de Paris
PIERRE ANDRIEU/ AFP PHOTONo prefácio de Du vrai, du beau, du bien: une nouvelle approche neuronale (Odile Jacob, 2008, Paris), um dos mais recentes livros de divulgação científica do respeitado neurobiólogo Jean-Pierre Changeux, 75 anos, o filósofo Claude Debru sintetiza os grandes marcos do itinerário científico de seu conterrâneo nos seguintes termos, em tradução livre: “Fez a descoberta da alosteria e a elaboração do modelo alostérico de funcionamento das proteínas com Jacques Monod e Jeffries Wyman; o isolamento e a identificação do primeiro receptor de neurotransmissor, o receptor de acetilcolina, ele próprio uma proteína alostérica; depois a elaboração de um modelo de aprendizagem por estabilização seletiva de sinapses; mais recentemente, a criação de um modelo da consciência sob a forma de uma teoria do espaço neuronal de trabalho consciente, elaborado com Stanislas Dehaene”.
É um resumo de grande precisão para dar conta de um percurso fecundo que no começo tomou colibacilos para compreender como funcionava uma enzima reguladora bacteriana, a L-treonina desaminase. Daí resultaram as duas descobertas referidas por Debru sobre proteínas alostéricas e um dos mais famosos artigos científicos já publicados no campo da biologia molecular: “Sobre a natureza das transições alostéricas”. Escrito em parceria com seu orientador Jacques Monod, um dos vencedores do Nobel de Medicina de 1965, o paper, coincidentemente publicado também em 1965, obteve desde então 5.889 citações, um número extraordinário. Aliás, os 600 artigos publicados por Changeux ao longo da carreira totalizam hoje quase 48.500 citações.
Cientista extremamente criativo, de olhos postos nos mecanismos fundamentais de regulação biológica em qualquer forma de vida, Changeux logo extrapolou o modelo das proteínas alostéricas para os receptores de neurotransmissores. E foi para testar essa proposição teórica que ele terminou chegando a seu segundo feito experimental considerável, o isolamento do receptor de acetilcolina. Foi, assim, sobre uma sólida base de biologia molecular, teórica e experimental, que o tranquilo cientista francês seguiu em busca de outras decifrações do mais fascinante dos órgãos dos sistemas vivos, o cérebro humano, e aportou, entre outras investidas, nas bases materiais, biológicas e bioquímicas da consciência. Essa construção rigorosamente científica foi sendo erguida num terreno cultural fértil, densamente humanístico, filosófico, que é da própria formação de Changeux e no qual ele mantém firmemente os pés. Assim, pode estendê-lo ao leitor com grande força em seus livros de divulgação científica – incluindo o que escreveu em coautoria com o filósofo Paul Ricoeur, La nature et la règle. Ce qui nous fait penser (Odile Jacob, 1988, Paris). A ciência é tomada por Changeux sempre no interior da cultura – mas sem deixar de reivindicar jamais “uma visão fisicalista”, como ele mesmo diz, fundada em mecanismos moleculares.
A entrevista a seguir foi concedida por Jean-Pierre Changeux, um senhor suave e gentil, ainda quando relata experiências de grande vigor ou deslinda conceitos complexos para leigos, em sua sala do Instituto Pasteur em 8 de julho passado. Em paralelo ao Collège de France, o Pasteur é uma de suas “casas” de toda uma vida.
O senhor prefere que comecemos pelos fundamentos biológicos da consciência ou por uma visão geral de seu trabalho?
Vamos começar pela visão geral porque isso me permitirá expor as ideias que posso ter sobre a consciência no contexto dos trabalhos que realizei anteriormente.
Falemos então de sua primeira descoberta. O senhor descobriu a alosteria e elaborou o modelo alostérico de funcionamento das proteínas com Jacques Monod e Jeffries Wyman.
