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Medicina

Laboratório de papel

Celulose e cera compõem um novo modelo de exame clínico

eduardo cesarTeste de urina com quatro parâmetros de avaliaçãoeduardo cesar

Um pequeno quadrado de papel do tamanho de um selo postal, que funciona como um minilaboratório de análises clínicas, será usado ainda este ano em Santa Luzia do Itanhy, em Sergipe, para avaliar a condição básica da saúde das crianças e dos adolescentes do município com pouco mais de 10 mil habitantes. Chamados de dispositivos microfluídicos em papel ou µPAD (do inglês microfluidic paper-based analytical device), esses sistemas de análise foram desenvolvidos pelo grupo de pesquisa liderado pelo professor George Whitesides, da Universidade Harvard, nos Estados Unidos, com a participação do professor Emanuel Carrilho, do Instituto de Química de São Carlos da Universidade de São Paulo (USP) e membro do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Bioanalítica (INCT Bioanalítica). Os exames são feitos com um pequeno volume de líquidos, como uma gota de sangue ou de urina, que correm por microcanais gravados em um papel poroso por uma impressora comercial a jato de cera.

Depois da impressão, a folha é aquecida a 150oC durante dois minutos, permitindo que a cera derreta e forme os microcanais – as trilhas que os líquidos analisados irão percorrer. Na ponta desses caminhos impressos no papel são colocados reagentes, como enzimas e anticorpos, que mudam de cor dependendo da substância testada. A cera funciona como uma barreira hidrofóbica, ou seja, ela não deixa que os líquidos como urina e sangue se espalhem alea­toriamente pelo papel, que é impermeabilizado com um polímero. O exame é simples e extremamente prático. Basta colocar o líquido testado na entrada do dispositivo impresso no papel que imediatamente ele se espalha pelos microcanais e, em contato com o reagente, muda de cor. O resultado demora, no máximo, 30 minutos, suficiente para haver a reação química e a mudança de coloração. O tempo é bem menor do que o tradicional teste Elisa, o primeiro exame de sangue feito para verificar se o paciente está infectado pelo vírus HIV, por exemplo, que demora de duas a três horas para mostrar o resultado. “A análise feita no papel é somente visual”, diz Carrilho.

Diagnósticos múltiplos
Atualmente já estão prontos para uso os dispositivos para testar o nível de glicose, parâmetro para avaliação de diabetes, e de proteínas totais em urina, fundamental para saber como anda a função renal ou se há infecção no trato urinário. Mas o minilaboratório de papel poderá ser usado para diagnosticar malária, tuberculose, Aids e outras doenças. “Muitas das reações químicas que são realizadas em laboratório podem ser transportadas para o papel”, diz Carrilho, que durante dois anos esteve no laboratório do professor Whitesides com uma bolsa Novas Fronteiras da FAPESP, para desenvolver sistemas bioanalíticos, e também assinou quatro artigos científicos publicados entre 2008 e 2010 na revista Analytical Chemistry, periódico quinzenal da Sociedade Americana de Química, que tratam do desenvolvimento e aplicação dos dispositivos microfluídicos em papel, e um na Angewandte Chemie, um dos periódicos mais prestigiados da área de química.

Desde então houve avanços na construção dos dispositivos e o grupo liderado por Carrilho tem contribuído para isso. Atualmente eles planejam, dentre outros alvos, trabalhar com um teste para avaliar a presença do glúten em alimentos ou bebidas. A informação sobre a presença ou não do glúten no rótulo de produtos é fundamental para quem sofre de doença celíaca, que consiste em uma intolerância permanente a essa proteína presente no trigo, aveia, centeio, cevada e malte, além de outros cereais.

eduardo cesarArranjo com várias camadas permite a passagem de diferentes líquidos, sem misturaeduardo cesar

O dispositivo de papel também está sendo trabalhado para detecção de metais pesados na água, um indicativo de poluição, além de testes de qualidade de água e alimentos. Desde que voltou ao Brasil, Carrilho tem se dedicado a desenvolver novos sistemas de análise para adaptá-los à realidade brasileira, simplificando algumas etapas do processo de fabricação, o que resultou em um pedido de patente para o sistema microfluídico. Por enquanto, não foi concretizada nenhuma parceria para a transferência de tecnologia, mas já houve várias conversas com investidores e alguns trabalhos de desenvolvimento estão sendo feitos com a WAMA Diagnósticos, empresa são-carlense de testes clínicos rápidos.

