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Fomento

Inovações induzidas

Guia busca ampliar o uso de legislação sobre encomendas tecnológicas no Brasil

Um guia produzido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) reúne um conjunto de recomendações para ampliar o uso no Brasil das encomendas tecnológicas, um instrumento de estímulo à inovação ainda pouco adotado no país. Com 106 páginas, o manual orienta gestores públicos sobre como aplicar o poder de compra do Estado a fim de criar soluções para problemas de interesse da sociedade, como o desenvolvimento de vacinas ou tecnologias capazes de melhorar a mobilidade urbana. Também há informações sobre critérios para a escolha de fornecedores e as circunstâncias nas quais uma encomenda tecnológica é mais viável.

A publicação, disponível em bit.ly/IpeaEncomenda, expõe as oportunidades criadas pelo Decreto nº 9.283, editado em fevereiro de 2018 pelo governo federal, que regulamenta dispositivos da legislação sobre compras públicas. “Essa norma dá segurança jurídica para a administração federal contratar empresas que executem projetos de pesquisa e desenvolvimento [P&D] com alto risco tecnológico, como, por exemplo, uma vacina contra o vírus zika”, explica um dos autores do guia, o economista André Rauen, do Ipea.

Em sua maioria, as regras são ainda pouco utilizadas pela administração pública brasileira. Uma delas propõe a adoção de um método para determinar a maturidade tecnológica de um produto inovador, conhecido como TRL – acrônimo para Technology Readiness Level (ver infográfico). Criado pela Nasa, agência espacial norte-americana, na década de 1970, baseia-se em uma escala que vai de 1 (pesquisa básica) até 9 (produto no mercado): quanto mais madura é uma tecnologia, menor o risco contido nela. A encomenda se aplica a bens ou serviços que são potencialmente viáveis, mas ainda não existem, e deve ser feita idealmente entre as TRL 2 e 8. “Para produtos disponíveis, recomenda-se o uso de outros instrumentos, como licitação ou compra direta. E também não deve haver encomenda se a ideia ainda está em fase preliminar e depende de aprofundar ciência básica”, explica Rauen, que também colaborou na elaboração do decreto.

Outro dispositivo regula a remuneração, que pode ser feita em etapas do desenvolvimento definidas previamente. Isso garante que, mesmo que a solução almejada não seja obtida, a empresa receba em função do esforço de P&D despendido. O guia descreve cinco formas de pagamento, que vão do estabelecimento de um preço fixo até o reembolso do custo com o acréscimo de uma taxa extra. “Agora é possível customizar contratos de acordo com o grau de incerteza relacionado a cada projeto”, diz Rauen. A propriedade intelectual do eventual produto decorrente da encomenda também precisa ser discutida previamente. “Dependendo da complexidade da demanda, o Estado pode repassar total ou parcialmente os direitos de propriedade ao fornecedor. Essa concessão pode estimular a participação de empresas em uma encomenda”, observa Rauen.

Sugere-se, ainda, a criação de um comitê técnico de especialistas com experiência na aplicação de tecnologias para assessorar o gestor público que faz a encomenda. Cabe ao órgão monitorar a execução do contrato e avaliar se o projeto foi realizado da forma mais eficiente. “O comitê poderá também atestar o esforço de pesquisa feito pelos fornecedores e auxiliar a administração pública na compreensão de problemas científicos”, diz Rauen. Segundo o economista, o objetivo do guia é movimentar o sistema de inovação brasileiro. “No caso das encomendas, é o Estado que define exatamente qual resultado deve ser buscado. A tecnologia passa a ser o meio, e não o fim do processo”, ressalta. “Como as empresas privadas em geral são avessas ao risco inerente à inovação, o poder público deve internalizar parte desse risco de forma a incentivar projetos mais ousados na indústria. Do contrário, não haverá desenvolvimento tecnológico”, diz Rauen. O economista Carlos Grabois Gadelha, coordenador das Ações de Prospecção da presidência da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), explica que o risco de a tecnologia não ser incorporada pelo mercado também deve ser considerado. “Um dos fatores críticos para inovar é o horizonte de mercado. A inovação precisa ser absorvida pela sociedade.”

