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Entrevista

Edison Luiz Durigon: Intimidade de alto risco

Os vírus causadores de doenças respiratórias mudam de tempos em tempos e forçam uma convivência prejudicial aos homens, diz virologista Edison Luiz Durigon

EDUARDO CESARO vírus, dissílabo que soa muito familiar à maior parte das pessoas e que desde abril, na sua vestimenta A H1N1, tornou-se personagem diária, às vezes de visibilidade escandalosa, na mídia de todo o planeta, ainda é capaz de intrigar, e muito, os cientistas que dedicam a vida a decifrá-lo. Para começar: trata-se de um organismo vivo? Não, ele não é classificado como ser vivo. Quando está fora da célula, é só um elemento químico. Mas, dentro dela, torna-se uma partícula infecciosa com enzimas e sequências de nucleotídeos que fazem com que se replique e se comporte como ser vivo. Quem explica assim o caráter ambíguo e ambivalente do vírus é Edison Luiz Durigon, 53 anos, professor titular e chefe do Laboratório de Virologia do Departamento de Microbiologia do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (USP). Outra questão: há vírus benéficos para o organismo humano, da mesma forma como há bactérias fundamentais para o metabolismo adequado do corpo do Homo sapiens? Não, ao que se sabe até aqui, nos diz Durigon. Nem todos produzem patologias, há os que permanecem inertes pela vida inteira até, mas não se conhecem benefícios de sua lavra.

Com a pandemia da gripe A H1N1 que começou entre março e abril passados no hemisfério Norte, e que a essa altura ainda está se alastrando no hemisfério Sul, o professor Durigon tem se visto à volta com essas e outras perguntas mais pragmáticas que lhe são apresentadas por médicos, jornalistas e outros profissionais empenhados em explicar as origens, a evolução e os perigos de uma gripe que inicialmente se chamou de suína. E ele parece dar conta da tarefa com gosto. Um dos mais respeitados virologistas do país, coordenador da Rede de Diversidade Genética de Vírus (VGDN), montada em 2000 com o apoio da FAPESP, Durigon dedica-se desde os anos 1980 à pesquisa de vírus. Primeiro, seu grupo se debruçou sobre os rotavírus causadores de diarreia, e ele está seguro de que contribuiu para a clara noção, preciosa para salvar tantas vidas, de que as diarreias infantis eram prioritariamente causadas por vírus, e não por bactérias. Depois, nos anos 1990, ele se voltou para os vírus relacionados a problemas respiratórios, incluindo os influenza. Os avanços obtidos nessa área o capacitaram a montar uma série de incursões pelo país, já na presente década, para monitorar nas aves migratórias o risco de entrada da chamada gripe aviária no Brasil.

Nesta entrevista Edison Durigon, que tem um pós-doutorado pelo Centro de Controle de Doenças Infecciosas (CDC), de Atlanta, nos Estados Unidos, fala sobre o A H1N1, a gripe que ele provoca, e trata de muitos outros vírus, com suas mutações, incertezas e ameaças.

O que há de específico no vírus da gripe suína, o A H1N1, e o que o diferencia dos outros tipos de vírus influenza?
Ele é diferente. Temos dois vírus que circulam há bastante tempo na população humana. São o H3N2 e o H1N1. Todos são descendentes do vírus da gripe espanhola, de 1918. Eles vão se modificando, se atenuando no homem e causam a gripe conhecida como sazonal. Anualmente temos gripe no mundo todo causada por esses dois tipos de vírus. Afora esses dois, que são da influenza A, há outros, da influenza B, que nunca causaram nenhuma pandemia. Por isso, em termos de saúde pública, a preocupação é sempre com os vírus da influenza A.

Existem, entre o A e o B, diferenças de gravidade?
Há dois tipos de vírus da influenza A. Um que tem a mesma gravidade do B, com baixa patogenicidade, e outro que tem alta patogenicidade e é muito perigoso. Ele se replica muito mais rápido, causa hemorragia pulmonar e pode infectar outros órgãos. Isso aconteceu em 1918 com o H1N1. Ele veio direto da ave para o homem e causou a pandemia em que morreram pelo menos 50 milhões de pessoas, conhecida como gripe espanhola.

