Com o auxílio de imagens tridimensionais produzidas pelo acelerador de partículas UVX, localizado em Campinas, interior de São Paulo, pesquisadores brasileiros estão observando em detalhes como o vírus mayaro se instala no organismo e os danos que provoca em diferentes órgãos e tecidos. Isolado pela primeira vez em 1954 na ilha de Trinidad e Tobago, no Caribe, o vírus é transmitido para os primatas – em especial, os macacos – pela picada de mosquitos do gênero Haemagogus, comuns em áreas de floresta úmida e transmissores do vírus da febre amarela. O mayaro já foi detectado em ao menos 14 países das Américas Central e do Sul, entre eles o Brasil, e causa nos seres humanos uma doença febril leve, que dura por volta de uma semana. Marcada por dores de cabeça, nos músculos e nas articulações, além do surgimento de manchas vermelhas na pele, a infecção pelo mayaro pode, no entanto, evoluir para uma inflamação prolongada e dolorosa nas articulações, tão incapacitante quanto a provocada por um vírus aparentado, o causador da febre chikungunya.
Em um dos laboratórios do Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM), onde funcionava o UVX, o grupo liderado pelo biólogo Rafael Elias Marques inoculou pequenas quantidades do vírus em uma das patas traseiras de camundongos e observou o que ocorria durante alguns dias. Os roedores haviam sido geneticamente modificados para serem menos resistentes à infecção viral e, assim, permitir simular a infecção em pessoas que adoecem mais gravemente. Os resultados, publicados em março no International Journal of Molecular Sciences, revelaram dois tipos de efeito: um local e outro sistêmico.
Já nos primeiros dias, o vírus provocou um intenso edema na pata, que afetou tanto a pele quanto os músculos, ligamentos e articulações. “O volume aumentou gradualmente, mas sofreu um incremento mais marcante a partir do terceiro dia, quando estava 50% maior do que as patas de animais não infectados”, conta a bióloga Ana Carolina de Carvalho, que faz doutorado sob a orientação de Elias Marques. Os pesquisadores atribuem o inchaço à inflamação gerada pela replicação do mayaro, que atrai células de defesa para o local em que o vírus se reproduz.
Calcular como avançou o volume do edema, segundo Carvalho, só foi possível com o uso de potentes raios X emitidos pelo UVX, a primeira fonte de luz síncrotron do hemisfério Sul. A luz gerada por esse equipamento permite visualizar estruturas com poucos micrômetros (milésimos de milímetro) de tamanho, resolução semelhante à dos mais potentes microscópios ópticos, mas com diferenças importantes. Essa forma de radiação atravessa a pele e permite gerar imagens tridimensionais de tecidos moles, como tendões, músculos e articulações, sem destruir a amostra. “Conseguimos criar um filme dessas estruturas em 3D e em alta resolução”, relata a pesquisadora, que assina o artigo do International Journal of Molecular Sciences como primeira autora. O UVX foi desativado no final de 2018 e substituído pelo Sirius, uma das mais modernas e potentes do mundo, já em atividade (ver Pesquisa FAPESP nº 269).
À medida que se multiplicava nos tecidos da pata, o mayaro também se espalhava rapidamente pelo corpo. Análises de células e tecidos mostraram que, no mesmo dia da infecção, já havia quantidades elevadas de vírus no baço e no fígado. O agente infeccioso levou pelo menos mais um dia para chegar ao cérebro dos animais, de acordo com o estudo, do qual participaram pesquisadores da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), da Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto (Famerp) e de instituições na Alemanha e na Bélgica. No quarto dia do experimento, todos os animais infectados haviam morrido.