Exatamente. Comecei em 1961. Esse trabalho sobre as proteínas alostéricas, segundo penso, está na origem de uma visão da vida – e, por isso, das funções do cérebro – que repousa sobre um mecanismo molecular relativamente simples de transdução dos sinais biológicos. O trabalho que fiz para minha tese, com Jacques Monod, buscava inicialmente compreender como funciona uma enzima reguladora bacteriana, a L-treonina desaminase, que estava envolvida num processo de retroalimentação, isto é, de feedback. A treonina desaminase é a primeira enzima de uma cadeia de biossíntese na bactéria colibacilo e ela é inibida pelo produto final da cadeia. Há, portanto, uma regulação do funcionamento da cadeia química. Essa primeira enzima tem uma atividade catalítica – catalisa uma reação enzimática – e, ao mesmo tempo, reconhece e é capaz de modificar sua atividade em função de um sinal que é o produto final da cadeia de biossíntese. É uma molécula que tem uma espécie de dupla especificidade: reconhecer e transformar o substrato, receber e transmitir o sinal regulador. Portanto, é uma espécie de modelo de regulação biológica elementar.
E como o senhor chegou a essa enzima?
Já havia trabalhos sobre essas enzimas, não fui eu quem as descobriu, minha intenção era compreender o mecanismo da regulação. E a partir dos trabalhos que eu fiz e que outros, em paralelo, fizeram, consegui dissociar a atividade enzimática da atividade reguladora. Isto é, consegui obter uma enzima que ainda estava ativa, mas já não era mais regulada pelo produto final da cadeia de biossíntese, uma espécie de enzima desmontada. Isso então permitiu compreender a mecânica da montagem, já que foi possível desmontar a enzima. Tem-se dois sítios, duas regiões distintas, que são religadas entre si por uma mudança de conformação. E assim temos, consequentemente, uma espécie de processador que efetua uma regulação crítica em um nó particular do metabolismo.
Não é uma ligação elétrica?
Não, é uma proteína que muda de conformação, uma espécie de mecânica molecular que se torna evidente no nível molecular e mesmo no nível da organização dos átomos da molécula. Podem intervir cargas elétricas ou não, mas são ligações que intervêm na estrutura das proteínas, unicamente. Portanto, temos aí de saída uma nova categoria de proteínas que recebeu o nome de proteínas alostéricas. Elas têm duas regiões e, de acordo com as conclusões a que chegamos, meu então orientador, Jacques Monod, e eu, são de certo modo modelos de sistemas reguladores elementares. No final de minha tese eu generalizei essa ideia para moléculas desse tipo que estariam na membrana e que interviriam na comunicação entre células nervosas, portanto apontei a relação entre um mecanismo elementar bacteriano e um sinal de regulação intercelular – só que nas bactérias ele é intracelular. E ainda na tese propus essa ideia de que os receptores de neurotransmissores no nível de uma sinapse – que é o ponto de contato entre células nervosas – podiam ser proteínas alostéricas. E em seguida, passei toda minha vida trabalhando sobre esse tema. Então esse estudo da tese foi para mim um trabalho fundador de toda uma filosofia de compreensão dos seres vivos e do sistema nervoso central e, portanto, do cérebro.
Tudo ao mesmo tempo?
Sim, praticamente. Uma filosofia da biologia molecular, primeiro compreender como funciona nosso cérebro no nível molecular e em seguida a identificação do primeiro receptor de neurotransmissor.
Album / akg-images/Archives CDA/St-Genès/Akg-Images/LatinstockO receptor da nicotina?
Isso mesmo. Como não havia nenhum receptor conhecido para eu verdadeiramente testar a ideia de que os receptores de neurotransmissores podiam ser proteínas alostéricas, era preciso isolar um. Daí me voltei para o receptor que era o mais conhecido na época, que tinha sido especialmente trabalhado por Sir Henry Dale na Inglaterra, o receptor da junção neuromuscular – que é o receptor da acetilcolina porque a acetilcolina é seu neuromediador. Esse receptor era conhecido só no plano farmacológico, não em sua estrutura, e não se sabia mesmo se era uma proteína. Mas é também um receptor da nicotina. De fato, Sir Henry Dale tinha classificado os receptores da acetilcolina em várias categorias: nicotínicos e muscarínicos; o nicotínico está ligado a uma mudança de propriedade elétrica enquanto o muscarínico tem efeitos metabólicos. Daí me dediquei ao receptor nicotínico da junção neuromuscular que tinha sido muito estudado por um outro inglês, John Newport Langley. Desde o começo do século XX, Langley tinha mostrado que esse receptor é bloqueado pelo curare e estimulado pela nicotina. O problema era descobrir como isolá-lo, porque era uma molécula presente em pequeníssimas quantidades e difícil de marcar. Hoje há centenas de receptores identificados, mas naquela época não havia nenhum. De início me voltei para o órgão elétrico do peixe-elétrico, como o poraquê, que, aliás, se encontra no Brasil. Carlos Chagas trabalhou muito com esse peixe, que vive na bacia do Amazonas; mas outro peixe semelhante é o torpedo, que se encontra, por exemplo, na bacia de Arcachon, na França.
