Michel Vovelle foi um dos conferencistas do XV Encontro Regional de História, promovido pelo núcleo paulista da Associação Nacional de História, de 4 a 8 de setembro, no departamento de História da Universidade de São Paulo (USP). O tema do encontro, que recebeu da FAPESP auxílio a organização de reunião científica, foi História no Ano 2000: Perspectivas. O tema da conferência de Vovelle, Jacobinos e Jacobinismo: história de uma prática revolucionária e historiografia de um conceito (séculos XIX e XX ) -, o mesmo de seu livro mais recente, lançado em 1998 na Itália, em 1999, na França e, agora, no Brasil.
Jacobinos e Jacobinismo, saudado por historiadores um tanto esgotados com as teses de uma nova história que pulveriza seus próprios objetos para chegar, no limite, ao próprio fim da história, é um entre cerca de três dezenas de livros de Vovelle. Historiador respeitado, ele é considerado um dos maiores especialistas em Revolução Francesa – o que ajudou a levá-lo à direção do Instituto de História da Revolução Francesa, em sua atuação como homem público. Professor da Sorbonne (Paris 1), suas pesquisas, embora concentradas na história das mentalidades, nunca descartaram o arsenal teórico e metodológico de fundamentação marxista que constituiu a base de sua formação. Em sua passagem por São Paulo, Vovelle concedeu a Mariluce Moura a seguinte entrevista.
Na apresentação de seu livro Jacobinos e Jacobinismo, o professor José Jobson de Andrade Arruda o classifica como um pioneiro na construção da ponte entre a história de fundamentação marxista e a história das mentalidades. Em sua própria visão, como se constitui essa ponte em sua obra?
Eu pertenço a uma geração de historiadores formados no método da história social dos anos 60, da qual meu mestre, Ernest Labrousse, era o representante. E essa história social quantitativa, que estabelece medidas e pesos, mantém de bom grado suas referências no marxismo. O próprio Labrousse se inscreveu sem ostentação nessa continuidade. E sob sua direção, eu empreendi estudos de história social, história agrária, de relações no campo… A minha geração, em grande parte, conheceu essa tradição e depois, talvez, uma mutação da vocação. Tomo como exemplo um colega e amigo, Maurice Agulhon, mas outros também não foram infiéis à história social de tradição marxista, embora aparentemente tenham abandonado essa perspectiva. Isso ocorre numa crise ideológica e de um contexto político geral, a partir de 1956, e que foi acompanhada por um esforço avassalador de revisão. Mas de forma mais simples, diria que nesse contexto nos apercebemos, eu como Maurice Agulhon, que era preciso ir buscar alhures perspectivas mais complexas que os princípios de dependência da superestrutura ideológica à infra-estrutura, apreendidos num processo de tomada de consciência, como então se dizia. E isso para tratar de entender o que se passa na cabeça das pessoas, a história tal como elas a vivem e contam.
De certa forma, passar da história social para estudar as mentalidades era então uma necessidade?
Para mim, sim. E isso se operou em muitas etapas, desde meus primeiros estudos em história social, passando por um tema em que já se encontravam minhas futuras inquietações – a contra-revolução no Midi -, até concentrar minhas pesquisas na religião, com toda importância que ela ganhou no conflito entre revolução e contra-revolução. Assim, entrei no trabalho sobre a descristianização brutal do ano II (o ano de 1794, na terminologia da Revolução Francesa), portanto, num domínio de história religiosa que se aproximava finalmente de meu perfil. E empreendi, entre 1963 e 1971, a pesquisa que conduziu à minha tese sobre piedade barroca e descristianização e ao trabalho sobre atitudes coletivas diante da morte na Provença.
Como o senhor passou da descristianização à morte?
A própria dinâmica da pesquisa nos arrasta a resultados não previstos. Parti para estudar a revolução profana que, na Idade das Luzes, nos fez passar da religiosidade barroca, investida nos gestos, ao que podemos chamar de secularização, revolução profana ou mesmo descristianização. Daí encontrei outras coisas como a atitude das representações diante da morte.
Seus estudos sobre a morte, o purgatório, etc., o levaram a compreender mais a história da França? É possível estabelecer essa relação entre tais estudos e a história geral de um país?
Com certeza. Penso que os estudos sobre a sensibilidade, sobre o imaginário coletivo, se integram diretamente numa história das representações que é parte integrante, agora, da nossa compreensão da história nacional. Há, se quisermos, uma especificidade francesa nesse comportamento. Como por exemplo, a França, que foi chamada de filha dileta da Igreja, tornou-se, entre os séculos 18 e 19, o país do anticlericalismo, o lugar onde a liberação do olhar adquiriu uma importância prioritária em comparação com outros países? Creio que não seria preciso opor uma história oficial clássica, aquela da estrutura política, a uma outra que seria, senão marginal, de tal maneira diferente que não haveria conexão possível entre uma e outra. Para mim, não há duas histórias.
