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Clonagem

Injeções de vida: clonagem e terapia celular

A técnica de transferência de núcleo é só uma das fontes possíveis de células para reparar tecidos e órgãos

… células primitivas da medula óssea regeneram o miocárdioin vivo, substituindo o tecido morto.
Orlic D, et al. Nature 410:710 – 705, 2001
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A conclusão acima refere-se a um experimento em camundongos, mas seus resultados estão começando a ser transferidos para o homem, realizando um sonho da medicina que parecia distante há poucos anos: dispor de uma fonte abundante de células para reparar tecidos e órgãos lesados. O princípio da terapia celular é simples: restaurar a função de um órgão ou tecido, transplantando novas células para substituir as células perdidas pela doença, ou substituir células que não funcionam adequadamente devido a um defeito genético.

Esse princípio não é novo em medicina. Por exemplo, a sua forma mais simples, a transfusão de células do sangue (hemácias, granulócitos, plaquetas), é uma das abordagens terapêuticas mais amplamente utilizadas no mundo, assim como numerosas formas de transplantes de órgãos e tecidos, como os transplantes de medula óssea, de rim, de fígado, de coração ou de pulmão. No entanto, esses transplantes de órgão inteiro são limitados porque somente se aplicam a algumas situações clínicas. Há uma escassez de doadores e os custos podem ser muito elevados, superiores a US$ 100 mil no caso de transplante de fígado e, além disso, são procedimentos invasivos, associados com mortalidade elevada.

Uma alternativa seria utilizar células indiferenciadas (células-tronco), injetadas na circulação ou no local da lesão, na expectativa de que elas se diferenciem em células especializadas daquele tecido ou órgão, substituindo as células defeituosas ou destruídas. Para isso, é necessário dispor de um suprimento de células-tronco e conhecer os procedimentos para dirigir sua diferenciação no sentido desejado para aquele paciente.

O conhecimento de que uma única célula é capaz de dar origem a mais de 200 tipos diversos de células diferenciadas de tecidos adultos não é novo, pois constitui a premissa básica da embriologia: o óvulo fecundado divide-se, dando origem a um pequeno número de células idênticas no início do desenvolvimento embrionário. Com o crescimento do embrião, elas vão se diferenciando, cada uma capaz de dar origem a um número limitado de tecidos. No entanto, a identificação de células com esse potencial em tecidos dos adultos e a sua aplicação terapêutica são muito mais recentes.

As células-tronco podem ser classificadas em dois grupos: células-tronco embrionárias e células-tronco do adulto, específicas para cada órgão ou tecido. As embrionárias caracterizam-se pela sua capacidade ampla de originar as demais células do organismo e podem ser obtidas de três formas distintas. A maioria das linhagens de células embrionárias disponíveis é derivada de embriões em fase muito inicial de desenvolvimento, uma técnica desenvolvida por J. Thomson, da Universidade de Wisconsin. No 5º dia após a fecundação, o embrião é composto por cerca de 200 a 250 células, formando um cisto denominado blastocisto, cujas células são separadas em dois grupos: uma camada externa (o trofoectoderma), que vai constituir a placenta e o saco amniótico, e uma massa compacta de 30 a 34 células, localizada internamente em um dos pólos do cisto, que dará origem aos tecidos do feto.

Essas células da massa interna podem ser cultivadas in vitro e originar linhagens de células embrionárias capazes de diferenciar-se em tecidos de adultos. Um outro tipo de células embrionárias foi obtido inicialmente por J. Gearhart, da Universidade Johns Hopkins, a partir de 38 culturas de células germinativas embrionárias de fetos entre a 5ª e a 9ª semana de desenvolvimento. Essas células são retiradas de uma estrutura denominada prega gonadal e, posteriormente no adulto, vão originar os espermatozóides e os óvulos.

Uma terceira abordagem pode originar células-tronco embrionárias. Embora não tenha sido utilizada como fonte das linhagens de células registradas, essa técnica ganhou muito destaque na imprensa recentemente, quando pesquisadores da empresa Advanced Cell Techonology a utilizaram para produzir “embriões” humanos de quatro a seis células. A técnica, denominada transferência de núcleo somático, baseia-se na remoção do núcleo de um óvulo, que, em condições adequadas, funde-se com uma célula somática (naquele caso, fibroblastos da derme). Se esse “ovo” começar a dividir-se, poderá originar um embrião cujo patrimônio genético é o mesmo do doador da célula somática.

