Em 2009, o paulistano Antônio José Roque da Silva assumiu a direção do Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS), em Campinas, São Paulo. Esse tipo de acelerador circular de partículas carregadas (elétrons) gera uma radiação, a luz síncrotron, que permite investigar a estrutura da matéria na escala dos átomos e das moléculas. Funciona como um microscópio gigante, capaz de “ver” o interior de materiais, tecidos biológicos e patógenos.
Acadêmico com atuação nas áreas de física atômica, molecular e da matéria condensada, José Roque, como é conhecido, tinha a missão de dar uma sobrevida ao antigo UVX, fonte de luz síncrotron que fora a primeira a entrar em operação no hemisfério Sul, e tocar o projeto de construção de seu substituto: o Sirius, um novo acelerador de quarta geração, a mais avançada disponível. Pouco antes da inauguração do Sirius em dezembro de 2018, o físico passou a dirigir o Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM). Essa organização social faz a gestão do LNLS, dos laboratórios nacionais de Biociências (LNBio), de Nanotecnologia (LNNano) e de Biorrenováveis (LNBR), de sua unidade de Tecnologia (DAT) e da Ilum – Escola de Ciência, que mantém curso de bacharelado em ciência e tecnologia. “Todas essas unidades atuam de forma coordenada para executar a missão de um centro de pesquisa único no país”, diz.
Em abril deste ano, José Roque, de 61 anos, ganhou o Prêmio Almirante Álvaro Alberto de 2025 na categoria Ciências Exatas, da Terra e Engenharias. A honraria é concedida pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), em parceria com o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) e a Marinha do Brasil, para pesquisadores que deram uma importante contribuição para o país. Nesta entrevista, realizada em sua sala em Campinas, o físico fala do CNPEM, do funcionamento do Sirius e do projeto Orion, que vai ser o primeiro laboratório de biossegurança máxima (NB4) na América Latina.
O prêmio foi um reconhecimento ao José Roque pesquisador ou ao seu lado gestor?
Deve ter sido uma mistura dos dois, mas acho que o peso do gestor foi maior. Obviamente, o Sirius é um destaque no contexto do CNPEM e da ciência nacional. Mas o centro é maior do que o Sirius e representa um lugar único de pesquisa no país, similar a poucos no exterior. O CNPEM tem uma missão institucional que se desdobra em diversas atividades transversais e multidisciplinares em nossas unidades de pesquisa. Fui escolhido porque entenderam que dei uma contribuição importante na gestão do CNPEM. É quase uma premiação para a capacidade técnica da ciência brasileira. Ela passa a mensagem de que o Brasil tem uma ciência que, às vezes, consegue fazer o que outros países não fazem. Com mais dificuldade e menos dinheiro do que os países mais ricos, tendo que fazer as escolhas certas, mostramos que temos pessoas e empresas competentes. Cerca de 85% dos componentes do Sirius foram construídos no país.
Pela grandiosidade e nível de investimento, o projeto Sirius sofreu críticas de parte da comunidade científica em seu início. Essa fase foi totalmente superada?
Desde o primeiro síncrotron, houve um receio da comunidade científica de que um projeto tão grande como o Sirius pudesse receber todo o dinheiro que seria destinado à ciência nacional. Mas isso nunca se mostrou verdadeiro. O Sirius absorve um pedaço do orçamento da ciência brasileira. Recebemos cerca de R$ 2,5 bilhões ao longo de 13 anos, desde o início do projeto.
O Sirius já está operando em sua plena capacidade?
Ele está sempre crescendo e estará nessa situação ainda durante muitos anos. Foi projetado para ter até 38 linhas de luz [estações experimentais para a realização de estudos sobre a estrutura de materiais a partir do emprego de faixas de frequências específicas do espectro eletromagnético, como raios x, ultravioleta ou infravermelho, que foram obtidas a partir da luz síncrotron]. Nenhum síncrotron começa a funcionar com capacidade máxima. Não se constrói essa quantidade de linhas de uma única vez. A primeira fase de operação do Sirius, que se iniciou em 2020, incluiu o desenho de 14 linhas de luz, que cobririam a maior parte das técnicas importantes usadas pela comunidade científica na fronteira do conhecimento. Atualmente, 10 linhas estão totalmente abertas para a utilização de usuários de qualquer instituição de pesquisa do Brasil – e não apenas de pesquisadores do CNPEM – e do exterior. Duas estão funcionando ainda em caráter experimental e duas estão em fase de conclusão. Até o final de 2026, todas as 14 linhas deverão estar funcionando. Apesar de alguns momentos de dificuldade, nunca interrompemos nenhuma atividade. Com o atual governo federal, negociamos uma verba de R$ 800 milhões do novo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) para a implantação de uma segunda fase do Sirius, que ganhará mais 10 linhas de luz. Algumas já começaram a ser construídas. Esperamos entregar as linhas da segunda fase até 2028.
