As doenças que atingem a citricultura paulista vêm sendo alvo de sucessivos projetos de pesquisa financiados pela FAPESP desde a criação da Fundação, há quase 50 anos. Dos estudos sobre cancro cítrico realizados pelo Instituto Biológico na década de 1960 ao sequenciamento genético de patógenos que atingem os laranjais, como a Xylella fastidiosa e a Xanthomonas citri, os recursos da FAPESP e a curiosidade de centenas de pesquisadores foram mobilizados para fazer avançar a ciência básica relacionada à cultura dos citros, o combate a pragas e o melhoramento de variedades. “São Paulo tem um clima favorável, solo fértil e uma indústria que aprendeu a ser extremamente competitiva, mas convivemos com os maiores problemas fitossanitários existentes que podem atingir os citros no mundo”, diz Antonio Juliano Ayres, gerente do Departamento Científico do Fundo de Defesa da Citricultura (Fundecitrus), entidade ligada aos produtores e à indústria de suco que investe R$ 9 milhões em pesquisas e mantém parcerias importantes com a FAPESP. “A citricultura paulista não teria essa pujança se não houvesse um contínuo investimento em ciência e tecnologia no setor – e a FAPESP teve um papel fundamental nisso”, afirma. A atividade econômica movimenta no estado US$ 2 bilhões por ano, gera 400 mil empregos diretos e tem, em São Paulo, a maior área plantada de laranja destinada a suco do mundo (627 mil hectares).
A cientista Victoria Rossetti (1917-2010), pesquisadora do Instituto Biológico, é um nome-chave na trajetória dessa linha de pesquisa. Primeira mulher a graduar-se em engenharia agronômica na Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq), da Universidade de São Paulo, Victoria pediu, em 1963, o primeiro auxílio para estudos do controle do cancro cítrico concedido pela Fundação, num momento em que a doença se alastrava e ameaçava dramaticamente a agroindústria da laranja no estado. Uma das mais sérias doenças dos laranjais, o cancro cítrico é causado por uma bactéria que ataca ramos, folhas e frutos. Surgira no Brasil em 1957, na região de Presidente Prudente, e faltavam informações básicas sobre sua forma de contágio e métodos de controle. O primeiro sintoma é o aparecimento de manchas amareladas que, com a evolução da doença, escurecem e se tornam salientes. A doença não tem tratamento – a solução é erradicar a planta e parte do pomar infectado. “Não havia recursos suficientes para a pesquisa e ela se precupava muito em obter apoio para a publicação dos achados de pesquisa e para enviar pesquisadores para estágios ou eventos no exterior”, afirma Eduardo Feichtenberger, pesquisador do Instituto Biológico que trabalhou com Victoria Rossetti.
Entre 1953 e 1985, a cientista obteve da FAPESP 14 auxílios para projetos de pesquisa, bolsas para pesquisadores e vários auxílios para apresentação de trabalhos em reuniões internacionais, visitas a outros centros de pesquisa e publicações científicas. Seus estudos permitiram desenvolver um programa de trabalho fundamental tanto para a erradicação como para o controle do cancro cítrico. Uma obra de referência com análise de toda a bibliografia conhecida sobre cancro cítrico foi lançada por Victoria em 1982, com patrocínio da FAPESP.
Enquanto os estudos feitos no Instituto Biológico ajudaram a conhecer as características da Xanthomonas citri, o Instituto Agronômico (IAC) investiu no desenvolvimento de variedades mais resistentes e tolerantes à doença. O acúmulo de conhecimento sobre a doença, que só havia sido detectada antes no Japão, levou a uma decisão que, paradoxalmente, inviabilizou a pesquisa de campo. No início dos anos 1970 foi criada uma legislação que, para controlar a doença, determinava a erradicação de todas as plantas atingidas pelo cancro cítrico. “Só era permitido fazer pesquisa na região de Presidente Prudente. Mais tarde, o Instituto Biológico parou de trabalhar com cancro cítrico naquela região e a pesquisa acabou erradicada junto com as plantas”, diz Marcos Antonio Machado, diretor do Centro de Citricultura Sylvio Moreira, unidade de pesquisa ligada ao IAC. Do ponto de vista econômico, a decisão foi acertada. A doença foi suprimida, para ressurgir mais forte após a chegada da larva minadora dos citros em 1996 – a praga teve picos de incidência no estado de São Paulo em 1999 e no ano passado.