Por esse motivo, a técnica é popularmente conhecida como clonagem, pois pode teoricamente produzir numerosos adultos, todos com o mesmo patrimônio genético do doador. De fato, essa técnica foi utilizada por Ian Wilmut, do Instituto Roslin, para produzir a ovelha Dolly. A interrupção do desenvolvimento do “embrião” na fase de blastocisto pode originar uma linhagem de células embrionárias com o mesmo patrimônio genético do doador.

A produção de células embrionárias para pesquisa e terapêutica está cercada de intensa controvérsia ética. Assim, em agosto de 2001, o presidente dos Estados Unidos autorizou pesquisas com verba federal norte-americana envolvendo células embrionárias somente para linhagens estabelecidas previamente àquele anúncio, que atendessem a quatro critérios: as células derivaram de um embrião criado para fins reprodutivos, o embrião não era mais necessário para aquela finalidade, a doação do embrião foi feita após informação do responsável, e não houve incentivo financeiro para a doação.

Para essa finalidade foi criado um Registro de Linhagens de Células-Tronco Embrionárias, que conta hoje com 64 linhagens em laboratórios de diversos países (http://escr.nih.gov/). Muitos governos estão discutindo ou implantando legislação para disciplinar (em geral sem coibir) a pesquisa com células embrionárias. As células-tronco de adultos foram identificadas em numerosos tecidos, entre os quais o tecido nervoso, sistema hematopoético, muscular e epitélios (pele, tubo digestivo). A mais bem conhecida é a célula-tronco hematopoética, capaz de diferenciar-se em glóbulos vermelhos, nos diferentes tipos de glóbulos brancos e nas plaquetas.

A sua presença garante o sucesso dos diferentes tipos de transplantes de células hematopoéticas (chamados genericamente de transplantes de medula óssea). Quando a medula óssea do receptor é destruída por quimioterápicos ou irradiação, ela pode ser regenerada com células do doador. Essa forma de tratamento, que no Brasil já beneficiou mais de 4 mil pacientes, é empregada para um amplo espectro de doenças, como anemia aplástica, leucemias e linfomas. Além da medula óssea, essas células-tronco são encontradas no sangue do adulto e em grande quantidade no sangue fetal que fica retido na placenta após o parto (sangue de cordão umbilical). Essas células do cordão umbilical constituem uma excelente fonte para substituir a medula óssea no tratamento de numerosas doenças, e vários países criaram bancos de células de cordão umbilical para essa finalidade.

No entanto, essa estratégia não pode ser amplamente utilizada para outros órgãos ou tecidos, porque não dispomos de métodos práticos para isolar as células-tronco desses tecidos, como músculo e coração. Em alguns casos as células para transplante têm sido obtidas diretamente de fetos. Por exemplo, a doença de Parkinson é causada pela destruição progressiva de neurônios que usam dopamina como transmissor de sinais. Cerca de 300 pacientes foram até o presente tratados com implantação de tecido mesencefálico obtido de fetos abortados entre seis e nove semanas. Os neurônios implantados sobrevivem no cérebro do receptor por mais de dez anos, liberam dopamina e produzem uma melhora parcial da sintomatologia.

Apesar disso, esse tratamento não se converterá em tratamento de escolha dessa doença porque não há fonte suficiente de tecidos para transplante (cada tratamento usa seis a oito doadores), há dificuldades de se obter células viáveis e puras, a recuperação dos pacientes é apenas parcial e há problemas éticos. Quais as alternativas? O xenotransplante, em que se usa tecido cerebral obtido de animais, foi testado e não deu resultados clínicos satisfatórios. Resta a esperança de que se possam isolar células-tronco embrionárias ou nervosas, cultivá-las para ampliar seu número e dirigir sua diferenciação para que formem neurônios dopaminérgicos, para em seguida implantá-los. Um estudo recente demonstra que essa estratégia é viável: células embrionárias formam neurônios dopaminérgicos funcionais quando transplantadas em cérebro de camundongos adultos.

