Em fevereiro deste ano pude finalmente ir a campo, uma paixão, o que não fazia desde o início da pandemia. Foi tão bom poder conversar com as pessoas. Até porque no nosso departamento, na UFSCar [Universidade Federal de São Carlos], ainda estaremos com as aulas on-line até o fim de maio. Então foi um alívio e, ao mesmo tempo, muito intenso desenvolver atividades presenciais novamente. Uma aluna de mestrado e eu fomos a Roraima: Boa Vista e Pacaraima, na divisa com a Venezuela, entrevistar e acompanhar os imigrantes e refugiados venezuelanos.
Pesquiso migrações internacionais e, além de observar a mobilidade dos venezuelanos no interior de São Paulo, para onde boa parte deles vem, tenho uma linha de pesquisa sobre as migrações russófonas no Brasil. Quatro dias depois que retornei para casa, a Rússia invadiu a Ucrânia. Foi o pior dia da minha vida, porque parte da minha família e amigas moram lá. Nasci na Geórgia, meus pais são russos, cresci na Ucrânia e vivo há 11 anos no Brasil. Fiquei desesperada.
A guerra atropelou meu planejamento de análise das coletas que fiz em Roraima, que nem consegui começar, trouxe novos rumos de pesquisa e teve um impacto enorme na minha vida pessoal. Liguei para minha família e amigas para saber se todos estavam bem. Levei duas semanas para convencer uma das minhas avós, que vivia em Kiev com meus tios e tem 87 anos, a deixar a cidade. Ela não queria sair, mas deu certo. Meus tios ficaram na República Tcheca, onde vive uma prima minha, e minha mãe, que mora na Itália, levou minha avó para ficar com ela. Já minha avó paterna, que tem 86 anos e mora em Odessa com tios e primas, não quer sair. Digo para ela vir se esquentar um pouco no Brasil… Por enquanto, não há ataques na cidade, então fico um pouco mais tranquila.
Por causa da minha pesquisa, já ouvi de muitos refugiados como é difícil sair e deixar tudo para trás, sabendo que talvez nunca mais volte para casa. Isso tudo vem à tona com mais força agora. Lembro que, quando a tensão de uma possível guerra começou, conversei via vídeo com minhas amigas ucranianas e fiz um alerta muito difícil. Sugeri que deixassem malas e uma pasta com documentos e diplomas prontas, caso precisassem sair às pressas. Disse que provavelmente isso não aconteceria, mas era melhor ter essas coisas à mão. Como sempre ouvi relatos de pessoas que saíram correndo e chegaram em outros países sem documentos, sem diplomas, isso sempre me marcou muito. Tanto que criei o hábito de manter em casa uma pasta guardada com todos os documentos da família. Naquela conversa on-line, uma amiga disse que já estava pensando em fazer isso, mas não teve coragem. Há uma recusa, uma negação, que vemos de forma recorrente em conversas com grupos de refugiados.
Quando a guerra começou, por conta de todas essas situações, não consegui dormir bem, meu estresse aumentou muito e senti dificuldade de focar em atividades corriqueiras, como ler textos acadêmicos. Agora as coisas estão melhorando. Usei essa adrenalina para agir: criamos um grupo no WhatsApp para mobilizar manifestações e ajudar a receber ucranianos refugiados. Também tenho observado a chegada de russos, já que há pessoas saindo do país por não concordar ou temer as consequências do conflito. Mas é mais difícil monitorar esse fluxo, porque as formas de mobilidade internacional dos russos são complexas e híbridas. Também tenho sido bastante procurada para dar entrevistas, palestras on-line e escrever textos curtos para jornais e blogs sobre o conflito, por conta da minha relação profissional e pessoal com aquela região do mundo.
A guerra também se transformou em tema para um novo projeto de pesquisa que estamos fechando sobre como esse conflito impacta a diáspora russófona no Brasil. Quando a Crimeia foi anexada pela Rússia, em 2014, houve uma grande polarização nos grupos espalhados pelo mundo, com pessoas rompendo relações por aprovarem ou não a ação. Queremos acompanhar esses desdobramentos, inclusive nesse novo êxodo russo. Para isso, vamos ganhar um reforço no nosso grupo de pesquisa, o InterMob, que vai receber, como pesquisador visitante, um sociólogo e demógrafo russo que também trabalha com essa temática.