Torpedo?
Sim, é um elasmobrânquio, próximo das arraias. É achatado e vive sobre o fundo do mar, dá descargas elétricas muito poderosas. Seu órgão elétrico é extremamente rico em sinapses colinérgicas, todas idênticas entre si, portanto extremamente rico em receptores. Era preciso encontrar um marcador para isolar o receptor, e foi uma toxina de veneno de cobra que permitiu identificá-lo.
E quando o senhor começou a trabalhar com esse receptor no nível do cérebro?
Comecei primeiro com o órgão elétrico, que é uma imensa coleção de sinapses do tipo da junção neuromuscular. Depois, assim que os métodos de genética molecular foram postos à disposição dos neurobiólogos, esse receptor foi clonado e sequenciado, primeiro no órgão elétrico, depois no cérebro. Isso dava acesso ao receptor nicotínico cerebral.
O senhor explora diferentes papéis desse receptor no cérebro humano.
Sim, aliás, o cérebro humano é muito sensível à nicotina, como todo mundo sabe, daí por que os fumantes tornam-se usuários e dependentes da nicotina, que age sobre o receptor nicotínico cerebral. Encontra-se um homólogo do receptor muscular também no cérebro, que atua nos efeitos estimulantes e na dependência à nicotina. O que é muito interessante é que conseguimos evidenciar no laboratório, recentemente, a existência de receptores muito semelhantes nas bactérias: na Gloeobacter, uma bactéria fotossintética, e em outras espécies. Esses receptores bacterianos não são sensíveis à acetilcolina, mas sim a outros sinais reguladores, como o pH. Quando o pH se torna ácido, seu canal iônico, que tem propriedades muito semelhantes às do receptor nicotínico, se abre.
Mais uma vez, uma visão total da vida…
Sim. Primeiro, é evidentemente muito importante ter um receptor bacteriano porque em geral eles cristalizam mais facilmente e se pode desde logo estabelecer sua estrutura pelos métodos de cristalografia de raios X. Isso foi feito. Desse modo se conseguiu examinar a transição alostérica desses receptores. Você vê, assim, que essa problemática levantada há 50 anos consegue-se demonstrar hoje graças a esses receptores bacterianos. Outra coisa extremamente interessante no plano evolutivo e global é que as bactérias inventaram, de certo modo, esse tipo de receptor muito pouco comum, que é pentamérico e que atravessa a membrana com um canal iônico muito particular. E o que é surpreendente é que os receptores do cérebro são vizinhos do receptor bacteriano. Isso quer dizer que temos em nosso cérebro, digamos, proteínas cujos ancestrais apareceram há bilhões de anos nas bactérias. E esse receptor foi conservado em nosso cérebro! Como você vê, nem tudo foi inventado no cérebro do homem quando ele apareceu sobre a Terra. Herdamos muitas estruturas que foram desenvolvidas antes.
A partir desse paralelismo entre células de nosso cérebro e estruturas bacterianas, o senhor desenvolve uma visão bastante singular. Poderia falar um pouco sobre isso?
