regina.
Calor londrino no século XIX
Embora não fosse conhecido por esse nome, o fenômeno das ilhas urbanas de calor é estudado desde o início do século XIX, quando o inglês Luke Howard mediu à noite diferenças de quase 2ºC entre Londres, então a maior metrópole do mundo, com mais de 1 milhão de habitantes, e três localidades rurais próximas. Desde então, a análise do clima das cidades é um tema de pesquisa cada vez mais relevante, ainda mais no século XXI, quando, pela primeira vez na história, o mundo passou a ter mais pessoas morando em centros urbanos do que no meio rural.
A edificação de cidades altera de forma radical o padrão de ocupação do solo e cria um ambiente local onde a ocorrência de ilhas de calor se torna quase uma lei natural. No lugar da terra exposta, da grama e das árvores, elementos rurais que amenizam as altas temperaturas tanto a nível do solo como do ar, uma série de materiais impermeáveis e que retêm o calor de forma diferente da vegetação passa a dominar a paisagem urbana. No campo, a presença de vegetação arbórea e rasteira cria zonas de sombra capazes de reduzir a temperatura do solo, alteração que, por sua vez, leva à diminuição da temperatura atmosférica. As áreas verdes também contribuem para refrescar o clima de um lugar por meio da evapotranspiração. Esse mecanismo faz as plantas e o solo liberarem água para o ar como forma de dissipar o calor do ambiente.
Nas partes mais urbanizadas do município, tudo que torna o clima do campo mais ameno é escasso ou está ausente. A água das chuvas quase não penetra no solo, há menos umidade localmente e o processo de evapotranspiração é menos intenso. De uma forma geral, a cidade de concreto, asfalto, vidro e metais tende a absorver e armazenar o dobro de calor do que uma área rural vizinha. A arquitetura urbana, com seus prédios altos e construções com texturas diferentes da superfície do meio rural, pode alterar também o regime de ventos e intensificar a sensação de calor. Em megalópoles como São Paulo ou Nova York o efeito ilha de calor pode representar uma diferença de até 12ºC na temperatura do ar entre uma área densamente urbanizada e uma zona rural ou de mata. Se a temperatura comparada for a do solo, as discrepâncias tendem a ser ainda maiores.
No Brasil, o efeito das ilhas urbanas de calor está sendo estudado em muitas capitais do país já há um bom tempo. No estado de São Paulo, cidades médias e pequenas também passaram a ser alvo de pesquisas sobre o fenômeno. A equipe dos geógrafos João Lima Sant’Anna Neto e Margarete Amorim, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de Presidente Prudente, mediu o efeito em seis municípios do interior paulista: Teodoro Sampaio, Euclides da Cunha, Jales, Rosana e Birigui, além de Presidente Prudente. Eles usaram dados do canal termal do satélite Landsat e de estações meteorológicas fixas e móveis para registrar o fenômeno.
Em Presidente Prudente, cidade com 207 mil habitantes, foram registradas diferenças de até 8ºC entre as áreas mais urbanizadas e o meio rural, sobretudo à noite. Os bairros populares onde se encontram os conjuntos habitacionais Cohab e Cecap foram os mais quentes da cidade. “Nesses lugares o uso de materiais inadequados nas edificações, como telhas de fibras de cimento, a elevada densidade da área construída e a escassez de áreas verdes intensificam as ilhas de calor, pois não há grande emissão de poluentes de origem industrial e de veículos”, comenta Sant’Anna Neto. Mesmo localidades diminutas, como Alfredo Marcondes, município vizinho a Presidente Prudente com 3,8 mil moradores, apresentam a alteração climática. Diferenças de 2,5°C foram medidas entre sua área urbana e as porções rurais. “As ilhas de calor também são um problema de saúde pública e predispõem a ocorrência de doenças respiratórias e circulatórias em idosos e crianças”, diz o geógrafo.
Artigo científico
OLIVEIRA, D.O. e ALVALÁ, R.C.S. Observational evidence of the urban heat island of Manaus City, Brazil. Meteorologial Applications. Publicado on-line. 3 ago. 2012.