Há cinco anos, quando Sílvio Soares Macedo deu início ao projeto Quadro do Paisagismo no Brasil, QUAPÁ, o arquiteto descobriu de cara que a pesquisa teria uma bibliografia de referência bastante reduzida. Professor titular de Paisagismo da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU/USP) e atualmente lançando três livros de abordagens específicas sobre a matéria, ele conta ter-se surpreendido com a escassez de literatura referente ao tema. A saída foi reunir cerca de 20 alunos e ex-alunos da faculdade ligados ao Laboratório da Paisagem da FAU/USP e mandá-los literalmente a campo para dar início a um inventário das linhas projetuais dos espaços livres no Brasil, o que inclui o levantamento de todo tipo de praça, parque ou calçadão de cidades das cinco regiões do País.
Apesar da falta de registro e dos caminhos desordenados pelos quais se desenvolveram os projetos urbanos no Brasil, o que ocorre em praticamente toda a paisagem resultante de inserções em locais públicos e abertos do País, a equipe do QUAPÁ concluiu uma primeira etapa da pesquisa, o que significa a catalogação de mais de 2 mil projetos localizados em 35 cidades brasileiras e com um acervo de mais de 30 mil imagens. O trabalho teve o apoio da FAPESP, que investiu R$ 280 mil na execução do projeto, e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), responsável pelas bolsas para estudantes.
Não contentes em guardar o mapeamento na universidade, o grupo, comandado por Soares Macedo, abriu o resultado de seus esforços para o público. Entre as iniciativas, a montagem de uma sala na última edição da Bienal Internacional de Arquitetura, que se realizou em São Paulo no período de novembro a janeiro passados, com uma seleção de 30 imagens do projeto ampliadas em grande painéis, logo na entrada do Pavilhão Ciccillo Matarazzo, uma mostra com curadoria do autor e do arquiteto Mauro Font. A equipe também preparou um CD-Rom em associação com a Semiotic Systems intitulado Paisagismo Brasileiro: Guia de Praças e Parques , produzido por Luiz Fernando Meira e Fábio Namiki, contendo todo o banco de dados rastreados desde 1994.
No fim do ano passado, Soares Macedo lançou o livro Quadro do Paisagismo no Brasil (145 páginas, R$ 45,00), resultado da pesquisa e uma referência teórica e iconográfica do paisagismo nacional, que acabou tomando forma de um documento que descreve o comportamento da construção de paisagens no País nos últimos 200 anos. Com tiragem inicial de 5 mil exemplares, o livro está sendo distribuído para bibliotecas de universidades, livrarias e institutos culturais.
“No momento em que começamos a redigir o primeiro relatório do projeto, percebemos que o livro havia transcendido seu caráter técnico e poderia tomar forma de um trabalho de base para a discussão do paisagismo brasileiro”, descreve o autor, que fez, então, da lacuna acadêmica sobre estudos atualizados do paisagismo brasileiro, uma fonte nova de discussão e de desenvolvimento de novos projetos.
Os estilos
O trabalho de pesquisa foi árduo e dividido em três etapas. Na primeira, foi feito o levantamento paisagístico em 17 cidades, que já se sabia, de antemão, que tinham projetos de porte. Entre elas estavam várias capitais de Estados brasileiros e cidades de porte médio. A segunda etapa incluiu as demais capitais (à exceção de Palmas, TO) e novas cidades médias, chegando-se, na terceira etapa, às 35 cidades com projetos paisagísticos analisados. “Para o segundo livro, vamos incluir cidades que ficaram de fora, como Petrópolis, no Rio de Janeiro, Maringá e Cascavel, no Paraná, entre outras”, diz Sílvio Macedo.
