Nos anos 1960 e 1970, o estado de São Paulo passou por uma reformulação nas políticas públicas de saúde, representada por novos modelos de gestão e produção científica, que vieram a definir o campo da saúde coletiva no Brasil e a influenciar a criação do Sistema Único de Saúde (SUS) pela Constituição de 1988. Essa é a conclusão da pesquisa, em fase de finalização, “História da saúde coletiva no estado de São Paulo: Emergência e desenvolvimento de um campo de saber e práticas”, do historiador André Mota, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP) e coordenador do Museu Histórico da instituição. Foram feitas, segundo a metodologia da história oral, dezenas de entrevistas com agentes do campo da saúde coletiva em escolas e associações médicas paulistas e formuladores de políticas públicas de várias regiões, complementadas pela leitura de documentação institucional.
“As diversas faculdades de medicina criadas no estado sob o impacto do preventivismo, entre as décadas de 1950 e 1960, criaram perspectivas para o surgimento, nos anos seguintes, de uma agenda pública que articulou relações entre medicina, saúde e sociedade”, argumenta Mota. Até o fim da década de 1950 só havia três faculdades de medicina no estado: na capital, a da USP (1913) e a Escola Paulista de Medicina (1933) – que deu origem à Universidade Federal de São Paulo, Unifesp –, e a de Ribeirão Preto, um braço da USP no interior. Nos anos seguintes foram fundadas as faculdades de medicina de Botucatu (1962, hoje incorporada à Universidade Estadual Paulista, Unesp, criada em 1976), a de Campinas (em 1963, que foi a primeira unidade da Universidade Estadual de Campinas, Unicamp, criada em 1966) e a Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de Misericórdia do Estado de São Paulo (1963), na capital.
Foi na escola de Ribeirão Preto que a medicina preventiva ganhou importância e foi institucionalizada. “A criação do programa de residência médica, em 1962, foi um marco importante para a formação de um profissional com foco nas ações preventivas de saúde”, diz o professor Carlos Henrique Assunção Paiva, coordenador do Observatório História e Saúde da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), citando um estudo do pesquisador Everardo Nunes, professor do Departamento de Medicina Preventiva e Social da Unicamp.
Em maior ou menor grau, todas as demais faculdades citadas também estruturaram seus currículos com base nas diretrizes da medicina preventiva. “Até então prevalecia a ideia de que o bom médico era um especialista em doenças que, como tal, teria o conhecimento para atuar no corpo do paciente”, conta Mota. “Depois, nos anos 1960 e 1970, passava-se a esperar dos profissionais uma intervenção social, para prevenir o surgimento de enfermidades.”
Apoio ao norte-americano
A medicina que se praticava em São Paulo desde a terceira década do século XX era fortemente marcada pelo modelo flex-neriano, referência a Abraham Flex-ner (1866-1959), educador norte-americano. Em 1908, Flexner publicou um relatório sobre os currículos de todas as 155 faculdades de medicina dos Estados Unidos e do Canadá que provocou uma reformulação do ensino médico nos dois países, marcada por padronização, treinamento prático e formação científica, com os hospitais-escola fazendo as vezes de laboratório de formação de novos médicos. Era essa a orientação da comissão da Fundação Rockefeller que veio ao Brasil em 1916 para uma avaliação do estudo da medicina no país, conjugada ao oferecimento de bolsas para brasileiros se formarem nos Estados Unidos. Em 1918, por intermédio do diretor da Faculdade de Medicina e Cirurgia de São Paulo (futura FM-USP), Arnaldo Vieira de Carvalho (1867-1920), o governo de São Paulo assinou acordos com a fundação norte-americana e recebeu um aporte do qual US$ 1 milhão foi destinado à FM-USP. No mesmo ano foi criado o Instituto de Higiene (hoje Faculdade de Saúde Pública), anexo à Faculdade de Medicina e Cirurgia.
“Até então o médico atuava no leito do paciente; com as novas concepções do âmbito da medicina, passou a ser necessário aos recém-formados o conhecimento de laboratório”, relata Mota, referindo-se à reforma Flexner. Já existia nessa época no Brasil a figura do médico sanitarista, que respondia à necessidade de uma atuação de profilaxia, entre eles Oswaldo Cruz e Vital Brazil, no Rio de Janeiro. “Surgiu um serviço sanitário nas principais capitais para fazer frente aos surtos epidemiológicos e criar um ambiente que não desestimulasse a vinda da mão de obra imigrante”, diz Tânia de Luca, professora do Departamento de História da Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de Assis, e pesquisadora da medicina paulista do início do século XX.
A cidade de São Paulo, que crescia vertiginosamente – o que aumentava o risco de doenças contagiosas –, passou a contar com o Instituto Butantan (1901) e o Instituto Pasteur (1903), e o sistema médico passou por um aparelhamento, com a criação de laboratórios e bibliotecas. A instituição de cadeiras de especialidades demorou pelo menos uma década. Na FM-USP só ocorreu nos anos 1930.
O quadro mudou depois da Segunda Guerra Mundial, quando emergiu mundialmente a ideia de estado de bem-estar social. É a fase da medicina preventiva. Os serviços de saúde começam a mapear as áreas urbanas carentes e vulneráveis e a deixar mais clara a relação entre pobreza e doença. “Embora fosse dado forte peso à prevenção, não se tratava de uma visão necessariamente democratizante”, observa Mota. “As ações públicas eram essencialmente intervencionistas, sem compartilhamento com os cidadãos. Não se reconheciam diferentes culturas e modos de vida. O saber ainda era cindido entre o normal e o patológico.”