“O trabalho foi muito bem-feito”, afirma o virologista Pedro Vasconcelos, pesquisador da Universidade do Estado do Pará (Uepa) e do Instituto Evandro Chagas, centro no qual o o mayaro foi identificado no Brasil, também em 1954. “As imagens mostram com riqueza de detalhes o efeito do vírus, indicando onde ele se aloja e o que causa nas articulações”, conta o pesquisador, que não participou do estudo atual. Vasconcelos ressalta, no entanto, que a infecção se disseminou muito mais rapidamente nos animais do que o que se observa em seres humanos, uma vez que os roedores eram geneticamente alterados para ter um sistema de defesa menos eficiente.
A equipe do CNPEM planeja agora usar as fontes de luz do Sirius, mais potentes que as do UVX, para observar como o vírus infecta as células. “Num futuro próximo, queremos usar técnicas bioquímicas para marcar as moléculas envolvidas na infecção e, com a nova fonte de luz síncrotron, observar o vírus entrando nas células e se espalhando pelo corpo em tempo real”, conta Carvalho. Usando uma técnica de microscopia capaz de identificar a estrutura de biomoléculas com resolução próxima da escala atômica (criomicroscopia eletrônica), o grupo de Elias Marques já havia elucidado a estrutura do mayaro em 2021 e publicado o resultado na Nature Communications.
Desde que foi identificado pela primeira vez no Brasil, em Belém, o vírus já provocou ao menos cinco surtos em seres humanos em países cobertos pela floresta Amazônica, com cerca de 1,4 mil casos suspeitos e um pouco mais de uma centena confirmados, sem relato de mortes. Também já foi detectado no estado de São Paulo e, em março deste ano, no Paraná, levado por pessoas que haviam se infectado em áreas de risco. Especialistas em vírus transmitidos por insetos (arbovírus) temem que o mayaro possa se adaptar ao mosquito Aedes aegypti, transmissor do vírus da dengue, e chegar aos centros urbanos. Segundo Vasconcelos, testes realizados em laboratório já mostraram que o vírus é capaz de infectar o mosquito A. aegypti, algo que ainda não se observou ocorrer espontaneamente em ambientes naturais. Não há vacina aprovada contra o mayaro, embora existam três em desenvolvimento, nem tratamento para a infecção causada por ele, que costuma ser confundida com a febre provocada pelo chikungunya, por causa dos sintomas parecidos. Para distinguir uma da outra, é necessário realizar testes que detectam o material genético do vírus ou anticorpos contra ele.
Projetos
1. Mecanismos de doença e resistência envolvidos na febre do mayaro em camundongos (nº 18/03917-6); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Rafael Elias Marques Pereira da Silva (CNPEM); Investimento R$ 205.636,10.
2. Caracterização e potencial terapêutico de quimiocinas em sepse e encefalite induzida por flavivírus (nº 18/10990-1); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Rafael Elias Marques Pereira da Silva (CNPEM); Investimento R$ 270.044,24.
3. Desenvolvimento do primeiro modelo experimental de infecção por vírus Ilhéus (ILHV) em camundongos e delineamento de estratégias terapêuticas (nº 18/02993-0); Modalidade Bolsa de Doutorado; Pesquisador responsável Rafael Elias Marques Pereira da Silva (CNPEM); Beneficiária Ana Carolina de Carvalho; Investimento R$ 323.160,78.
4. Estabelecimento de um modelo de infecção por usutu virus em camundongos: Estudo da doença e teste de um composto neuroprotetor (nº 18/02594-9); Modalidade Bolsa de Doutorado; Pesquisador responsável Rafael Elias Marques Pereira da Silva (CNPEM); Beneficiária Rebeca de Paiva Froes Rocha; Investimento R$ 274.749,47.
Artigos científicos
DE CARVALHO, A. C. et al. Characterization of systemic disease development and paw inflammation in a susceptible mouse model of mayaro virus infection and validation using X-ray synchrotron microtomography. International Journal of Molecular Sciences. 2 mar. 2023.
RIBEIRO-FILHO, H. V. et al. Cryo-EM structure of the mature and infective mayaro virus at 4.4 Å resolution reveals features of arthritogenic alphaviruses. Nature Communications. 24 mai. 2021.