O primeiro ensaio bioanalítico criado pelo grupo de Whitesides em Harvard foi a análise de urina para avaliar glicose e proteínas. A partir de um canal central, parecido com um tronco de uma árvore estilizada, saíam três ramificações, ou zonas de teste. Os ensaios foram baseados em reações químicas e enzimáticas conhecidas para análise de urina. O resultado mostrou que ensaios independentes podem ser executados simultaneamente nas diferentes zonas de teste de um mesmo sistema, sem haver contaminação cruzada de reagentes. Ou seja, várias análises clínicas podem ser feitas ao mesmo tempo com resultados parecidos aos obtidos em um laboratório tradicional, sem necessidade de grande quantidade de amostras, tubos de ensaio, geladeiras e a demora para espera do resultado de, pelo menos, um dia.

O desenho do dispositivo pode variar tanto no número de ramificações que saem do tronco central como no fechamento das pontas onde são colocados os reagentes. O grupo de Carrilho trabalha atualmente com um sistema com cinco ramificações, sendo duas para a repetição de cada teste e uma central para quantificação de creatinina, um parâmetro de normalização.

Além de ser um exame bem rápido, outra vantagem do microssistema de análises é o baixo custo dos materiais utilizados. No caso dos reagentes, que dão a cor nos testes e são caros, as quantidades utilizadas são mínimas, da ordem de 0,1 microlitro (um litro dividido por um milhão) de reagente para um exame. “Com uma única folha de papel é possível fazer 120 dispositivos, com custo de impressão de 5 centavos de dólar”, diz Carrilho. A fabricação também é bastante simples e não exige equipamentos complexos.

Atualmente o grupo do pesquisador está preparando mil dispositivos para serem utilizados nos exames que serão feitos em Santa Luzia do Itanhy. Todos os domicílios serão visitados por agentes do Programa de Saúde da Família (PSF), do governo federal. A iniciativa faz parte de um projeto piloto que está sendo implementado na cidade, por meio do Instituto de Pesquisas em Tecnologia da Inovação (IPTI) – um centro multidisciplinar de estudos, que está associado ao PSF. Em uma etapa posterior, os dispositivos serão feitos no próprio centro de pesquisas do IPTI, com a tecnologia sendo transferida para a comunidade.

Exame acessível
A ideia é levar o minilaboratório de análises a outros municípios brasileiros. No caso de dúvidas a respeito do resultado dos exames, uma simples foto tirada por um telefone celular poderá ser enviada a um especialista, que após analisar a imagem dará o seu diagnóstico. A resposta poderá chegar como mensagem de texto no celular de origem com a prescrição do tratamento adequado. “A telemedicina é uma nova maneira de tornar ainda mais barato o diagnóstico”, diz Carrilho. Com isso, será mais fácil ter acesso à tecnologia nos lugares mais distantes. Foi exatamente a ideia de levar exames para os países mais pobres, de maneira simples e com baixo custo, que resultou no desenvolvimento do primeiro dispositivo microfluídico em papel, como parte de uma linha de pesquisa do professor Whitesides chamada Soluções Simples, ou Simple Solutions. O objetivo é levar para lugares remotos da África ou de outros países em desenvolvimento, que não possuem nem médicos nem clínicas, uma ferramenta barata de diagnóstico. A pesquisa teve financiamento da Fundação Melinda e Bill Gates, que doou US$ 10 milhões por cinco anos.

As inúmeras possibilidades dessa inovadora plataforma de bionálise ainda continuam a ser testadas pelos grupos de pesquisa envolvidos nesse projeto. Entre elas estão os estudos de novos suportes de papel, métodos de fabricação dos dispositivos e desenvolvimento de novos componentes, como eletrodos, válvulas, filtros, misturadores e revestimentos, que poderão expandir o número de substâncias testadas e, consequentemente, os exames realizados. Os pesquisadores ainda se dedicam a desenvolver novos métodos para estabilização dos reagentes armazenados nos dispositivos, para que eles possam ser distribuídos sem necessidade de refrigeração.

O Projeto
Desenvolvimento de ferragens microfluídicas que permitam o desenvolvimento e fabricação de sistemas bioanalíticos para química, biologia, bioquímica e medicina (nº 2006/02007-9); Modalidade Bolsa no Exterior – Novas Fronteiras; Supervisor George Whitesides – Universidade Harvard; Bolsista Emanuel Carrilho – USP; Investimento R$ 81.929,01 (FAPESP)

Artigos científicos
CHENG, C.-M. et al. Paper-based Elisa. Angewandte Chemie International Edition. v. 49, p. 4.771-74. 2010.
MARTINEZ, A.W. et al. Diagnostics for the developing world: Microfluidic paper-based analytical devices. Analytical Chemistry. v. 82, p. 3-10. 2010.
CARRILHO, E. et al. Understanding wax printing: A simple micropatterning process for paper-based microfluidics. Analytical Chemistry. v. 81, p. 7.091-95. 2009.

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