Para realizar a pesquisa, a equipe do projeto foi diversas vezes a cada uma das cidades. O destino inicial eram as prefeituras, onde se encontravam as plantas dos parques, praças e calçadões das cidades, além, muitas vezes, de desenhos e fotografias. O material era remetido a São Paulo, analisado e feita a triagem. Em seguida, a equipe retornava à cidade para fazer o levantamento do atual estado daqueles locais, por meio de fotografias e desenhos. A triagem, segundo Sílvio Macedo, obedeceu a dois principais critérios: a importância daquele espaço urbano para a cidade e para a comunidade, mesmo que não tivesse nenhum arquiteto de renome como autor do projeto paisagístico, e/ou que o projeto fosse significativo dentro das três linhas de projetos paisagísticos (Ecletismo, Moderno e Contemporâneo) e se encontrasse bem conservado.
O Ecletismo, explica o arquiteto, é uma das correntes que compõem a paisagem construída no Brasil e descreve o tipo de projeto criado para a contemplação. A concepção eclética, a mais tradicional corrente projetual, é de origem totalmente européia, adaptada ao cotidiano nacional, a partir do século XIX. Esta influência é especialmente francesa e inglesa, sendo seus principais autores no Rio de Janeiro Glaziou e Villon. O Passeio Público, no Rio de Janeiro, de 1783, o primeiro projeto paisagístico no Brasil, é representativo dessa corrente. O estilo pode ser facilmente identificado pela presença de elementos como fontes, gazebos, quiosques e lagos, que, em geral, correspondem a imitações pictóricas de ícones europeus e pode ser observado em espaços nas capitais e nos mais distantes lugarejos do interior do Brasil.
A concepção Moderna diz respeito à criação de base nacionalista, feita de elementos essencialmente brasileiros e produzida sobre uma forte preocupação funcional e social, na qual se encaixa, por exemplo, a obra de Burle Marx. O primeiro espaço dessa vertente é o prédio do Ministério da Educação (antigo MEC) no Rio de Janeiro. Já a concepção Contemporânea é uma ruptura com o Moderno. “Trata-se de uma grande mistura, marcada principalmente pela colagem de muitas influências e pela liberdade de criação”, descreve o pesquisador. Soares Macedo acrescenta que o paisagismo chamado de Contemporâneo é fortemente marcado por traços de trabalhos franceses, espanhóis e ingleses antigos, o que inclui uma série de modelos e elementos de construção em desuso há muito tempo. Isso tudo junto com elementos do paisagismo japonês, francês, americano e espanhol contemporâneo, por exemplo.
Terceira corrente
A verificação da corrente de produção paisagística Contemporânea no QUAPÁ foi outra novidade no estudo de paisagismo brasileiro. Até então, os livros de referência sobre o tema identificavam o paisagismo como Eclético e Moderno. A pesquisa mostrou que existe essa terceira vertente, ainda em formação, mas presente em todo o País. O curioso é que esse tipo de trabalho já está em curso há pelo menos 15 anos no Brasil, mas, até então, segundo o grupo de pesquisadores, nada foi publicado a respeito. Ao menos nada que atingisse a dimensão nacional do QUAPÁ.
“O Brasil trata a obra de Burle Marx, o paisagista oficial do modernismo, como sua última vanguarda e, por isso, deixa de observar a importância do que de novo se vem construindo”, observa o autor. Isso não significa desmerecer o trabalho do paisagista, que teve diversos projetos incluídos na pesquisa. Assim, o livro conta com uma farta documentação da obra de Burle Marx, devidamente ilustrada por plantas e fotografias. Mas a inegável importância do paisagista está na sua posição de contestado e criador de novos parâmetros de comparação por meio de uma perspectiva histórica.
Descobertas
A rápida ramificação da pesquisa, que teve uma espécie de edição prévia em 1998, contendo 450 imagens de cerca de 300 espaços visitados, deve-se principalmente à sua Natureza desbravadora. “Descobrimos dados surpreendentes, como o fato de termos pelo menos 60 arquitetos com projetos bem articulados e bem executados trabalhando sozinhos por vários cantos do País em anonimato.” Entre esses cantos, o arquiteto destaca projetos que considera bastante sofisticados e permanecem “escondidos” do olhar dos centros de estudos, como praças de Teresina, no Piauí, ou de Belém do Pará.