Não se pode compreender os seres vivos, e o cérebro em particular, senão quando se tiver compreendido os mecanismos elementares que estão na base de suas funções fundamentais. No caso das bactérias, trata-se de todo o metabolismo, isto é, das reações químicas elementares de sobrevivência e de reprodução da célula bacteriana. No nível do cérebro, o importante é compreender as relações entre as células nervosas, e essas relações são totalmente únicas, porque como você sabe o cérebro é o único órgão que forma uma rede onde as células estabelecem múltiplos contatos de umas com as outras. Há em torno de 10 mil conexões por célula nervosa, portanto trata-se de uma rede de extrema complexidade. E é isso que cria a originalidade do cérebro e que faz com que ele aceda a funções tão elaboradas como a razão, a consciência, a vida social. Dessa forma, a ideia que resulta desses primeiros trabalhos sobre as bactérias e de sua extensão à comunicação entre células nervosas é que, no fundo, nossas funções do cérebro deveriam poder ser compreendidas a partir dos mecanismos moleculares elementares da condução e, sobretudo, da transmissão dos sinais no nível das sinapses. Daí uma visão fisicalista, de certo modo. Isso significa que compreender os mecanismos moleculares é necessário, o que equivale a dizer que todas as nossas funções cerebrais passam por esses mecanismos moleculares. Quando se faz uma anestesia local para extrair um dente ou uma anestesia geral para uma cirurgia, percebe-se que há uma ligação direta entre o anestésico, que é uma molécula química, e a consciência e a percepção dolorosa. Isso quer dizer que há uma química da consciência e quer dizer também que todas essas funções superiores, enfim, estão enraizadas nestes mecanismos moleculares. Mas isso não basta: para irmos mais longe, é indispensável compreender a organização do sistema, compreender como ele se organiza para aceder às chamadas funções superiores do cérebro ou funções cognitivas, que intervêm na aquisição do conhecimento. Essa é a minha ideia filosófica geral.
Vamos retomar a visão do cérebro como uma rede. Não sei como é na França, mas no Brasil e nos Estados Unidos há um debate entre uma visão globalista do cérebro e uma visão localizacionista.
Penso que são teorias diferentes, mas não excludentes. Penso que há localizações cerebrais extremamente precisas, na tradição da frenologia de Gall, por exemplo, as áreas visuais, as áreas auditivas, as áreas especializadas na visão das cores ou no reconhecimento dos rostos e, ao mesmo tempo – e aí abordamos a tese sobre a consciência –, um sistema de conexões a longa distância que são suscetíveis de criar ligações, relações, entre múltiplos territórios do cérebro. Portanto há globalidade e unidade e, ao mesmo tempo, diversidade e especialização.
Martine Franck / Magnum Photos / LatinstockDepois das descobertas do receptor de acetilcolina, o senhor elaborou o modelo de aprendizagem por estabilização seletiva das sinapses.
Isso é muito importante para tentar compreender como se desenvolve a complexidade de nosso cérebro. Examinemos primeiro o nível genético, a evolução da sequência dos genomas do camundongo, do macaco ao homem, passando pelo chimpanzé e aí nos damos conta de que as diferenças são muito pequenas. Elas existem, é claro, porque um macaco não é um homem e um camundongo não é um macaco. Portanto há bases genéticas evidentemente importantes. Mas quando se olha o número de genes, de estruturas, vê-se o genoma que é muito próximo, quase idêntico, em todos os mamíferos. Aliás, o número de genes da drosófila não está muito longe daquele do homem. Isso pode parecer surpreendente. E levanta evidentemente um paradoxo: a complexidade do cérebro cresce de maneira fulgurante enquanto a do genoma muda pouco ao longo da evolução? A evolução procede – já falamos disso com os receptores – por acumulação progressiva das estruturas elementares que se formaram nas bactérias, depois nos eucariotos, nos multicelulares, nos invertebrados, vertebrados, mamíferos etc. E essas estruturas se acumularam umas após as outras, de tal forma que pouco a pouco se construiu um cérebro que tem a complexidade do cérebro humano. Muitas estruturas foram selecionadas antes do aparecimento do homem, mas o que caracteriza no fundo a evolução do homem? Há, primeiramente, o aumento do tamanho do cérebro. Não é muito difícil compreender, basta aumentar o número de divisões celulares, alguns genes bastam para isso. Depois há alguns princípios de organização geral, como, por exemplo, o desenvolvimento relativo do córtex pré-frontal, que é muito importante no homem; ainda aí, alguns genes de desenvolvimento vão determinar essa organização. Mas isso ainda não é suficiente para resolver o paradoxo. Uma nova ideia é levar em conta o fato de que o cérebro se constrói progressivamente durante 15 anos no homem. Seu peso aumenta 5 vezes desde o nascimento. Durante esse período, o cérebro se desenvolve em constante interação com o meio ambiente exterior. Há de algum modo um invólucro genético que permite a essas redes se organizarem e, depois, a interação com o mundo exterior vai especificá-las e validá-las. É essa a ideia da estabilização seletiva das sinapses, da epigênese sináptica que desenvolvi com Antoine Danchin. Há a sucessão de fases de exuberância sináptica e de seleção devido à interação com o ambiente físico, social e cultural; certas sinapses foram eliminadas e outras, conservadas, estabilizadas e amplificadas. De certo modo, há darwinismo, mas não genético: epigenético. Por essa razão é que qualifiquei essa teoria de “epigênese por estabilização seletiva das sinapses”.