Após a restrição imposta pela legislação, a pesquisa sobre o cancro cítrico foi retomada no final dos anos 1990, com ênfase no aperfeiçoamento de métodos de prevenção e de erradicação da doença e principalmente no campo da genômica. No final de 2000, 11 laboratórios de sequenciamento financiados pela FAPESP, espalhados pelas universidades de São Paulo (USP), Estadual de Campinas (Unicamp), Estadual Paulista (Unesp) e institutos de pesquisa, concluíram o sequenciamento do genoma da Xanthomonas citri. Pelo prazo em que foi feito na época, apenas 14 meses, o esforço evidenciou o amadurecimento dos métodos de trabalho e da equipe – em boa parte, a mesma rede de 192 pesquisadores que havia participado, em 2000, da montagem dos genomas de outra bactéria, a Xylella fastidiosa, causadora da clorose variegada de citros (CVC), ou amarelinho, outra importante doença dos laranjais. O genoma da Xylella, o primeiro sequenciamento completo do DNA de um patógeno feito no mundo, foi registrado em reportagem de capa da revista Nature em junho de 2000 e causou um grande impacto para a visibilidade da pesquisa brasileira no mundo – em 2010, a mesma Nature dedicou um editorial lembrando os 10 anos do feito.
Rede virtual
Em 2002, os pesquisadores da rede de laboratórios apontaram caminhos para o combate à Xanthomonas citri a partir da análise de 100 de seus genes, em estudo feito em comparação com sua prima Xanthomonas campestris. Os projetos de sequenciamento das bactérias foram feitos no âmbito do Programa Genoma FAPESP.
Marcos Machado observa que um dos objetivos do Projeto Genoma, que era capacitar equipes em biologia molecular e genômica, foi cumprido. “Com a ação da FAPESP foi possível agregar grupos que nunca trabalhariam juntos”, diz. Pesquisadores de várias instituições e diferentes disciplinas, da biologia à medicina, passando pela então quase desconhecida bioinformática, atuaram em conjunto numa grande rede virtual que chegou a reunir 35 laboratórios para enfrentar um objetivo comum, no caso o sequenciamento genético de vários organismos. Mas os frutos do sequenciamento da Xylella e da Xanthomonas foram desiguais. “Infelizmente, não houve uma ampliação significativa do número de trabalhos sobre a Xanthomonas, como ocorreu com a Xylella, que, a partir das informações do genoma, se tornou a oitava bactéria mais estudada do mundo”, diz Machado. Ele destaca o avanço rápido no conhecimento da bactéria propiciado pelo programa. “Não conheço nenhum objeto de pesquisa que evoluiu tanto quanto a Xylella, em matéria de conhecimento em prazo curto. Não veio o controle da doença, mas se avançou bastante no conhecimento de sua patogenicidade. Em 20 anos, passou de ilustre desconhecida para notória bactéria. São Paulo e Califórnia reúnem os grupos mais sólidos trabalhando com a Xylella.”