Existe um usuário típico do Sirius ou cada linha tem um perfil diferente de usuário?
Diria que temos os usuários mais tradicionais que, há décadas, utilizavam a fonte UVX e agora usam o Sirius. Esse pessoal é mais da área de física, de ciência dos materiais e de química também, sobretudo os que trabalham com catálise. Temos feito um esforço, que vem dando resultado, para ampliar o uso para outras áreas, como saúde, ciências do solo, patrimônio cultural, materiais porosos. No ano passado, 437 projetos de pesquisa utilizaram alguma linha de luz do Sirius, dos quais 309 eram de pesquisadores externos, de fora do CNPEM.
Pesquisadores dos laboratórios do CNPEM têm prioridade?
Na época ainda do UVX, tinham um percentual de tempo para uso deles, mas atualmente não. A competitividade aqui é alta. De cada três ou quatro pedidos para uso de uma linha de luz, apenas um é aprovado. Pesquisadores do CNPEM têm de submeter seu projeto para análise, como qualquer pessoa de uma instituição de fora. Não há uso cativo para eles. Houve recentemente um aumento dos pedidos de uso do Sirius vindos dos Estados Unidos e da Europa. Antes, as submissões internacionais vinham basicamente da Argentina e de países da América do Sul. Em 2024, 16% dos projetos aprovados vieram do exterior. No passado, quase ninguém de fora da América do Sul vinha usar o UVX. Para usar o Sirius, eles vêm.
Quem são os concorrentes do Sirius no mundo?
Hoje, além do Sirius, há duas instalações com fonte de luz síncrotron de quarta geração abertas para usuários externos no mundo. Uma é o Max IV, na Suécia, que começou a funcionar antes de nós, em 2016. A outra é o European Synchrotron Radiation Facility [ESRF], na França, que foi modernizado e se tornou um síncrotron de quarta geração em 2020. O Max IV é uma máquina na qual a energia dos elétrons é da ordem de 3 gigaelétrons-volt [GeV], a mesma do Sirius. O ESRF é uma máquina de 6 GeV, ou seja, com elétrons com o dobro da energia do Sirius. É outra categoria, que pode gerar raios x de energias mais altas, com maior brilho. Nessas frequências mais elevadas, o Sirius e o Max IV não conseguem ter o mesmo brilho. Entretanto, o Sirius foi desenhado para ter linhas de luz com fótons de alta energia também. Somos muito competitivos em energias mais intermediárias, que são importantes para estudos, por exemplo, de questões relacionadas à saúde e à agricultura. A escolha da energia dos elétrons do acelerador não é uma questão importante para definir a geração de um síncrotron. Um síncrotron de mais alta energia é, em geral, maior que um de menor energia. Portanto, mais caro de construir e de operar. A escolha da energia do acelerador envolve uma questão de custo-benefício. O Sirius foi desenhado para ser competitivo em uma ampla faixa de energia dos fótons, incluindo os raios X de alta energia.
O que determina a geração de um síncrotron?
O que realmente interessa é o brilho do feixe de luz síncrotron. Quanto maior for o brilho, mais fótons, partículas de luz, podem ser concentrados em um feixe muito pequeno, o que aumenta a capacidade experimental de o síncrotron ver o interior dos materiais. Um parâmetro importante para aumentar o brilho é a emitância, que determina o tamanho e o grau de concentração do feixe de elétron que circula pelo acelerador. Quanto menor for a emitância, maior o brilho. O próximo síncrotron de quarta geração a ser aberto para usuários externos deve ser o Advanced Photon Source [APS], no Laboratório Nacional Argonne, nos Estados Unidos. É uma máquina de 6 GeV, parecida com a da Europa. O Swiss Light Source [SLS], do Instituto Paul Scherrer, na Suíça, está sendo atualizado para ser um síncrotron de quarta geração de 2,7 GeV e a China está construindo um síncrotron de 6 GeV, o The High Energy Photon Source [HEPS]. Nos próximos anos, passaremos de 3 para 6 síncrotrons de quarta geração em operação.