Experiências relativas a essa teoria são possíveis?
Sim, claro. Conseguimos demonstrar isso com a junção neuromuscular e mostrar que na etapa da exuberância sináptica, se o sistema é estimulado eletricamente, acelera-se a eliminação das sinapses. A experiência também foi feita por Lubert Stryer e Carla Shatz no nível do sistema visual. De uma maneira geral, a estimulação elétrica acarreta a eliminação sináptica. Pode-se igualmente mostrar que, quando há estimulação elétrica, há eliminação sináptica. A mesma coisa se dá no nível do cerebelo. Portanto, é um mecanismo muito geral, estudado por muitos pesquisadores americanos.
É possível estabelecer uma relação entre essa teoria e resultados de exames de ressonância magnética funcional?
Sim, mas a teoria da epigênese é uma teoria sináptica, portanto microscópica, ao passo que os exames de ressonância magnética são macroscópicos. Então é difícil. Entretanto, pode-se observar, por exemplo, que a superfície de certos territórios corticais se restringe ao longo do desenvolvimento ou se remodela à medida que o cérebro da criança se desenvolve. Pode-se ter testes de certo modo macroscópicos da teoria, por exemplo, seguindo a estruturação progressiva dos territórios enervados pelo olho, pelo ouvido ou por outras entradas sensoriais. Digo isso a título de exemplo, é factível. Mas a verdadeira demonstração da teoria é no nível elementar, no nível sináptico.
Mas o cérebro faz essa seleção todo o tempo?
Sim, ao longo do desenvolvimento as etapas de crescimento, de desenvolvimento exuberante e de seleção sináptica se sucedem, criando a cada vez uma etapa crítica de interação com o ambiente. E isso é válido mesmo para o adulto, eu presumo. Essas etapas múltiplas se imbricam umas nas outras. E, entre outras, aquelas que intervêm na aprendizagem da linguagem falada e da linguagem escrita.
Claude Debru disse no prefácio de um de seus livros que o senhor criou recentemente um modelo da consciência sob a forma de uma teoria do espaço neuronal de trabalho consciente, elaborado com Stanislas Dehaene. Pode nos falar sobre ela?
Sim, exatamente. O ponto de partida crítico é conseguir medir experimentalmente o acesso à consciência, isto é, utilizar métodos científicos objetivos – os métodos de imagens, entre outros – para acompanhar o acesso de sinais do mundo exterior à consciência do sujeito, por exemplo, um sinal visual, um quadro ou um texto escrito. Como acompanhar seu acesso à consciência? Comparando o tratamento consciente e não consciente de um mesmo sinal. Métodos biofísicos conhecidos há muito tempo, chamados de mascaramento, permitem fazer isso. Apresenta-se a uma pessoa slides sucessivos em uma escala de tempo que é da ordem de várias dezenas de milissegundos [ms]. Primeira condição: apresenta-se durante 70 ms, por exemplo, uma palavra escrita que é encaixada entre slides vazios antes e depois da palavra, e o sujeito é capaz de dizer: “Ah, eu vi a palavra leão”, ou “Vi a palavra cérebro”. Portanto há uma espécie de acesso à consciência na medida em que o sujeito pode dizer: “Sim, eu li a palavra leão”. Mas se agora você apresenta a mesma palavra colocando imediatamente antes e depois as máscaras, isto é, outras figuras diferentes da palavra escrita e pergunta à pessoa: “Você viu alguma coisa?”, ela diz “não”. Então, a mesma palavra pode ser lida, ou antes, vista de maneira consciente e, por outro lado, entrar no cérebro e nele se propagar sem ser consciente. Neste último caso, verifica-se após a experiência que o processamento não consciente realmente aconteceu porque a pessoa se tornou capaz de fazer escolhas influenciadas pela palavra que foi tratada pelo cérebro de modo não consciente. Pode-se, portanto, definir um protocolo experimental no qual se submeta um ser humano a um teste visual consciente/não consciente e, nessas duas condições, submetê-lo a registros por ressonância magnética ou eletroencefalografia. É possível correlacionar dados objetivos sobre a atividade do cérebro e os dados subjetivos dos processamentos consciente e não consciente. Portanto, pode-se definir de certo modo as bases neurais do tratamento consciente em relação ao tratamento não consciente.