A gripe asiática de 1957 não foi causada pelo mesmo vírus?
Não, foi por um descendente dele, uma mistura com vírus de outros animais, geralmente da ave e do porco. A ave é o reservatório natural do vírus da gripe, o homem é contaminado por ele e, com o passar do tempo, fomos nos adaptando. A mortalidade foi grande na gripe espanhola porque ela era provocada por um vírus de alta patogenicidade, que foi naturalmente se atenuando e se tornou de baixa patogenicidade. É o que está entre nós até hoje, depois de muitas recombinações. Ele se recombinou com suíno, depois de novo com ave, deu no H3N2, aí voltou para o H1N1…

Como se sabe que a primeira vez que o H1N1 migrou diretamente da ave para o homem foi em 1918? Não pode ter havido muitas gripes parecidas antes?
A de 1918 é a primeira que temos documentada. Há, claro, relatos de epidemias graves de gripe de muito antes, de 100, 200, 300 anos atrás. Mas não se sabe o que circulou. Já de 1918 para cá temos muitos relatos, soro de doentes da época, e ainda há pessoas vivas que se lembram do que aconteceu e de quem conseguimos examinar o sangue para comprovar qual foi o vírus causador da epidemia.

Ou seja, há uma comprovação empírica segura.
Seguríssima. Agora, o vírus que causa a gripe atual é uma combinação de quatro vírus: o suíno, o humano e o de aves, sendo que do suíno, há duas cepas de vírus: o H1N1que circula normalmente em suínos nas Américas, chamado de cepa americana, e o vírus também H1N1 que circula na Eurásia (Ásia e Europa), conhecido como cepa eurásica. Ambos se chamam H1N1 suíno, porém, geneticamente, eles são diferentes. Portanto, o vírus atual da gripe suína que atinge os seres humanos é uma mistura desses quatro: dois suínos – o americano e o eurásico -, um humano e um de aves. Em 2005 isolaram nos Estados Unidos um vírus de um rapaz de 17 anos que teve uma gripe forte. E perceberam que era um novo vírus, que já tinha uma mistura de outros três: influenza suína americana, influenza humana e influenza de ave. Só que isolaram em apenas uma pessoa, não teve outros casos. Acredita-se que esse mix de três evoluiu para o atual, de quatro vírus.

Podemos dizer então que a gripe atual deriva das mudanças no vírus pelo menos desde 2005?
Nos Estados Unidos há relatos de que o H1N1 suíno circulou na epidemia sazonal do ano passado. Atualmente estamos testando aqui amostras de crianças internadas na Santa Casa de São Paulo em 2008 e temos fortes evidências de que o H1N1 da chamada gripe suína já estava circulando entre nós no ano passado. Uma equipe australiana publicou um comunicado dizendo que o vírus pode ser similar ao que já circulava em 2007.

Se vocês identificarem de fato o H1N1 suíno nessas crianças em 2008, diriam se tratar de casos isolados?
Não dá para saber. No Brasil, não é comum identificar vírus de gripe. Temos três centros de referência para gripe: o Instituto Adolfo Lutz, de São Paulo, a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), no Rio, e o Instituto Evandro Chagas, em Belém. Quando começa uma epidemia, os laboratórios estaduais fazem um teste rápido de imunofluorescência para ter certeza se é influenza A ou B. Isso é o que dá para fazer e são os dados que a gente tem. Uma amostragem bem pequena desse material –  do Adolfo Lutz, da Fiocruz e do Evandro Chagas – vai para o CDC para eles fazerem a tipagem [identificação]. E todos os anos eles nos avisam qual tipo de vírus circulou em São Paulo, no Rio e em Belém. Mesmo aqui na USP, onde desde 1995 temos como rotina com o nosso Hospital Universitário, o HU, colher amostras das crianças internadas com bronquiolite e doenças agudas e testar para influenza, paramos nisso porque, para o médico, basta saber se é influenza ou não. Quando surgiu o H1N1 suíno, se implementou um teste diagnóstico novo, tanto nos três institutos que citei como em laboratórios privados. E fazemos testes aqui, no ICB.