Para os historiadores na França, a Revolução Francesa é sempre um paradigma. Como o senhor passou a lidar com esse marco essencial quando começou a estudar o purgatório, a morte, etc.?
Há uma historiografia de longa duração e, depois, há um acontecimento, um corte, um capítulo no qual é preciso contar uma história muito complicada de 10 anos. Então a Revolução pode aparecer como um tipo de fenômeno incongruente, porque é a revanche do acontecimento, a revanche da história que se deve contar e analisar. Mas é isto que me apaixona: a dialética entre o tempo curto e a longa duração. Tenho um trabalho sobre a festa – felizmente, não trabalhei apenas sobre a morte -, A metamorfose da festa no campo, entre 1750 e 1850, em que me interroguei sobre o encontro entre a festa provençal na longa duração, já folclorizada às vésperas da Revolução, e a festa cívica. E esta, de fato, ligava-se à festa provençal, abrandada com um modelo nacional de celebração. É uma questão talvez inocente, mas, em todo caso, fundamental para mim: como se deu esse encontro? E com formas, digamos, de contaminação: a árvore da liberdade retomada de uma herança de maio, as árvores que plantamos em maio na porta das jovens que vão casar, ou retomada do cortejo carnavalesco, da herança do Charivarie, isso que chamamos a Asinade, isto é, o passeio de uma pessoa, que representa o marido enganado, sobre um asno, tendo a cabeça voltada para o rabo. É a Charivarie à antiga, que é reinscrita no saturnal, no espetáculo derrisório da festa de descristianização do Ano II.
Seus estudos sobre a visão do purgatório estão também no quadro dos estudos dos afetos, não?
Sim, porque há alguma coisa na morte que a partir do século 18 atinge diretamente a história dos afetos. A relação do mundo dos vivos com o mundo dos mortos foi regulada, na longa duração, de maneira diferente, sempre como forma de compromisso que constitui o trabalho de luto.
E nesse quadro, o purgatório aparece como uma região necessária entre os dois mundos?
Sim. A cristianização propôs primeiro o modelo da coabitação dos vivos e dos mortos, o modelo da ressurreição e depois o modelo do fim dos tempos, com o céu de um lado e, do outro, o inferno. E, então, há a invenção do purgatório, que Jacques le Goff situou em algum momento próximo de 1150. É uma invenção que não está de forma alguma no discurso original da Igreja cristã, uma invenção da religião popular, uma coisa formidável, porque trata-se de um terceiro lugar, reservado, como dizia Santo Agostinho, àqueles que não são nem inteiramente bons nem inteiramente maus. O purgatório caminhou entre 300 imagens até o século 14, quando começa a encontrar uma imagem que alça vôo e busca sua expressão figurada: será que é um lago, um fogo, uma prisão? Tem-se necessidade de uma imagem. E, finalmente, depois de uma peripécia penosa da alma humana, a época barroca, depois do Concílio de Trento, dá sua consistência de longa duração ao purgatório, isto é, um tipo de pseudo inferno de duração determinada. O que é maravilhoso é que se pode fazer preces pelos que estão no purgatório, pode-se intervir por sua salvação, e assim se supera de uma maneira elegante o trabalho do luto.
Quando o senhor passa a estudar o jacobinismo está, em certa medida, sinalizando uma crise na historiografia hegemônica na França?
Sim, uma crise no interior da historiografia francesa, mas, de forma mais ampla, na historiografia em geral, no mundo. Os grandes sistemas e as histórias globalizantes, totalizantes se adaptam mal às escolas que se expressaram de forma hegemônica nas últimas décadas. Temos vivido o que François Dosse chama a história em migalhas, que é uma fragmentação expressiva de campos: há a história dos afetos, a história dos odores, há um monte de histórias que, creio, é necessário reunir numa cadeia. Porque na pulverização renuncia-se a dar um sentido à história.
É o fim da história…
Sim, é o fim do movimento da história, a locomotiva da história foi para a garagem. O perigo dessa pulverização é essa grande crise da historiografia, que se inscreve num quadro maior, na crise das ideologias que vivemos hoje. Nesse sentido, o capítulo conclusivo sobre o legado da Revolução, trabalho dirigido por François Furet, é brilhante: ele explica que só haveria agora uma revolução tecnológica, da comunicação. Portanto, de uma certa maneira, no quadro do pensamento neo liberal hoje, o fim da história aparece como essa estabilização.
O senhor situa essa crise das ideologias em que década?
Penso que começou nos anos 50 de forma bastante visível. Na Guerra Fria. Com uma interrogação coletiva sobre as aventuras do socialismo real, que gerou a crise de consciência que evoquei ao falar no naufrágio dos historiadores de minha geração. E depois se acentuou na última década.
Dá para resumir seu conceito de jacobinismo?