Lançado antes do decreto de 2018, o projeto Sirius, a nova fonte brasileira de luz síncrotron, seguiu uma abordagem semelhante à da nova legislação. Em desenvolvimento desde 2012 no Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM), em Campinas (SP), o Sirius envolveu o esforço articulado de mais de uma centena de fornecedores, na maioria empresas brasileiras de alta tecnologia (ver Pesquisa FAPESP nº 269). “Boa parte dos componentes demandados não estava disponível no mercado”, conta o físico Antonio José Roque da Silva, diretor-geral do CNPEM e responsável pelo Sirius. Como era alto o risco tecnológico para a criação de vários componentes, o centro – que é uma organização social supervisionada pelo Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações – optou por associar o pagamento dos fornecedores a cada etapa concluída. Em alguns casos, mais de uma empresa foi contratada para desenvolver um determinado tipo de equipamento. Os melhores protótipos foram escolhidos e um conjunto menor de empresas foi contratado para efetivamente fabricar os produtos. Uma das principais empresas parceiras do projeto foi a brasileira WEG, especializada na produção de motores elétricos, que foi contratada, entre outras encomendas, para entregar 1.036 eletroímãs que guiam a trajetória dos elétrons nos aceleradores de partículas (ver reportagem). “Trabalhando nessa iniciativa, a empresa testou sua capacidade tecnológica e ganhou musculatura para atuar em projetos científicos de grande porte”, afirma Luís Alberto Tiefensee, diretor da WEG.

Mesmo antes de haver uma legislação apropriada, o poder de compra do Estado já foi usado diversas vezes para impulsionar projetos ambiciosos no Brasil. Durante os governos militares (1964-1985), por exemplo, encomendas tecnológicas ajudaram a fortalecer a pesquisa em empresas como Embraer e Petrobras. Os primeiros aviões da Embraer foram encomendados pelo governo brasileiro, o que permitiu à empresa desenvolver tecnologias e se projetar como um dos principais fabricantes do mundo. Em anos recentes, o maior cargueiro militar já construído no país, o KC-390, foi desenvolvido pela empresa a partir de um pedido feito em 2009 pela Força Aérea Brasileira (FAB), que precisava de uma aeronave para o transporte de tropas, cargas e operações de resgate. A FAB optou por adquirir dois protótipos ao custo total de R$ 3 bilhões, por meio de um processo comum de dispensa de licitação, justificado pela ausência de outros potenciais concorrentes. Mas o contrato não previa o eventual fracasso atrelado ao risco tecnológico do projeto. “Mesmo na presença do risco, os protótipos tinham de ser entregues. Felizmente isso ocorreu, mas esse tipo de aquisição delegou todo o risco ao fornecedor”, explica Rauen.

O arcabouço jurídico criado no país em 2004 com a Lei de Inovação já permitia a contratação de empresas e instituições sem fins lucrativos para a realização de atividades de P&D sem necessidade de licitação. As regras, porém, não estavam estipuladas com clareza, afirma Rauen. Segundo ele, isso ajuda a explicar o fato de o governo ter destinado apenas R$ 150 milhões para encomendas tecnológicas em um período de cinco anos, de 2010 a 2015 – uma quantia considerada muito pequena, diz Rauen.