É algo como dar fundamentos biológicos para Freud, por exemplo.
Sim, mas eu não gosto de fazer referência a Freud porque a grande diferença é que, no caso presente, se trata de um estudo científico sobre o acesso à consciência, e não de um discurso literário. Quero dizer com isso que se consegue, em condições experimentais definidas, registrar parâmetros mensuráveis por meio de imagens, por eletroencefalografia ou magnetoencefalografia, e ter sinais físicos cerebrais que correspondem aos processamentos consciente e não consciente.
Em um seu recente artigo de revisão, o senhor diz que a palavra consciência é plena de ambiguidade.
Sim, é verdade. Porque há a consciência moral, a consciência política etc. E também a consciência no sentido fisiológico do termo, que nos interessa, e que faz com que estejamos conscientes quando lemos, quando olhamos uma paisagem. Quando adormecemos, já não estamos conscientes.
Seu interesse é o acesso à consciência?
Sim. É preciso evidentemente que o cérebro esteja em um estado consciente e que não esteja adormecido, anestesiado, ou em coma – condições em que o cérebro não está mais consciente; o sujeito tampouco. E se pode mostrar que há diferenças fisiológicas durante o coma, durante a anestesia geral ou durante o sono. O sujeito em coma não tem acesso à consciência, em princípio. Ou tem, mas muito pouco. Nos ditos estados vegetativos, o sujeito desperta e adormece, mas o acesso à consciência é muito alterado. Ele só percebe pouquíssimas coisas.
Arquivo pessoalE no caso da esquizofrenia?
Nossa interpretação é que o esquizofrênico sofre de uma alteração do espaço de trabalho neuronal consciente, que seria de um acesso mais restrito. Então ele tem perturbações em sua relação social com os outros porque a relação com o outro passa pelo acesso à consciência.
Quais são os desafios futuros destes estudos sobre o acesso à consciência?
A primeira coisa é a consciência de si. Está em curso. Vários grupos de pesquisadores estudam o que se chama a percepção de si, a self-consciousness, que pode ser perdida seletivamente, por exemplo, no caso da anosognosia. Um indivíduo com uma lesão do hemisfério direito no nível parietal desenvolve uma hemiplegia esquerda. Mas, em certos tipos de lesão, o sujeito nega que está paralisado, não tem percepção de sua própria paralisia, de seu próprio corpo. Portanto há alteração da consciência de si e de seu corpo. Isso é algo que precisa ser evidentemente compreendido. E a outra coisa que me interessa muito é ter acesso ao que se poderia chamar de raciocínio consciente, a organização do pensamento.
Isso é possível?
Eu acredito que vamos conseguir, com certeza.
É experimentalmente possível?
Bom, primeiro é necessário conseguir resultados no plano teórico. Nesse caso, acho que a teoria é indispensável antes ou paralelamente à experimentação. Uma etapa indispensável é ter uma representação neuronal do objeto consciente, uma representação consciente em relação a uma representação não consciente. E uma vez que se tenha isso, tentar em seguida compreender como essas representações conscientes são suscetíveis de se articular entre si, de se encadear para constituir uma oração, como “o céu é azul”. É uma coisa que é preciso fazer e estamos longe de chegar lá, mas sou bastante otimista. Penso que nos próximos 5 ou 10 anos esse gênero de problema poderá ser resolvido. Assim, se chegará, penso, a ter uma concepção científica e objetiva da organização do pensamento.
