A disseminação do novo coronavírus, desde o início do ano, e a crise econômica que se instalou no Brasil e em boa parte dos países mais afetados pela pandemia impactaram fortemente o setor de bioenergia. Em um primeiro momento, as vendas de biocombustíveis chegaram a cair quase 50% em decorrência do isolamento social e da restrição à mobilidade urbana. Em seguida, a queda no preço do petróleo deixou a gasolina mais barata, tornando o etanol e o biodiesel menos vantajosos para o consumidor. Uma estratégia para enfrentar o problema é estimular governos a incluírem ações favoráveis ao uso de bioenergia em programas de recuperação econômica para que o setor se fortaleça na pós-pandemia. Essa é a proposta da Plataforma para o Biofuturo, sediada na Agência Internacional de Energia (IEA), em Paris, na França, que reúne representantes dos setores público e privado de 20 países com a missão de subsidiar políticas de expansão dos biocombustíveis no mundo.
A iniciativa lançou nesta quarta-feira (12/8) um conjunto de princípios para orientar governantes no processo de tomada de decisão (ver quadro). O principal objetivo é garantir o crescimento da economia global a partir de medidas de curto prazo que favoreçam o desenvolvimento sustentável. Entre as recomendações, destacam-se a criação de pacotes governamentais para estimular a retomada da produção de biocombustíveis e a revisão dos subsídios direcionados aos combustíveis fósseis, tendo em vista a atual baixa no preço do petróleo.
De acordo com o comunicado divulgado pela Biofuturo, a produção de combustíveis precisa entrar definitivamente nos planos de recuperação econômica dos países atingidos pela pandemia de Covid-19. Embora tenha atingido um recorde de 162 bilhões de litros de biocombustíveis em 2019, a expectativa é que a produção sofra redução de 20 bilhões de litros (13%) em 2020, retornando aos níveis de produção de 2017. Para além do etanol e do biodiesel, a plataforma chama a atenção para a necessidade de investimentos em outras fontes de energia renovável, entre elas o biometano, um combustível em forma de gás obtido após o processo de degradação de matéria orgânica, como resíduos da colheita e dejetos de animais.
Setor negligenciado
A produção de energias renováveis é fundamental para promover uma transição energética para a economia de baixo carbono. No entanto, a bioenergia ainda é negligenciada pelo poder público, afirmou, em nota, o economista turco Fatih Birol, diretor-executivo da IEA.
Há uma preocupação especial com o fato de o setor ser intensivo em mão de obra, empregando cerca de 3 milhões de pessoas em todo o mundo, e de ter sido um dos mais afetados pela pandemia do novo coronavírus, alertou Birol. Os princípios delineados pela Plataforma para o Biofuturo buscam mostrar aos tomadores de decisão que a bioeconomia representa uma maneira econômica de gerar empregos e, ao mesmo tempo, cumprir metas de redução de emissões de gases de efeito estufa. Para estimular o setor, uma solução é que os governos estipulem metas de desenvolvimento sustentável como condição para apoiar setores impactados pela crise, como o de transporte urbano e o de aviação.
“Tivemos o cuidado de aprovar diretrizes mais gerais, dada a grande disparidade entre as realidades de cada país”, explica Renato Domith Godinho, chefe da Divisão de Promoção de Energia do Ministério das Relações Exteriores brasileiro e o atual presidente da Biofuturo. Ainda assim, as orientações da plataforma, dirigidas a governos, agências de fomento e empresas, são lastreadas por exemplos bem-sucedidos.
Exemplos a seguir
Uma referência é a Política Nacional de Biocombustíveis (RenovaBio), que entrou em vigor este ano no Brasil. Criado por decreto em 2018, o programa busca revigorar a indústria de bioenergia do país e reduzir as emissões de poluentes conforme compromisso assumido pelo governo brasileiro na Conferência de Paris, em 2015 (ver Pesquisa FAPESP nº 266). Godinho explica que os biocombustíveis embutem as chamadas externalidades positivas, ou seja, o uso de combustíveis renováveis gera benefícios mais amplos para a sociedade, como o fato de serem menos poluentes que combustíveis fósseis e outros ganhos ambientais.
“O mecanismo estabelecido pelo RenovaBio reconhece essas externalidades, recompensando a produção de energia limpa”, avalia Godinho. Segundo estimativa da Empresa de Pesquisa Energética (EPE), vinculada ao Ministério das Minas e Energia, o RenovaBio tem potencial para elevar a oferta de etanol dos atuais 31 bilhões de litros anuais para 49 bilhões de litros e, com isso, oferecer mais biomassa para a geração elétrica, que poderá alcançar 34 mil gigawatt-hora (GWh) em 2030 (ver Pesquisa FAPESP nº 286).