“Outra constatação é que, se São Paulo sabe pouco do paisagismo carioca, o Rio de Janeiro sabe menos ainda do paulista, e assim por diante, ou seja, o Brasil não conhece a paisagem do Brasil”, sustenta Soares Macedo. Em um dos tópicos do livro Quadro do Paisagismo no Brasil , que trata de projetos urbanos, o arquiteto apresenta, por exemplo, a Praça Carlos Gomes, em Campinas, SP, e a Praça Dom Pedro II, em Belém, PA, como dois desses achados – desconhecidos por quem não vive nestes lugares -, que representam uma vertente da produção chamada de Ecletismo.
Nesse tópico, a pesquisa é apresentada com o apoio de fotografias de projetos, mostradas ao lado de suas plantas originais e, quando possível, de imagens de idades diferentes do mesmo local. Assim, são descritos e analisados, por exemplo, os projetos do Jardim da Luz, de São Paulo, a Avenida Central, do Rio de Janeiro, e o Parque Municipal René Giannetti, de Belo Horizonte. “Para essa comparação, e mesmo para que fosse possível obtermos medida de análises, uma das regras do levantamento foi rastrear apenas os projetos que tivessem documentos nas prefeituras das cidades visitadas.”
Cada trabalho catalogado é acompanhado dos acontecimentos históricos que o circundaram no momento de sua criação e construção. Partindo desde o trabalho de mestre Valentim, no século 18, cada autor é registrado dentro de seu contexto de produção. Assim, a pesquisa acaba por fazer algumas justiças históricas, lembrando de paisagistas como Reynaldo Dieberger e seu pai, João Dieberger, que juntos produziram mais de meio século de paisagismo no Brasil.
Do filho, o autor emprestou, além dos projetos, um texto sobre a produção de um jardim, escrito em 1928, que, no livro, abre o tópico dedicado ao Ecletismo: “A arte de fazer-se um jardim é a mesma como que se pinta uma tela, como se compõe uma poesia, ou se constrói uma casa. Como em todas as artes, distinguem-se ali os serviços bem acabados, onde a longa experiência e o gosto natural unem-se aos recursos do material e plantas”. Mas sem, entretanto, assumir algum tipo de tom de homenagem. “É apenas o levantamento atualizado da paisagem urbana brasileira, mais especificamente dos espaços abertos e públicos”, observa o professor. “A grande questão é que ninguém havia feito isso até hoje no País.”
Este ano, o grupo parte para uma nova fase de estudos que também abrangerá a produção de espaços privados, além de espaços públicos, mas que integram, de forma indireta, a paisagem pública. Mas também nesse momento, narra o pesquisador, várias teses nascidas no grupo do arquiteto estão em andamento. Em São Paulo, os pesquisadores Denise Franquini e Wolfgang Stechenko desenvolvem trabalhos de mestrado, e Fabio Robba, de doutorado. Em Campo Grande, MS, Guttenberg Weingartner desenvolve um doutorado e a arquiteta e professora Vera Tangari, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), concluiu sua tese de doutorado sobre o Rio de Janeiro.
Todos com trabalhos vinculados à pós-graduação da FAU/USP e utilizando dados do QUAPÁ. O projeto está nesse momento desenvolvendo a etapa final da segunda parte da pesquisa e ultimando o lançamento dos livros Parques Brasileiros e A Praça Brasileira, e do CD-Rom Quadro do Paisagismo no Brasil – A história do paisagismo brasileiro .
Perfil :
Sílvio Soares Macedo é arquiteto formado pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, onde é professor titular de Paisagismo e coordenador do Laboratório de Paisagem. Desenvolve, desde 1976, projetos de pesquisa na área de paisagismo, sendo autor de Higienópolis e Arredores, livro sobre as transformações urbanas sofridas pelo bairro do título. Edita a revista Paisagem e Ambiente , produzida na faculdade.
Projeto :Quadro do Paisagismo no Brasil
Investimento : R$ 280 mil