Uma visão objetiva da organização do pensamento corresponde também a uma visão da organização da linguagem.
Sim, o acesso à linguagem é essencial. A linguagem pode desempenhar um papel muito importante na medida em que contribui para a formação dessas representações conscientes com o uso das palavras e o sentido atribuído a uma palavra. É possível um raciocínio com representações sem que haja palavras, mas é certo que a palavra vai ter um papel muito importante. Então, é a porta de entrada para a linguagem e também para a interação social, visto que a linguagem intervém na comunicação social. Portanto, você vê que ainda há muito a fazer.
Sua pesquisa se concentra atualmente em que pontos?
Há três grandes temas que me interessam: de um lado, a transdução do sinal pelas proteínas alostéricas, compreender como um receptor funciona no nível atômico, por exemplo, com o receptor bacteriano. Segunda coisa que me interessa muito: a expressão dos genes que acompanham a epigênese, para tentar correlacionar o genoma com a organização do cérebro, primeiro ao longo do desenvolvimento e, evidentemente, na fase adulta. Trata-se de um problema de expressão gênica no decorrer do desenvolvimento em relação com a seleção das sinapses. E depois a terceira é o que acabamos de dizer, tentar progredir na compreensão das bases neurais das representações conscientes. É atualmente o trabalho em curso com Stanislas Dehaene e uma estudante que temos em comum. A ideia é a partir das representações conscientes abordar questões que tocam as matemáticas, a linguística, coisas desse gênero. É um futuro um pouco mais longínquo, mas é um futuro… concreto.
Paralelamente a seus estudos científicos, o senhor fez um trabalho de divulgação da ciência.
Sim, dei aulas no Collège de France e escrevo livros a partir dessas aulas.Não gosto muito da televisão e das outras mídias; os livros escritos são mais apropriados para os trabalhos científicos, porque ciência demanda ser explicada de uma maneira particularmente precisa e rigorosa. Mas é evidente que existem também outros métodos, como a tevê, ou o teatro, por que não?
O senhor tem uma visão geral da cultura, da arte, e estabelece uma relação entre a ciência e a cultura. É possível seguir assim?
Não só é possível como necessário, de meu ponto de vista. Penso que a ciência se desenvolve, a quantidade de conhecimento que tem sido produzida no último século é considerável e o perigo seria que os físicos fizessem somente física ou os biólogos só biologia, os psicólogos só psicologia etc. Penso que deve haver, ao contrário, unificação do conhecimento para além da diversidade das disciplinas. Aliás, esta é a proposta de Diderot. O que é feito em neurociências deve ser útil para a psicologia, o que é feito em física deve ser útil para a biologia molecular, e reciprocamente; os problemas levantados pela biologia molecular devem interessar aos físicos, ou os problemas levantados pela psicologia experimental devem levar os físicos a desenvolver novos instrumentos para examinar com alta resolução os estados de atividade do cérebro no tempo e no espaço simultaneamente. Então, para mim, é não somente indispensável ter uma visão enciclopédica, mas também conseguir fazer sínteses multidisciplinares, construtivas. E isso inclui as humanidades, porque, para nós, o cérebro está diretamente em contato, é ele que produz a cultura. E a cultura age sobre o cérebro. É nos dois sentidos. Produzimos a linguagem, mas o bebê aprende a linguagem a partir daquela dos adultos.
Quantas horas o senhor trabalha por dia?
Hum, eu não conto. Para mim, isso não é um problema, porque trabalhar me descansa de certa maneira. Não trabalhar é que me angustia; então, não conto as horas que trabalho, é o tempo todo. Evidentemente, tenho muitas distrações, porque, ao mesmo tempo, em minha atividade científica, há diversos níveis de concentração. Há trabalhos que são muito mais específicos, muito mais aprofundados, por exemplo, os três temas que mencionei há pouco; além disso, tenho interesse e reflito sobre arte, pintura, música, questões de ética, que geram debate e arejam as ideias, por assim dizer. Eu trabalho o tempo todo! Isso não me incomoda. Mas é preciso, claro, ter uma vida familiar ao mesmo tempo.