A Plataforma para o Biofuturo também destaca ações de outros países, como a França, que anunciou um pacote de US$ 17 bilhões para o setor aéreo, incorporando metas sustentáveis para ampliar o uso de biocombustíveis em aeronaves. Já a Índia se comprometeu a incluir 20% de etanol na gasolina até 2030. A União Europeia (UE) estabeleceu metas mais ambiciosas no âmbito do Renewable Energy Directive (RED), a política de energias renováveis do bloco. A nova versão do programa, o RED II, estabelece uma meta de energia renovável em toda a UE de 32% até 2030.
A queda do Produto Interno Bruto (PIB) mundial, causada pela pandemia (ver Pesquisa FAPESP nº 292), abre uma janela de oportunidade para que diversos países reavaliem a necessidade de continuar fornecendo subsídios aos combustíveis fósseis, observa a bioquímica Glaucia Mendes Souza, do Instituto de Química da Universidade de São Paulo (IQ-USP) e membro da coordenação do Programa FAPESP de Pesquisa em Bioenergia (Bioen) – que oferece apoio técnico como um dos parceiros da Plataforma BioFuture.
“Há evidências científicas que mostram que a bioenergia pode ser capaz de aumentar a produtividade da terra, ao integrar, por exemplo, a produção de milho e de cana para a produção de etanol, ou de soja e dendê para o biodiesel, com a agricultura ligada ao abastecimento de alimento”, diz Souza, citando como fonte o relatório Bioenergy & sustainability: Bridging the gaps, lançado em 2015 pelo Comitê Científico para Problemas do Ambiente (Scope), sob a coordenação do Bioen. O estudo mostrou que a produção de bioenergia em áreas rurais mais pobres também pode impulsionar a economia local, criando empregos e mercado (ver Pesquisa FAPESP nº 231).
“Para que os princípios da Plataforma para o Biofuturo tenham influência global, é preciso fazer com que o conhecimento científico gerado no campo da bioenergia chegue aos tomadores de decisão”, afirma Souza. “Por isso, dialogamos estreitamente com órgãos de governos e outros atores envolvidos, como empresários e organizações não governamentais, num esforço contínuo não só de tornar dados científicos mais acessíveis, mas também de colocar a ciência como um dos braços essenciais da política externa.”
Diplomacia científica
De acordo com Godinho, um dos méritos do documento lançado pela Plataforma para o Biofuturo é evidenciar a importância do apoio que pesquisadores podem dar a negociações diplomáticas e tratados internacionais. “A tarefa de convencer políticos e autoridades mundo afora a incluir a bioeconomia em programas de retomada do crescimento econômico exige o esforço conjunto de cientistas e diplomatas.”
Do ponto de vista das relações internacionais, a iniciativa da Biofuturo é um bom exemplo de como a diplomacia científica pode ser utilizada como instrumento de cooperação internacional, avalia Amâncio Jorge de Oliveira, do Departamento de Ciência Política da USP e coordenador científico do Centro de Estudos das Negociações Internacionais do Instituto de Relações Internacionais (Caeni-IRI-USP). “Na economia política, discute-se hoje a iminência de uma forte retomada de ações unilaterais e protecionistas, impulsionada pela ideia de que os países precisam ser autossuficientes para não depender de insumos hospitalares, como equipamentos de proteção individual e respiradores”, diz Oliveira. “A pandemia acentuou o sentimento de risco de dependência internacional em situações emergenciais, justificando, equivocadamente, posturas extremamente nacionalistas.”
Por outro lado, observa Oliveira, iniciativas como a Plataforma para o Biofuturo mostram que, para ganhar escala mundial, o setor de biocombustíveis depende de negociações multilaterais. “Um documento elaborado por 20 países tem muito mais peso no cenário global do que se fosse gestado por apenas uma nação.”
A Plataforma para o Biofuturo é uma iniciativa liderada por representantes governamentais de 20 países: Brasil, Argentina, Uruguai, Paraguai, Canadá, China, Dinamarca, Egito, Finlândia, França, Índia, Indonésia, Itália, Marrocos, Moçambique, Holanda, Filipinas, Suécia, Reino Unido e Estados Unidos, aberta também à participação de organizações internacionais, indústria e academia. O objetivo é apoiar iniciativas de desenvolvimento sustentável com base na coordenação internacional e multilateral em torno da chamada bioeconomia – que é a utilização sustentável de recursos naturais para a produção de bens e serviços em vários setores da economia, como o de transportes e geração de energia.
A Biofuturo foi lançada durante a 22ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, realizada em 2016 no Marrocos. Desde 2019, a plataforma é apoiada pela Agência Internacional de Energia (IEA), que exerce as funções de facilitadora. No momento, a Biofuturo é presidida pelo Brasil, por um mandato de dois anos. A principal missão da Plataforma para o Biofuturo é promover a troca de experiências e informações a fim de apoiar a criação de políticas e estímulos para expandir a produção sustentável e o mercado de bioenergia, biomateriais e biocombustíveis, inclusive os de segunda geração, obtidos a partir de celulose.