Entre os frutos da pesquisa, Machado destaca o desenvolvimento de uma tecnologia que impede a bactéria de se disseminar na planta, de autoria de seu grupo. “Já solicitamos a patente no Brasil e trabalhamos agora para fazer o registro no exterior.” A escolha da Xylella para ser o primeiro patógeno com genoma sequenciado baseou-se numa série de características da bactéria: ela tem um genoma pequeno, cujo mapeamento era factível do ponto de vista técnico, além de representar um problema emergente para a citricultura paulista. “A Xylella reunia vários apelos”, afirma Machado. Victoria Rossetti, ela novamente, teve participação fundamental na determinação da causa da CVC, nome com que ela batizou a doença em 1987, ao registrá-la na região norte do estado de São Paulo. “Suspeitando inicialmente tratar-se da temível doença huanglongbing (HLB), ou greening, ela enviou materiais coletados de plantas afetadas para diagnóstico no Laboratório da Universidade de Bordeaux, na França”, diz Eduardo Feichtenberger. Foi a colaboração entre Victoria, Monique Garnier e Joseph Bové, da França, que permitiu ao grupo francês estabelecer a relação causal entre a CVC e a bactéria, batizada de fastidiosa porque tem crescimento lento. O grupo francês forneceu o isolado de Xylella ao grupo do Centro de Citricultura, que preparou DNA suficiente para sequenciar.
Queda de folhas
Pesquisas patrocinadas pela FAPESP também ajudaram a combater diversas outras doenças dos citros. Nos últimos anos houve projetos temáticos, aqueles que articulam várias equipes de pesquisa em esforços de investigação que duram até cinco anos, envolvendo várias moléstias. Entre elas, destacam-se a tristeza dos citros, doença virótica que dizimou mais de 80% dos pés de laranja no interior paulista na década de 1940; o huanglongbing (greening), que provoca enormes danos com queda de folhas e frutos e reduz drasticamente o tempo de vida econômica das plantas afetadas; a mancha preta dos citros e a podridão floral, causadas por fungos; e a leprose, uma das mais antigas dos laranjais. No final da década de 1950, pesquisas feitas com participação de Victoria Rossetti, no Instituto Biológico, confirmaram a associação entre o vírus da leprose e o ácaro Brevipalpus phoenicis. Mais tarde, em conjunto com o pesquisador Elliot Kitajima, da Esalq, e outros colaboradores, comprovou-se que a leprose é doença provocada por um vírus e que no país o ácaro B. phoenicis é o vetor da doença. “Só nos anos 1990, com o advento da biologia molecular e projetos de peso, foi possível avançar em relação à comprovação final da etiologia da doença, reconhecendo nesse patógeno um vírus completamente novo, cuja classificação como CiLV (Citrus leprosis virus) foi aceita internacionalmente”, diz Machado. No passado, a receita era pulverizar as plantações sempre que a presença do ácaro fosse registrada. Hoje, o uso de defensivos só se justifica quando há certa quantidade de ácaros e quando se prova que eles estão efetivamente contaminados pelo vírus da leprose. No início do século XX, a doença foi registrada pioneiramente e erradicada na Flórida. Anos depois, provavelmente devido a um contrabando de material, apareceu no Brasil.
Criado em 2009, um dos 44 Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia patrocinados pela FAPESP e o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) em São Paulo vem se dedicando ao melhoramento de citros por meio da genômica. Coordenado por Marcos Machado, o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Genômica para Melhoramento de Citros (INCT Citros) trabalha em três plataformas. “Uma delas é a de informação genômica, onde o foco se concentra nos estudos de genoma comparativo e funcional, permitindo a ampliação da base de informações, incluindo o genoma completo associado ao Consórcio Internacional do Genoma Citros. Uma das metas é a transformação genética para a produção de plantas geneticamente modificadas a partir de informações de genoma”, afirma Machado. A segunda plataforma baseia-se em estudos das interações entre plantas e patógenos, voltados para ampliar a base de conhecimentos potencialmente aplicáveis nas fases seguintes do programa. E a terceira é calcada em melhoramento genético, por vias tradicionais ou de manipulação genética. “Temos novas variedades, tolerantes à CVC e à leprose, entre outras”, diz Machado. Os esforços do INCT, que dá sequência ao trabalho de um Instituto do Milênio existente entre 2002 e 2005, fornecem uma amostra dos tópicos de pesquisa em citricultura que mobilizarão os pesquisadores nas próximas décadas.
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