Até pouco tempo atrás, acreditava-se que cada tecido adulto tem um tipo próprio de célula precursora, com capacidade limitada de diferenciação. Mais recentemente, acumularam-se evidências, em animais e nos humanos, de que células-tronco dos adultos podem romper essas barreiras. Assim, células obtidas de medula óssea poderiam ser utilizadas para reconstituir fígado, cérebro, músculo ou coração, característica que tem sido chamada de plasticidade. Por exemplo, células de medula óssea, injetadas próximas às bordas de infarto experimental em camundongos, diferenciam-se em células musculares e vasculares, substituindo o miocárdio lesado.

Da mesma forma, células-tronco da medula óssea poderiam ser utilizadas para reparar o defeito da distrofia muscular, pois diferenciam-se em células musculares em camundongos com uma forma experimental da doença. Há ainda muito debate se esses resultados são devidos a células embrionárias totipotenciais que sobrevivem nos adultos ou células-tronco tecido-específicas que se transdiferenciam segundo uma nova linhagem quando estimuladas.

Existe hoje um grande entusiasmo quanto às possibilidades de empregar células-tronco para tratar numerosas doenças humanas. Os maiores desafios imediatos são a identificação de fontes abundantes de células purificadas e a padronização de métodos adequados para condicionar sua diferenciação no sentido do tecido necessário. No momento, as fontes mais promissoras para terapia são as células-tronco de adultos obtidas de medula óssea ou de sangue periférico, além daquelas que poderiam ser obtidas do sangue de cordão umbilical. O uso de linhagens de células embrionárias é mais problemático: apesar da vantagem de serem células purificadas com amplo potencial de diferenciação, sua manipulação ainda exige mais aperfeiçoamento até que possam ser amplificadas in vitro e dirigidas quando à sua diferenciação in vivo.

As linhagens obtidas por transferência de núcleo somático (“clonagem”) teriam a vantagem teórica de não determinar a rejeição, pois o tecido formado teria as características genéticas do doador do núcleo (o mesmo receptor do tecido). No entanto, o conhecimento sobre a imunologia desses tipos de transplantes de células embrionárias é ainda incipiente. Por exemplo, no caso de transplante de células hematopoéticas, o uso de células do cordão umbilical mostrou-se muito mais tolerante quanto à discrepância entre antígenos HLA do doador e do receptor do que os transplantes que utilizam células de medula de adulto. Com células muito mais “primitivas”, como as células embrionárias, essa tolerância poderia ser maior ainda.

Em resumo, a clonagem é apenas uma das fontes possíveis de células para terapia celular, que ofereceria a vantagem de produzir células imunologicamente idênticas às do paciente. Há numerosos problemas práticos que precisam ser resolvidos com relação ao isolamento, purificação, manipulação, diferenciação e aplicação de células para viabilizar o sucesso da terapia celular. Os recursos e a atenção da ciência e dos cientistas devem estar voltados para obter resposta para essas questões, antes que a clonagem ocupe uma posição prioritária nesse contexto. Mesmo assim, é necessário distinguir claramente a clonagem terapêutica da clonagem reprodutiva, tanto do ponto de vista prático quanto conceitual e ético.

Se o desenvolvimento do blastocisto obtido por transferência nuclear somática não for interrompido, há uma possibilidade muito baixa que complete seu desenvolvimento e origine um adulto; além disso, sua ontogênese o diferencia de embriões formados por fecundação natural ou in vitro. Por isso, seria talvez mais apropriado comparar aquela massa celular a um “tumor” benigno do que a um verdadeiro embrião, o que modificaria radicalmente sua posição no plano ético.

De qualquer forma, é necessário que a rejeição muito generalizada da sociedade à clonagem reprodutiva em humanos não comprometa o apoio necessário dessa mesma sociedade, dos cientistas e do governo às outras formas de pesquisas com células embrionárias para fins terapêuticos. Em particular, é essencial que empresas de biotecnologia, médicos e cientistas brasileiros não sejam impedidos de participar desse progresso, para não sermos condenados à posição exclusiva de usuários pagantes dessas novas tecnologias no futuro próximo.

Marco Antônio Zago é professor titular de Clínica Médica da Faculdade de Medicina da USP de Ribeirão Preto e coordenador do Centro de Terapia Celular

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