Nesse cenário de maior concorrência, o Sirius continuará a ser competitivo?
Dependendo da energia utilizada e do problema a ser investigado, o Sirius é competitivo em relação a todos eles. Não é só a capacidade do síncrotron que faz a diferença. Depois que se tem uma máquina de um certo patamar, o que faz muita diferença é ter boas ideias de problemas científicos para serem estudados. Um desafio para a ciência brasileira é ter problemas sofisticados o suficiente que justifiquem a utilização do Sirius. Só assim ele vai entregar os resultados esperados. Precisamos de problemas científicos desafiadores para fazer trabalhos que, antes do Sirius, eram impossíveis de serem feitos aqui.
A comunidade científica sabe quais tipos de estudos podem ser feitos com o Sirius?
Esse é um dos nossos desafios, inclusive do ponto de vista da comunicação. Pesquisadores de áreas como física da matéria condensada conhecem bem as capacidades do Sirius. Mas investigadores de outras áreas, como biologia e agricultura, costumam não ter ideia de como o Sirius poderia ser útil em seus estudos. Não adianta explicar para o pesquisador detalhes muito técnicos sobre o funcionamento do síncrotron. Ele não é especialista na técnica, é usuário dela. Temos de dar apoio para que ele possa entender como a luz síncrotron pode ajudá-lo a resolver um problema científico. Isso faz parte do nosso dia a dia aqui.
Até agora, quais trabalhos feitos com o Sirius destacaria?
É importante destacar que a maior parte das linhas de luz está em operação regular há dois anos, ou seja, os papers gerados por esses experimentos vão ser publicados de agora em diante. Mas já foram divulgados estudos importantes na área de biologia molecular estrutural, setor em que o país não tinha a capacidade de fazer esse tipo de estudo. Na área de materiais, foram feitas análises em células solares e de eletroquímica. Hoje temos a capacidade de fazer trabalhos em tomografia de raios x em materiais porosos, solos e rochas. Esperamos aumentar em breve a capacidade de fazer trabalhos em sistemas biológicos.
Por que o projeto Orion vai construir um laboratório de biossegurança de nível 4, o NB4, acoplado ao Sirius?
Durante a pandemia, era preciso ter laboratórios de nível 3 para lidar com o vírus Sars-CoV-2. Houve então um movimento do MCTI para financiar a construção de mais NB3. Ganhamos recursos naquela época para construir um. Mas algumas pessoas no ministério, que nem cientistas eram, participaram de conversas no passado e retomaram a discussão de que o país precisaria ter um laboratório de nível 4, capaz de lidar com patógenos de segurança máxima, como os vírus sabiá, descoberto no Brasil, ebola, junín, machupo e guanarito. Eles nos perguntaram se poderíamos fazer um NB4 conectado ao Sirius. Dissemos que sim, mas que uma série de desafios teriam de ser vencidos. Esse tipo de conexão nunca foi feito no mundo. Deveremos concluir o Orion até o fim de 2027.
É mais caro fazer um NB4 acoplado a uma fonte de luz síncrotron do que sem essa conexão?
Se tivéssemos que fazer tudo do zero, sim. Mas a estrutura principal do Sirius já está pronta. Essa decisão praticamente não encarece o Orion. O que eu vou gastar a mais? Um pedaço da construção civil do prédio que vai conectar o Orion ao Sirius, algo relativamente simples, e obviamente a construção de três novas linhas de luz do síncrotron dedicadas ao complexo laboratorial de biossegurança. A estrutura tem uma certa sofisticação, requer pisos especiais e outras coisas. Mas isso encarece em 10% ou 15% o valor do projeto como um todo, orçado em cerca de R$ 1,5 bilhão. O projeto aumentou de tamanho à medida que foi amadurecendo e avançando. O maior aumento de custo foi com espaços para experimentação animal. É importante destacar que as três linhas de luz do Orion farão parte do total de 38 possíveis do Sirius.
Como vai funcionar o Orion?