Por que vocês trabalham mais com crianças?
Temos uma pediatria eficiente no HU e eles têm interesse acadêmico. Com a pediatria da Santa Casa é a mesma coisa. Note que usamos a palavra gripe de modo genérico. A gripe não é causada apenas pelo influenza A ou B, há outros vírus, como o respiratório sincicial, o parainfluenza, o metapneumovírus, o adenovírus. Todos esses causam uma sintomatologia que, para o médico, é muito difícil saber o que é. Eles não têm como saber e nem têm a quem recorrer para descobrir. Quando temos uma gripe, o médico diz para voltarmos se piorarmos porque o quadro pode evoluir para pneumonia. As mortes que temos hoje são todas por pneumonia.

Todas?
Quase todas. Uma ou outra pode ter origem em outras complicações, mas o vírus influenza de baixa patogenicidade, por si só, não mata – o que mata são as complicações. Ele pode causar uma inflamação nos pulmões que predispõe à instalação de bactérias no local. Muitas pessoas têm a garganta colonizada por pneumococos e, numa gripe, eles podem migrar para os pulmões e provocar uma pneumonia letal se não for tratada com antibióticos. Às vezes, a pessoa está com sintomas de gripe, não vai ao médico e acha que está tudo bem. Se fosse, talvez uma radiografia revelasse a gravidade do problema e uma internação e medicamentos resolvessem tudo. Vejam-se os casos de morte por gripe suína em Osasco. Se fosse em 2008, as quatro pessoas internadas com sintomas de gripe e pneumonia também morreriam, porque já estavam em um estágio muito ruim, mas os atestados de óbito apontariam como causa da morte pneumonia por streptococcus e não ficaríamos sabendo que houve casos de gripe suína lá. Como ocorreu neste ano em que há uma gripe com grande destaque na mídia, quando chegam pacientes com quadro respiratório grave são colhidas amostras para análise. No caso de Osasco, comprovou-se que era gripe suína, quando a primeira pessoa já tinha morrido.

Na verdade, as mortes ocorrem em razão da pneumonia.
Essa gripe não está causando mais mortes do que as outras. Pelo contrário, estão morrendo menos pessoas.

Voltando à origem do H1N1: o fato de ser uma combinação de quatro outros vírus o torna mais complexo, seja  para se entender sua estrutura, seja para uma vacina?
Torna, claro. Ninguém sabe ainda o quanto a vacina atual contra a gripe sazonal protege contra o vírus novo. Por ser novo, vai infectar muito mais gente porque ninguém tem anticorpos contra ele. Há uma teoria de que como ele é muito parecido com o H1N1 que circulou em 1978, na gripe russa, quem foi infectado naquela época não pega ou tem uma doença mais branda. Por isso quase não estamos vendo casos em pessoas acima de 50 anos nem em idosos. Os mais atingidos são os adultos jovens, até 35 anos, gestantes e crianças pequenas.

A revista britânica The Lancet publicou na última semana de julho um estudo com 34 ocorrências da gripe A H1N1em gestantes entre abril e maio, e seis mortes de grávidas entre abril e junho. Ou seja, em um total de 45 mortes examinadas para o período, seis foram de grávidas. Como os pesquisadores estimaram a população de grávidas em 1% da população americana, essas seis mortes compõem um percentual acima do padrão encontrado para os demais adultos.
Tudo é muito novo e os dados estão sendo produzidos. O fato de o vírus ser mais complexo faz com que ele infecte mais pessoas ao mesmo tempo. A gripe ocorre geralmente no inverno. Porém o que vimos no hemisfério Norte foi uma epidemia de gripe fora do inverno – quando deveria estar desaparecendo, ela começou de novo porque infectou muita gente suscetível ao vírus. No Brasil a gripe deveria acabar em agosto, mas, pelo jeito, está começando. E, se seguir o mesmo padrão do hemisfério Norte, nós vamos com ela até outubro. Agora é que começaram a aumentar os casos.

Com relação à mutação do vírus, essa é uma preocupação apenas para 2010?
Sim, porque o atual nós conhecemos um pouco melhor. Sabemos que é de baixa patogenicidade e que não vai se comportar muito diferente do vírus da gripe sazonal. A mortalidade da gripe suína é abaixo da sazonal, mas não dá para dizer que ele é menos patogênico do que o sazonal.