O surgimento das várias faculdades de medicina nos anos 1960 obedeceu à demanda feita por uma nova classe média surgida de uma fase de desenvolvimento no estado – a capital paulistana transformou-se definitivamente em centro financeiro e o interior ganhou impulso com a mecanização da agricultura. André Mota destaca a atuação nesse período de Walter Leser (1909-2004), professor do Departamento de Saúde Coletiva da FM-USP e duas vezes secretário estadual da Saúde, nos governos de Roberto de Abreu Sodré (1967-1970) e Paulo Egydio Martins (1975-1979).
A chamada reforma Leser, lançada em seu primeiro mandato, instituiu centros de saúde em todo o estado como “eixo da organização sanitária” e a criação de 622 postos de médicos sanitaristas, que só viriam a ser preenchidos integralmente em seu segundo mandato. Leser também criou cursos formadores para essa função na Faculdade de Saúde Pública. Foi com esse pano de fundo que se criou, com algum atraso em relação às instituições fundadas no início dos anos 1960, um Departamento de Medicina Preventiva na FM-USP em 1969.
Segundo Mota, o ativismo político dos agentes envolvidos, de oposição ao regime militar, foi fundamental para a compreensão de uma visão de “saúde como dever do Estado”, lema incorporado à estruturação legal do SUS. Outra das “particularidades paulistas” que influiria no sistema de saúde nacional foi a descentralização do sistema. Sob a administração de Leser, alguns serviços, como pré-natal e puericultura, deixaram de ser da alçada de hospitais e foram assumidos pelos centros de saúde, aos quais coube também implementar medidas de medicina preventiva. Carlos Henrique Assunção Paiva cita ainda como avanço que viria a inspirar políticas de âmbito federal, “uma perspectiva que, ao legar profissionais como o parasitologista Samuel Pessoa, preocupado com questões sociais, colocou a ideia do saneamento rural como questão-chave a ser enfrentada”.
Lina de Faria, professora da Universidade Federal do Sul da Bahia, campus Sosígenes Costa, e doutora em Saúde Coletiva, percebe a origem da medicina preventiva no Brasil num momento anterior. Segundo ela, “aquilo que depois ficou conhecido como medicina preventiva deu passos decisivos com a criação, em 1918, do Instituto de Higiene em São Paulo”. A pesquisadora vê ainda uma continuidade entre aquele período e as leis aprovadas na década de 1980. “A universalização da saúde já era uma bandeira dos sanitaristas dos anos 1920”, afirma Lina. “O modelo de assistência básica, portanto, tem raiz profunda na história da saúde pública paulista e brasileira.”
De acordo com Mota, os anos 1970 veem os conceitos da medicina preventiva serem em parte e lentamente contestados com o surgimento do campo da saúde coletiva. “A teoria deixa de ser tão normativa e a função dos profissionais da saúde perde em parte o caráter intervencionista e normativo para ganhar a de intérpretes do social”, diz o pesquisador. Segundo ele, uma característica central da saúde coletiva é a incorporação no campo do saber médico, inclusive no corpo docente das faculdades, de profissionais de outras áreas, como psicólogos, sociólogos, enfermeiros, antropólogos e historiadores. “Ampliou-se o raio de explicação da saúde”, afirma o pesquisador.
Para Mota, trata-se de uma superação da dualidade entre as ideias de normalidade e patologia, próprias de uma perspectiva conservadora ao olhar para o paciente. Essa polarização, segundo ele, favorecia a ideia de um “corpo-máquina” voltado para a produtividade social e concepções moralistas em relação aos comportamentos “fora do padrão”. Exemplos de novidades trazidas pela saúde coletiva seriam a percepção de como os pacientes falam sobre o próprio corpo nas consultas, a compreensão da complementaridade entre o social e o corporal e o olhar para segmentos específicos da sociedade, como as mulheres negras. Um sinal representativo das mudanças de concepções ocorreu na Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp, que trocou em 2011 o nome de seu Departamento de Medicina Preventiva para Departamento de Saúde Coletiva.
O estudo é circunscrito a São Paulo, mas o pesquisador não subestima a importância de outros estados na formulação da política nacional de saúde. Para ele, a medicina paulista se destacou pela tecnologia, enquanto o Rio de Janeiro influiu nas políticas públicas, entre outros motivos por ter sido capital federal até 1960. Nesse aspecto, o Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz), criado como Instituto Soroterápico em 1900, tem protagonismo nacional. Mota ressalta a atuação, na construção do SUS, do sanitarista e parlamentar Sergio Arouca (1941-2003), que foi presidente do IOC/Fiocruz entre 1995 e 1998. “No Rio de Janeiro as iniciativas em saúde modernas foram principalmente estatais, enquanto em São Paulo a benemerência exerceu um papel mais destacado”, conclui Mota. Para Paiva, “a trajetória da saúde pública brasileira pode ser percebida como um processo cumulativo, ainda que não linear, de longa duração”. Segundo ele, “nesse aspecto uma ‘herança paulista’ ganharia um lugar mais privilegiado na linha do tempo da saúde coletiva brasileira”.
Projeto
História da saúde coletiva no estado de São Paulo: Emergência e desenvolvimento de um campo de saber e práticas (nº 2013/12137-0); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável André Mota (FM-USP); Investimento R$ 151.882,75.