Tem sido amplamente reconhecida, nos estudos populacionais, a importância das questões de gênero e sexualidade. Ao contrário das categorias de “sexo”, utilizadas nas análises anteriores, a dimensão de gênero enriquece as análises incorporando componentes culturais e psicológicos. Segundo Bourdieu, “como estamos incluídos, como homem ou mulher, no próprio objeto que nos esforçamos por apreender, incorporamos, sob a forma de esquemas inconscientes de percepção e de apreciação, as estruturas históricas da ordem masculina; arriscamos-nos, pois, para pensar a dominação masculina, a modos de pensamento que são eles próprios produtos da dominação”. Sair desse círculo vicioso requer estratégias específicas. De alguma forma, o texto em discussão se propõe a ser uma documentação de uma prática para escapar dessa circularidade.
Interfaces – Gênero, Sexualidade e Saúde Reprodutiva, organizado por Regina Maria Barbosa, Estela Maria Leão de Aquino, Maria Luiza Heilborn e Elza Berquó, se coloca na introdução como um veículo de divulgação dos resultados do Programa Interinstitucional de Treinamento em Metodologia de Pesquisa de Gênero, Sexualidade e Saúde Reprodutiva. O programa é um sucesso, e a coletânea de artigos atestam para tal. Os temas espelham a vasta gama de preocupações e práticas dos pesquisadores envolvidos nos cursos.
A abrangência das áreas geográficas estudadas, porém, mostra uma realidade mais restrita: mais da metade dos textos tem como referência segmentos populacionais do Rio de Janeiro e três outras giram em torno de grupos em Salvador.
Particularmente interessantes são as conclusões individuais e o levantamento de hipóteses para outras pesquisas. Monteiro reforça a informação de que as políticas sociais de formação para o trabalho estão mais voltadas para o sexo masculino, possivelmente pela consideração de que esse universo é mais vulnerável à marginalização do que o feminino. De alguma forma, as meninas têm conseguido um maior avanço na escolaridade do que os meninos e criado mais empecilhos a esse tipo de envolvimento. Torres descreve “Eros e Pathos” e a dominação masculina na entrada de jovens na sexualidade. Moraes discute a alteridade no olhar de outro grupo de jovens e como essa visão institucional classifica, rotula e de alguma forma conforma o comportamento dos mesmos.
Fábregas-Martinez revela as verbalizações sobre as transposições dos papéis masculino/feminino no contexto da prostituição masculina e a adaptação do discurso necessária para uma afirmação da identidade. Brigeiro descreve uma “gangue”/clube do bolinha de homens na terceira idade com suas regras de sociabilidade e um envelhecimento “bem-sucedido”, porém mantendo a separação público (masculino)/privado (feminino). Reis apresenta, em contraponto, análise sobre a menopausa e as representações sociais assimétricas no “mercado da sedução”. Domingues mostra a importância na percepção de parturientes de um hospital no Rio de Janeiro de acompanhantes familiares (principalmente o pai da criança ou a própria mãe da parturiente) ou de doulas (mulheres leigas treinadas para oferecer suporte emocional no trabalho de parto e parto).
Britto e Alves dá uma visão mais geral de todo o processo e avalia as condições a que estão submetidas as parturientes em quatro hospitais de Salvador. Vargas olha o reverso da medalha na infertilidade feminina e na procura por uma gravidez que asseguraria uma identidade feminina. Franco revela a mediação que as instituições públicas (no caso a DPM) oferecem às relações privadas entre casais das classes mais populares. Analisam o impacto do trabalho noturno no cotidiano das famílias e como, mesmo numa posição mais estressante de trabalho, ainda se reafirmam os papéis sociais.
Um livro que vale a pena ser lido.
Kaizô I. Beltrão é superintendente da Escola Nacional de Ciências Estatísticas do IBGE
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