No Brasil se considera normal que as pessoas trabalhem com gripe. Não deveria ser o contrário?
Na verdade, ir para o trabalho com gripe é uma falta de respeito com os outros. As pessoas gripadas espalham o vírus para todos. Um indivíduo contamina uns 10% do grupo com o qual ele trabalha. Esses 10% vão contaminar outros 10%. Em pouco tempo está todo mundo infectado. Mas, se o brasileiro não for trabalhar mesmo gripado, o chefe acha que ele é muito mole. O ideal é ficar em casa. A criança gripada não deveria ir para a escola, mesmo que esteja se sentindo bem, porque ela ainda está eliminando vírus.

Por quanto tempo se elimina vírus?
Por até sete dias, quando se está gripado. A transmissão pelo ar se dá quando espirramos. Mas essa não é a principal forma. Como eliminamos muita secreção, é inevitável colocar a mão no nariz, coçar, pôr o dedo na boca. É um hábito que temos como primatas, muito difícil de controlar, que favorece uma transmissão maior. E estamos sempre tocando nas coisas, indo trabalhar, estudar, encontrar pessoas. O ideal seria ficar em casa por 10 ou 15 dias, até ficar curado.

No trabalho que a sua equipe fez em 2005, de captura de aves na Floresta Amazônica, o objetivo era procurar o H5N1 nas aves migratórias. Achou-se algo?
Achamos bastante influenza de aves, mas não o H5N1, que era o pavor do Ministério da Saúde e da Agricultura porque se trata de um vírus muito perigoso tanto para aves quanto para gente. Ele mata mais de 50% das pessoas que infecta. Mas só é transmitido de aves para seres humanos, não entre as pessoas. O que faz um vírus infectar o homem é o contato que ele tem com a célula superficial, com as células do nariz, da boca… Para que haja adesão do vírus e infecção, a célula tem de ter um receptor específico para o vírus em questão. As espículas que se encontram na parte mais superficial do vírus da gripe suína são reconhecidas pelo receptor específico das células para ele, neste caso o ácido siálico. E uma determinada conformação nas espículas permite o encaixe vírus-célula. O vírus aviário não se encaixa bem na célula humana em razão de sua  conformação. Até agora as infecções aviárias se deram por meio do contato direto com secreção de ave, pela qual a pessoa recebeu uma grande quantidade de vírus que chegaram até as células mais baixas de brônquios ou de pulmão.

Ainda se teme esse tipo de transmissão na gripe aviária?
Ah, sim! A conformação depende de apenas três mutações no genoma do vírus, e uma já ocorreu. Faltam duas. Estamos com 486 casos de influenza aviária, com 260 mortes [dados de junho] na Ásia e Europa. É muito, mais de 50%. Na China é de quase 100%. Este ano eles tiveram sete casos com cinco mortes.

No caso da gripe aviária, havia a perspectiva de desenvolvimento de uma vacina eficaz, que não ocorreu.
Como o vírus ainda não sofreu a mutação que precisa para passar de pessoa para pessoa, não adianta fazer uma vacina para o que está ocorrendo agora. Ela não funcionará quando ele sofrer a mutação. É o caso semelhante ao do H1N1 suíno. Na vacina contra gripe sazonal que as pessoas tomaram este ano tem o H1N1, só que ele não funciona 100% contra o vírus suíno, embora talvez proteja algumas pessoas.

Então temos mais um problema: a mutação que o A H1N1 ainda pode sofrer no próximo ano. Portanto, as vacinas teriam de prever essa mutação.
Já tem algumas vacinas feitas para esse H1N1 suíno que devem estar no mercado em setembro. Os grandes laboratórios privados estão correndo porque a epidemia de gripe vai começar novamente no hemisfério Norte mais ou menos em outubro e novembro e todos querem ter a vacina à mão antes. Mas elas estão sendo feitas para combater a versão atual do vírus. Não dá para fazer vacina para o próximo se não sabemos como vai ser a mutação.