Não a tese, mas a idéia mestra que desenvolvi é a da dualidade, de uma ambigüidade do conceito. Isto é, há de um lado o jacobinismo histórico, uma experiência precisamente inscrita no contexto da Revolução Francesa, e que poderíamos chamar a experiência de uma tomada de consciência, com um elemento de descoberta da política, no quadro do êxtase de comunicação que forma a opinião pública, a sociedade pública francesa. Mas há um outro jacobinismo diferente desse. O termo foi retomado numa aventura secular, e tornou-se também, podemos dizer, transhistórico – é o termo de Proudhon. Este jacobinismo foi trazido pelas correntes democráticas e liberais do século 19, e foi retomado e enriquecido depois de 1830 pela herança neo-babovista de Buonarotti, encontrando-se de forma bastante expressiva em 1848, na Comuna de Paris – o jacobinismo republicano e democrático encontra-se com o movimento revolucionário depois de um movimento social.
Essa história do jacobinismo como migração, não apenas de um conceito, mas da prática que o acompanha, vai reconduzi-lo dos radicais franceses ao partido de ação italiano como um jacobinismo, digamos, pequeno burguês, não suficiente ainda para fazer triunfar sua hegemonia, o que depende do voluntarismo, que será expresso por Clemenceau. Progressivamente, passa-se a esses radicalismos tão bem quanto mal realizados, isto é, o sufrágio universal, os sistemas representativos, a laicidade, a nação, o exército… A partir de certo momento os radicais perdem sua pugnacidade, o jacobinismo torna-se uma postura, uma atitude, um verbalismo certamente. Mas é aí que advém o movimento histórico que lhe dará de uma só vez sua sorte e sua má sorte: sua retomada pelo movimento revolucionário, socialista. O jacobinismo migrou para o coração mesmo da ideologia revolucionária, mesmo se Lênin, como Marx e ainda mais Gramsci desconfiam das analogias. Por isso o emprego do signo jacobino vai durar, bem ou mal, até o colapso do socialismo real.
E que jacobinismo resistiria hoje?
O que se expressa, por exemplo, na atitude dos movimentos de cidadãos, de Jean Pierre de Chevènement. Seria mais a herança do jacobinismo radical ou democrático, mas que insiste na defesa de valores como a república, a cidadania, os valores políticos, a laicidade, a nação, a pátria. São valores hoje muito prejudicados, quando se tem o individualismo como indicação de identidade, o que repõe em questão os aspectos diretivos, de autoridade, de centralidade. Mas há uma outra herança da revolução francesa, aquela da aspiração a uma democracia direta. De qualquer forma, todo sentido de jacobinismo foi ameaçado pelo pensamento único do fim da história, do pensamento, digamos, neo liberal.
Nesse sentido, seu livro é também uma espécie de resposta ideológica?
Digamos que seja uma resposta que vai direto ao ponto nesse momento que é de interrogação, de inquietação. E eu não defendo os jacobinos com paixão, como os últimos moicanos que mereceriam nossa simpatia. Há uma reflexão geral que atravessa a idéia de cidadania, de república, por exemplo, e nos interroga de maneira não arcaica, mas muito contemporânea.
O senhor ainda concede espaço para o conceito de luta de classes hoje?
Eis uma questão embaraçante. Pensoa luta de classe tanto no sentido tradicional do termo, elaborado durante a Revolução Industrial, quanto no contexto atual de mudanças sociais profundas que nos afetam na sociedade liberal, no equilíbrio mundial de ricos e pobres. Se observarmos na escala do planeta os que possuem e os que não possuem, a luta de classes toma um sentido que não só não é arcaico, como é inteiramente trágico.
O senhor vislumbra novas tendências de pesquisa em história que articulem história social, econômica e história das mentalidades?
Pode-se ainda pensar que de uma certa maneira toda história é social, porque toda história se inscreve em uma situação, em um contexto, em relações e na realidade. Mas seria muito simples se refugiar nessa evidência contextual. Na tendência atual da historiografia há leituras, como por exemplo a de Roger de Chartier, segundo as quais a história das representações testemunha a preocupação ou a necessidade de se reencontrar o ancoradouro da história no imaginário e nas representações, concebidas inclusive como conflito. O ancoradouro dessa história da representação é uma referência para a história social e, se ainda se desconfia – sem dúvida, com razão – de uma história globalizante como totalizante, pelos mesmo motivos de que se desconfia do totalitário, creio que se deve guardar essa preocupação. Mas para mim é muito importante estabelecer correlações, redescobrir a importância da política, da geopolítica, e ir além de uma leitura que estaria fora do todo socialou dotodo político e que abandonaria muito daquilo que faz a riqueza, a complexidade, da história.
O senhor recupera um lado positivo do jacobinismo. Sua visão sobre o futuro é otimista?
O que você vê como meu jacobinismo poderia ser identificado, senão como otimismo, pelo menos como afeição a uma espécie de herança das luzes que estipula que o mundo pode ser mudado. E se, evidentemente, as esperanças podem parecer perigosas em um historiador, porque isso traduz um tipo de finalidade consciente ou inconsciente, não se pode esquecer que os historiadores estão, eles mesmos, inscritos num processo histórico, em uma vida, em um engajamento.