O senhor nasceu na França?
Sim, nasci na região parisiense. Mas meus pais não eram de Paris. Minha mãe vinha de Rouergue, no sul da França. Meu avô era professor primário do vilarejo e era o que se chama de “hussardos negros da República”, isto é, pessoas que dedicavam sua vida à educação laica, gratuita e obrigatória.
Existe, então, uma tradição de educação na família.
Ah, sim, isso é muito importante, veio do lado materno. E meu pai era um técnico em engenharia que vinha do centro da França. São regiões pobres. Meus pais deixaram suas regiões porque eram pobres demais, eles não encontravam trabalho. Então vieram para Paris trabalhar e se conheceram.
Quantos estudantes o senhor formou ao longo de todos esses anos?
Não sei. Dezenas, com certeza. Não fiz a conta. Talvez 80 ou mais. No meu laboratório, eu tinha 5 a 7 estudantes universitários, em média, e o mesmo número de pós-doutores, o que dava 10 a 15 pessoas, constantemente, durante 30 anos. São muitas pessoas. E vários são professores em universidades muito renomadas. Stanislas Dehaene, que era um de meus alunos em tempo parcial, é professor no Collège de France; outros são diretores de pesquisa no Centro Nacional de Pesquisa Científica, o CNRS; outro, em Harvard; outro, na Caltech; outro foi professor na Universidade de Tóquio e agora trabalha em Riken, no Japão. Portanto, a maioria deles é bem-sucedida. Fico muito contente.
Seu grupo de neurocientistas trabalha em colaboração com grupos de outros países?
Sim. Muitos são estrangeiros; há muitos americanos, muitos japoneses, entre os que fazem pós-doutorado. Não recebi muitos sul-americanos, infelizmente, pois eu teria gostado. Europeus, alemães, ingleses. É sempre bastante multinacional. É bem importante manter o lado internacional na pesquisa científica.
O senhor acredita que a neurociência está fadada a novos desenvolvimentos fundamentais?
Sim, é o futuro. É a ciência do futuro, do porvir. A física ainda tem coisas a descobrir. Conhece-se muito sobre o átomo, sobre a estrutura da matéria, sobre as galáxias. Mas há ainda muito a ser feito. Acredito que a grande incógnita agora é o cérebro do homem… Compreender o que nós somos. O que é o homem.
Seu interesse por ciência vem desde a infância?
Sim. Como eu disse, venho de uma família muito simples, que não tinha nenhum interesse por ciência, eles não sabiam o que era isso, nem mesmo tinham muito interesse por cultura. Mas na escola alguns professores me orientaram. Aos 11 anos, um professor de ciências naturais, Jean Bathellier, encorajou muito meu interesse por ciências naturais na época. Eu colecionava insetos, plantas etc. Ele me ajudou e, sobretudo, me pôs em contato com um entomologista famoso do Museu de História Natural, Eugène Séguy. E aos 12, 13 anos eu já sabia o que era a pesquisa. Aos 19 anos entrei no laboratório de Banyuls-sur-Mer, onde fiz uma pequena tese: lá descobri uma nova espécie de crustáceos parasitas, as holotúrias, que são equinodermos chamados de pepinos-do-mar. Então, eu sempre fui apaixonado pelo trabalho científico. É minha vida. Eu nunca procurei!!! Eu sempre segui minha paixão, é espontâneo em mim.
O senhor acredita que estamos em um novo mundo?
Acredito sim.
E como o senhor vê esse mundo?
Como todos os mundos, o que importa é saber o que os homens farão com ele. Veja com a física: a energia atômica permite produzir eletricidade e sobreviver, mas se fazem bombas com essa energia para matar as pessoas. Foram os homens que fizeram as duas coisas. Então, com os trabalhos sobre o cérebro, é preciso estar atento a que eles sirvam para o bem da humanidade, e não para sua destruição.
O senhor já ganhou muitos prêmios, mas ainda falta um…
Não! E de todo modo não sou eu quem decide isso!!