Se ocorrer de o vírus da gripe aviária mutar, dá para fazer uma vacina rapidamente?
Um dos grandes medos que todos tinham quando surgiu o H1N1 suíno é que ele entrasse na China porque lá ainda está tendo casos de H5N1. Haveria o risco de o mesmo paciente ser infectado com os dois vírus e criar um mutante. A China tomou medidas muito mais rígidas que no resto do mundo, como impedir a entrada de pessoas ou fazer quarentena. Só que é muito difícil criar barreira para vírus. Eles têm muitos casos da gripe suína e alguns poucos da gripe aviária. A China vai ser nosso grande problema, porque o H1N1 já recombinou de todos os lados. O risco de fazer isso mais uma vez não é pequeno.

Parece que esta é a primeira vez em que é possível acompanhar o surgimento de um novo vírus desde o começo. Não é uma vantagem?
É um vantagem, lógico. Mas está todo mundo muito assustado, inclusive os médicos nos hospitais aqui de São Paulo. Chega uma pessoa com uma gripe forte, fez o teste, deu H1N1 suíno, eles têm de isolar o paciente. Mas isolar onde? Se você chega com algum outro problema, os médicos não têm como internar porque está cheio de gente com a gripe.

Mas o Adolfo Lutz poderia ajudar e dar um resultado em algumas  horas, em vez de gastar sete dias.
Só o Adolfo Lutz não tem condições de fazer os testes para o Brasil todo, para o estado todo ou para a cidade toda. O que tem de ser feito é distribuir os testes para todos os laboratórios, sejam eles públicos ou privados. Os Estados Unidos são o país do qual temos mais dados porque quando a epidemia começou, em março, o governo produziu kits de diagnóstico e distribuiu para os laboratórios americanos que tinham competência para isso, públicos e privados. Para os que não tinham o equipamento, o CDC comprou e distribuiu. Em qualquer estado americano há laboratórios capazes de fazer o diagnóstico no mesmo dia. O nosso HU tem um excelente laboratório e poderia estar fazendo o diagnóstico. O paciente chegaria com os sintomas, faria o teste, que sai em três horas e, se estivesse com o vírus, já tomaria o medicamento indicado, que é o oseltamivir, que tem o nome comercial de Tamiflu. É uma droga que funciona apenas se for tomado nas primeiras 72 horas. O problema é que não tem Tamiflu suficiente.

Por que não há Tamiflu suficiente?
Quem fabrica é o laboratório Roche. Ocorre que a demanda no mundo inteiro é tamanha que eles não estão dando conta de fabricar. Essa é uma droga muito específica. E o Brasil nunca usou muito o Tamiflu porque o paciente normalmente chega ao hospital com mais de três dias de infecção e aí não adianta mais. Além disso, se o médico não está seguro de que o paciente tem influenza, não adianta dar essa droga.

Como a população pode saber se está infectada pelo H1N1 suíno ou por influenza sazonal?
Não tem como saber. Nem os médicos sabem. Os sintomas de gripe são comuns a vários vírus.

E os chamados resfriados de inverno em que as pessoas não têm febre?
Esse é outro tipo de vírus chamado de rinovírus. O sintoma é coriza, um pequeno problema respiratório, alguma indisposição, mas sem febre. O influenza geralmente dá febre, e alta, com outros sintomas. Dos testes que temos feito para o HU, quase 100% é H1N1 suíno. Não estamos tendo nem H3N2 e nem H1N1 sazonal. Isso vale para as últimas duas semanas de julho. Em junho, estava entre 30% e 50%. A época do H3N2 e do H1N1 sazonal começa em maio, vai até o começo de agosto e desaparece. Não que não tenha gripe durante o ano inteiro, tem, mas o pico é no período junho-agosto, quando mais circulam os dois vírus. Este ano eles circularam junto com o H1N1 suíno e pararam de circular porque estão dentro da sazonalidade. Ocorre que a transmissão do suíno começou agora. Por isso daqui para a frente só deveremos ter um tipo de vírus, o suíno. Aconteceu o mesmo nos outros países.

Até quando esse o H1N1 vai dominar este ano?
Acredito que até outubro. Em agosto e setembro, seguramente.