Infográfico Alexandre Affonso

A encomenda de produtos e soluções tecnológicas ocorre há décadas em países como os Estados Unidos, onde aproximadamente 30% dos gastos públicos com P&D são investidos em compras dessa natureza. A Federal Acquisition Regulation (FAR), lei que regulamenta as compras públicas no país desde 1974, foi uma das fontes de inspiração do decreto brasileiro. A FAR reconhece a relação do Estado com fornecedores privados como uma parceria e não apenas uma transação comercial rotineira. “Um dos setores que mais se beneficiaram das compras públicas nos Estados Unidos é o de Defesa”, pontua o economista Nicholas Vonortas, professor da Universidade George Washington, autor de estudos sobre o sistema de inovação brasileiro. Atualmente, 90% do orçamento da Agência de Pesquisa Avançada de Defesa (Darpa), estimado em US$ 3 bilhões, é direcionado para encomendas. Atribuem-se a projetos iniciados na agência o desenvolvimento da tecnologia stealth, usada para ocultar aviões e submarinos militares, a primeira transmissão sem fio da Arpanet, precursora da internet, e o sistema de posicionamento por satélite (GPS).

Outra referência para a legislação brasileira, informa Rauen, é o Horizonte 2020, principal programa científico da União Europeia, com orçamento de € 76,4 bilhões para o período 2014-2020. Um terço desse valor é aplicado em encomendas, que na Europa são chamadas de compras pré-comerciais (PCPs) – bastante comuns no campo da saúde. Um dos projetos beneficiados pelo Horizonte 2020 é o Magic, um consórcio formado por instituições da Irlanda do Norte e da Itália para encontrar soluções que melhorem a qualidade de vida de pessoas que sofreram acidente vascular cerebral. “A iniciativa está na fase de ensaios clínicos, com três empresas testando protótipos”, diz Julie-Ann Walkden, coordenadora do projeto no Departamento de Saúde da Irlanda do Norte. Um deles é um dispositivo que utiliza inteligência artificial para monitorar o desempenho de pacientes em fisioterapia.

Além da capacidade de identificar problemas cujas soluções não se encontram no mercado, o Estado também precisa acompanhar os rumos da pesquisa no mundo, diz o engenheiro português Hugo Tamagnini Gonçalves, especialista em compras públicas. “A administração pública precisa entender as limitações tecnológicas em produtos já comercializados e quais desafios são enfrentados por instituições acadêmicas”, diz Gonçalves, que é gerente de desenvolvimento de projetos do Fórum Virium de Helsinque, na Finlândia. A organização é responsável pelo projeto Fabulos, consórcio formado por seis países para adquirir uma frota de micro-ônibus autônomos. A iniciativa ainda está na fase de estudos teóricos e conta com um orçamento de € 5,5 milhões – dos quais 90% são de recursos do Horizonte 2020 e 10% fornecidos pelos integrantes do consórcio.

Transferência de tecnologia
Se as encomendas tecnológicas ainda não são muito comuns no Brasil, um modelo parecido ganhou terreno no país nos últimos anos, em particular na área da saúde. Desde 2012, o governo utiliza o poder de compra do Sistema Único de Saúde (SUS) de forma mais organizada a fim de internalizar a produção de bens que pesam na balança comercial, em uma estratégia denominada Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo (PDPs). A diferença em relação às encomendas tecnológicas é que, no caso das PDPs, o medicamento ou o equipamento médico já existe e sua utilização no SUS depende de importação. As aquisições destinadas à saúde somaram, em 2015, um montante superior a R$ 16 bilhões, mais de um terço do total de compras federais. Um caso representativo é o do imunossupressor tacrolimo, capaz de diminuir a atividade do sistema imunológico para prevenção da rejeição do organismo a órgãos transplantados. O fármaco é utilizado continuamente por cerca de 30 mil pessoas no país e atualmente é produzido pelo Instituto de Tecnologia em Fármacos (Farmanguinhos), da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), no Rio de Janeiro. “As PDPs ajudaram o Brasil a adquirir habilidades em biotecnologia a partir da absorção de novos conhecimentos”, avalia Carlos Gadelha, economista da Fiocruz e secretário de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde entre 2011 e 2015. Para Gadelha, projetos de inovação incremental, que resultem do aperfeiçoamento de tecnologias existentes, também precisam estar no radar dos gestores públicos.“A solução para vários problemas do país não depende apenas de inovações radicais. Por meio de transferência de tecnologia é possível aumentar o nível de P&D das empresas”, explica.
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