Por causa da chamada para pesquisador visitante que a FAPESP abriu, recebi muitos e-mails de pesquisadores, principalmente da Rússia e da Belarus [ou Bielorrússia], mas também de ucranianos, que querem vir para o Brasil ou já estão por aqui e não podem retornar. Temos um banco de dados com pessoas de diversas áreas, como química, biologia, linguística e direito. Procuro ajudá-los fazendo uma ponte com outros grupos de pesquisa, já que essas pessoas não têm uma rede de contatos brasileira.
A guerra foi a segunda reviravolta que sofremos. A primeira foi a pandemia: para quem pesquisa mobilidade internacional, foi um impacto enorme, porque ela interferiu diretamente na dinâmica desse fluxo de pessoas. Mas, por conta das restrições, não pudemos ir a campo ver esse impacto. No Brasil, ela atingiu em cheio o enorme fluxo migratório dos venezuelanos na fronteira de Roraima, que vinha se intensificando desde 2015. Desde 2018, há uma grande infraestrutura humanitária montada pelo governo brasileiro e pelas agências da ONU [Organização das Nações Unidas], como o Acnur [Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados]: a Operação Acolhida, que teve seu pico de ações em 2019 e foi mantida mesmo com as restrições de entrada de venezuelanos desde o início da pandemia.
Quem pesquisa migrações, principalmente as forçadas, sabe que mesmo com as restrições as pessoas continuam migrando, ainda mais em um contexto de crise econômica, social e política, que piorou com a Covid-19. Isso torna tudo mais perigoso, porque, se os imigrantes não podem entrar de forma regular pelos postos de fronteira, eles começam a buscar outras vias, muitas vezes clandestinas, com risco de se tornarem vítimas de tráfico de pessoas e serem submetidas a trabalho escravo, principalmente no caso de mulheres e crianças. Os refugiados ficam em uma situação ainda maior de vulnerabilidade, porque não podem voltar para seu ponto de partida.
Depois desse primeiro baque na pesquisa, desenvolvemos outra estratégia. Percebemos que o celular é uma ferramenta indispensável para esses migrantes. É usado para indicar rotas alternativas quando eles estão cruzando a fronteira de forma irregular. Os grupos de WhatsApp e as redes sociais também são importantíssimas para eles, porque ali circulam as informações básicas de onde ir, como escolher uma cidade para se instalar e quem procurar quando chegar no destino. Desenvolvemos então uma maneira de trabalhar com dados que conseguimos de forma virtual: levantamos contatos e entrevistamos imigrantes venezuelanos pelo WhatsApp e por telefone, para mapear e entender o impacto da pandemia nesse fluxo. Estamos agora analisando e escrevendo artigos com os primeiros resultados.
Ao longo da pandemia, fiz todo esse trabalho de entrevistas e também dei aulas a distância na chácara do meu sogro em Itajubá, no sul de Minas Gerais, onde meu marido nasceu. Ela fica em um bairro rural e foi para lá que fugimos em março de 2020, assim que as aulas presenciais dos nossos três filhos foram canceladas. Moro em um apartamento e seria muito complicado ficar com eles trancados por tanto tempo. Passamos um ano e meio na chácara e pudemos viver a experiência de uma vida rural em meio à serra da Mantiqueira. Apesar dos receios e incertezas que o período trouxe, tivemos esse privilégio de ficar em um lugar tão bonito, onde aprendemos muita coisa. Pela manhã, meus filhos e eu fazíamos uma caminhada em busca de lenha para alimentar o fogão. Aprendemos a identificar os melhores tipos de madeira, meu marido aprendeu a cortar lenha, a cortar cabelo. Nos voltamos para atividades e habilidades manuais, algo que a urbanização nos tirou. Isso ajudou a preservar nossa saúde mental. Viver esse tempo na natureza foi uma cura.
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