E nesse período dá para que as pessoas saibam mais sobre ele para tentar evitá-lo?
Acho que sim. As pessoas estão assustadas, mas não há uma grande neurose, com todos andando de máscara. No México, por exemplo, entraram em desespero e botaram máscara na população. E usar máscara não reduziu a epidemia, embora eles digam que sim. Além disso, é preciso saber usar máscara. Num voo de Porto Alegre para cá vi um passageiro que tirou a máscara para comer e colocou no assento do lado, no braço da poltrona onde as pessoas colocam a mão. Do que adianta? Lavar as mãos ajuda muito, é uma das melhores medidas que existem. Mas no dia a dia é difícil fazer isso o tempo todo porque estamos sempre tocando em objetos que outros tocaram. Enfim, lavar as mãos ajuda, mas o vírus vai continuar sendo transmitido, causando 10% das infecções, vão continuar ocorrendo alguns casos de gravidade e algumas mortes.

Como é o trabalho de seu laboratório na investigação sobre o influenza em aves migratórias?
Em 2000, nosso grupo montou um projeto com apoio da FAPESP, a Rede de Diversidade Genética de Vírus, a VGDN, chamado de Rede Vírus, do qual fui um dos coordenadores. Estudamos vários vírus como HIV, o da hepatite C, o vírus respiratório sincicial, o hantavírus  “que é altamente patogênico”, entre outros. Montamos uma equipe de campo para ir à Amazônia capturar aves migratórias.

Vocês fizeram um safári à procura de vírus…
Exatamente. Fizemos várias expedições para passar um mês em vários estados. Foi todo um trabalho para monitorar a possibilidade do vírus da influenza viária, o H5N1, entrar no Brasil. Não havia nada sendo feito na época. A primeira expedição foi em 2005. Antes tivemos de criar a infraestrutura para isso, a partir de 2001, como montar um laboratório de segurança máxima, o NB3+, e transporte seguro, dentro de todas as normas de segurança internacionais. Não dava para ir colher vírus na Amazônia de ave migratória e trazer para uma região com 20 milhões de habitantes sem segurança. Seria uma irresponsabilidade enorme.

A Rede Vírus criou outros laboratórios?
Montamos seis deles no estado de São Paulo só para diagnóstico desses vírus. Hoje estão todos funcionando com capacidade para fazer os testes de H1N1. Nesse período surgiram algumas epidemias que assustaram a todos, como a Sars [Síndrome respiratória aguda grave]. Quando ela surgiu, em 2003, só tínhamos o meu laboratório de segurança para trabalhar com o coronavírus, da Sars. Na época, peguei os dados de tudo o que estava acontecendo no mundo e levei para o professor José Fernando Perez, o diretor científico da FAPESP na ocasião. Disse para ele que tínhamos uma rede para estudar vírus, mas se o Sars chegasse ao Brasil não teríamos laboratório suficiente para fazer diagnóstico. Sugeri então a criação de pelo menos seis laboratórios de segurança que pudessem manusear as amostras. Reuni quem tinha competência para isso dentro da Rede Vírus e criamos os laboratórios.

Onde estão esses laboratórios?
Temos o Laboratório de Virologia do ICB/USP, o do Adolfo Lutz, o do Instituto de Medicina Tropical/USP, do professor Cláudio Pannuti, o de Botucatu, do professor João Candeias, o da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, do professor Eurico Arruda, e o da Unesp de São José do Rio Preto, da professora Paula Rahal. Esses seis estão capacitados com estrutura física de pressão negativa para que o vírus não escape, com proteção para os vizinhos e para quem está trabalhando, com cabines de fluxo de segurança máxima e com equipamento para fazer testes rápidos que identifiquem o influenza.

Quem coordenava a Rede Vírus?
Éramos três coordenadores centrais: os professores Paulo Zanotto, Eduardo Massad e eu. O projeto terminou em 2007 e chegamos a ter 22 laboratórios em rede. Hoje eles continuam ativos e equipados, mas não mais em rede. Agora estamos tentando retomar a rede dos seis de segurança máxima. E queremos montar mais seis, não de segurança máxima, mas que possam manipular os vírus influenza. Quando surgiu a Sars os Estados Unidos criaram em cada estado uma rede com laboratórios desse tipo.

Há quanto tempo o senhor trabalha com vírus?
Desde 1980. Começamos um grande estudo em 1981 com vírus da diarreia, o rotavírus. Os médicos achavam que a maioria dos casos era causada por bactéria. Fizemos vários estudos com o professor José Alberto Neves Candeias, pioneiro nesses trabalhos. Fomos os seguidores dele. Com os trabalhos, feitos com o HU e com o Hospital das Clínicas, ajudamos a diminuir a diarreia.