Vai ser uma instalação de uso aberto para pessoas de fora do CNPEM, como é o Sirius. Mas seu modelo de uso será diferente. É preciso ter um treinamento diferenciado para usar esse tipo de laboratório. Tivemos de estabelecer contato com os laboratórios de nível 4 no resto do mundo para aprender como se toca esse tipo de instalação. A área do prédio, de 28 mil metros quadrados, foi determinada não pela conexão com as três linhas de luz, mas por causa das atividades do complexo laboratorial, como a capacidade de fazer experimentos com animais-modelo e desenvolver vacinas.
O que haverá dentro do prédio, além do NB4?
Haverá um NB2 e também um laboratório de nível 3. Nas visitas que fizemos a laboratórios de nível 4 no exterior, fomos aconselhados a fazer um NB2 maior, se possível com o dobro do tamanho do NB4.
Por quê?
Porque o NB2 é usado para preparar quase tudo que será utilizado nos demais níveis. Sua operação é muito mais simples e barata. Não compensa usar um NB4 ou mesmo um NB3, que é o grau de segurança exigido para lidar com o vírus da Covid-19, para tarefas de risco pequeno. No processo de desenvolvimento de uma vacina, precisamos, por exemplo, testar o imunizante em um camundongo. Vamos receber o animal e inocular a vacina nele no laboratório de nível 2, onde se pode entrar sem usar um traje especial todo fechado, que recebe ar externo filtrado, como ocorre no nível 4. Vamos usar o NB4 apenas se o animal vacinado for exposto deliberadamente a um vírus, para ver se a imunização confere alguma proteção, em um tipo de experimento denominado desafio. Posso também preparar culturas no nível 3 e subir com elas para fazer o experimento no 4.
Qual a vantagem de ter um NB4 e o Sirius junto?
Vamos poder fazer uma série de estudos e análises com os patógenos mais perigosos que conhecemos em um único lugar. Fizemos uma análise de quantas linhas de luz síncrotron faria sentido ter com o Orion e chegamos à conclusão de que precisaríamos de três. Uma para fazer uma tomografia de células individuais, para enxergar como os vírus e outros patógenos modificam a estrutura celular. Uma segunda linha para fazer uma tomografia de tecidos e órgãos, não necessariamente em nível intracelular, mas capaz de olhar, célula por célula, como ocorreram os danos e o espalhamento de uma doença ou patógeno. E, finalmente, uma terceira linha de luz dedicada ao estudo da evolução de doenças em animais-modelo vivos. Seria uma tomografia com uma resolução muito maior do que a realizada por uma máquina de bancada.
Falando agora um pouco mais de sua trajetória, gostaria de saber como surgiu seu interesse pela ciência.
Nasci em São Paulo, mas meus pais, funcionários públicos, se mudaram para Brasília entre 1963 e 1964. Eu tinha 7 meses de vida e acabei crescendo lá. Meu pai foi taquígrafo e minha mãe bibliotecária da Câmara dos Deputados. Havia então o programa espacial norte-americano, que levaria o homem à Lua em 1969. Ciência e tecnologia eram algo diferenciado. Meu pai gostava dessas coisas e eu escutava conversas sobre isso em casa. Naquela época, as pessoas iam a bancas de jornal e me lembro de ter ganho um kit de ciências, que tinha diferentes experimentos de física e de química. Com a ajuda de meu pai, eu e meu irmão [o físico Antônio Carlos Roque da Silva Filho, da USP de Ribeirão Preto], que é um ano mais velho, fazíamos os experimentos. Em 1981, meu irmão veio cursar física na Unicamp [Universidade Estadual de Campinas]. Vim junto para fazer cursinho e com a ideia de fazer engenharia. Mas achei a física mais interessante e entrei na Unicamp em 1983.
O que você estudava antes de ir para o síncrotron?
Comecei a construir minha carreira científica fazendo simulações computacionais, em colaboração estreita com Adalberto Fazzio [físico e hoje diretor da Ilum – Escola de Ciência, do CNPEM]. Montamos um grupo de trabalho e inicialmente fizemos alguns estudos na área de materiais semicondutores. Mas, logo em seguida, despontou muito a área de nanotecnologia. Quem não fizesse pesquisa com nanotecnologia entre o fim dos anos 1990 e início dos 2000, ficava estagnado. Fiz uma carreira na USP e acho que tive uma boa produtividade usando as técnicas de cálculo computacional para estudar materiais na escala nano. Isso até ser cedido em tempo integral para o LNLS em 2009.
A entrevista acima foi publicada com o título “José Roque: Do Sirius ao Orion” na edição impressa nº 352 de junho de 2025.
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