A grande queda da mortalidade infantil em São Paulo reflete isso.
Sem dúvida. Antes, nos anos 1980, a criança vinha com diarreia, o médico dava antibiótico e mandava para casa. Eram de famílias humildes, a mãe precisava trabalhar o dia todo e a criança acabava não tomando o remédio. Quando voltava ao hospital, já estava desidratada e morria. Nós mostramos que a doença era causada na maioria das vezes por vírus, e não por bactéria. Os médicos também mudaram a conduta e começaram a internar as crianças que apareciam com diarreia. Foi uma confusão na época, os pais não podiam ficar com os filhos, mas a mortalidade despencou.

Por que precisava internar a criança?
A criança ia para casa e não era hidratada, mas no hospital sim. Quando se viu que a internação funcionava, o grupo de assistência social começou a treinar as mães para usar o soro caseiro. Hoje não é mais preciso, as mães já sabem fazer o soro. Houve um trabalho no mundo todo, com campanhas da Organização Mundial da Saúde, do Unicef [Fundo das Nações Unidas de Apoio à Criança] e da Pastoral da Criança no Brasil, que tiveram um papel importante. A diarreia caiu muito em todos os países. Nos anos 1990 o problema maior passou a ser a alta mortalidade por doença respiratória virótica. Por isso mudamos o foco do laboratório. Trabalhamos com influenza e os demais vírus respiratórios, considerando a possibilidade de a gripe aviária entrar no país.

As aves migratórias vão do hemisfério Norte para o Sul e vice-versa todos os anos. Existe alguma prevalência de se trazer mais vírus de um lado ou de outro?
Esse é um dos nossos estudos. Os americanos que pesquisam isso dizem que as aves se infectam no Brasil e levam os vírus para lá. Desde o ano passado começamos um projeto novo na ilha de Canelas, que fica no norte do Marajó, uma área onde as aves param quando vêm do hemisfério Norte, de outubro a dezembro, antes de descer até o Sul. De fevereiro até abril elas voltam para o Norte e param em Canelas outra vez. Pegamos as aves quando elas chegam e quando vão embora para ver quantas vêm infectadas e quantas voltam infectadas. Trabalhamos com um grupo do professor Severino Mendes, da Universidade Federal Rural de Pernambuco.

E qual sua impressão?
Acredito que elas chegam infectadas do hemisfério Norte. Mas nossos números são ainda muito preliminares.

A relação entre vírus e seres humanos é sempre patológica?
Nem sempre. Mas não é como as bactérias, que formam uma flora normal no homem e não são necessariamente ruins. Não há um vírus que seja necessário ao homem. Mas há vírus inertes, que ficam na gente e não causam doença. Alguns são eliminados naturalmente por muito tempo. Alguns se integram, principalmente os herpesvírus. Conhecemos alguns deles, como o que aparece perto dos lábios, o herpes 1 e 2, mas há outros, como o herpes 6, herpes 7, que as pessoas têm a vida toda e nem sabem. No caso da relação influenza-homem, foram os chineses que começaram a domesticar os patos e trouxeram esses vírus para o homem.

A sua ferramenta de estudo de vírus é a biologia molecular?
É a nossa grande arma. Com ela conseguimos detectar mais rápido, com maior sensibilidade e ter um conhecimento mais profundo da evolução dos vírus. Às vezes é preciso voltar aos métodos clássicos. No paciente doente há uma quantidade enorme de vírus na secreção, suficiente para trabalharmos. Mas uma ave migratória sadia elimina pouco vírus e só consigo detectá-los por PCR, uma técnica molecular, mas falta material suficiente para sequenciar e fazer outros estudos. Precisamos então usar meios de cultura clássicos. Ainda utilizamos o ovo embrionário e a cultura de células.

Por último, uma questão interessante: vírus é ser vivo?
Ele não é classificado como ser vivo. É considerado uma partícula infecciosa com duas características importantes. Quando está fora da célula é um elemento químico, mas dentro dela ele se comporta como ser vivo – tem enzimas e sequências nucleotídicas que fazem com que se replique e se comporte como algo vivo.

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