Imprimir PDF Republicar

Resenha

Laboratórios de moradia

Arquiteturas políticas: Projeto, trabalho e habitação popular em São Paulo | José Henrique Bortoluci | Editora Alameda | 338 páginas | R$ 94,00

No livro Arquiteturas políticas: Projeto, trabalho e habitação popular em São Paulo, o sociólogo José Henrique Bortoluci lembra que, ao dizer que estava escrevendo uma tese sobre habitação popular, seu pai lhe pediu: “Fala para eles que os pobres merecem casas maiores”. A recordação frisa o senso crítico que aquele homem comum manifestava em um recado tão direto. Um recado “seu” – membro da classe trabalhadora para a qual se destinavam os programas habitacionais – para “eles” – políticos, arquitetos e outros profissionais responsáveis por sua formulação. O mensageiro era o próprio filho, um universitário ciente do valor ético de seu trabalho. Comprometido em erguer pontes entre esses mundos, o autor reflete sobre como o ambiente construído e a moradia de baixa renda se tornaram espaços de articulação de diferentes práticas e discursos políticos, projetuais, construtivos e habitacionais.

Sua leitura se apoia em uma nova formulação das relações entre o social e o material inspirada por autores como Pierre Bourdieu, Charles Peirce e Daniel Miller a partir da qual Bortoluci formula dois conceitos-chave de interpretação apresentados no capítulo “Entre sentido e coisas, uma teoria política do ambiente construído”: práticas semiomateriais – ações a um só tempo simbólicas e materiais que são produtor e vetor das ações humanas – e repertórios políticos. O argumento central do livro é que a análise desse ambiente deve considerar as etapas de projeto, obra e uso.

Já no capítulo “O desenho e a política: O campo da arquitetura em São Paulo (1950-1970)”, Bortoluci contribui ao mostrar como o distanciamento entre os arquitetos e aquelas pessoas para as quais imaginavam seus projetos marca a constituição da disciplina. Esse divórcio construtivo, geográfico e social é explorado no capítulo seguinte, “O brutalismo e o povo: Articulações espaciais de um repertório político de esquerda”, no qual aponta como a produção da arquitetura, em sua filiação ao projeto nacional-desenvolvimentista e seu desconhecimento das práticas, desafios e hábitos reais da crescente população periférica da cidade, adaptava a complexidade do social por meio de categorias abstratas e de uma teoria da história voltada para o futuro. Daí a metáfora recorrente dos “laboratórios” de habitação, outro achado interpretativo do autor.

O deslocamento da concepção da arquitetura como crítica e projeto de futuro defendida por figuras como Vilanova Artigas para outra, na qual a arquitetura era pensada como ação no presente com vistas à transformação nas relações de produção, tal como propunha Sérgio Ferro e a chamada Arquitetura Nova, é tema de reflexão do capítulo “Canteiro de obras, trabalho e a articulação de um novo programa (1970-1980)”. Embora tenha resultado em mudanças na prática, no ensino e na pesquisa, essa nova perspectiva não teria representado um rompimento completo com as práticas de projeto e construção das décadas de 1950 e 1960. Afinal, elas foram também laboratórios distantes do “povo”, tornando insustentável a afirmação de que há uma ligação direta entre as práticas da Arquitetura Nova e a associação entre arquitetos e os movimentos sociais, como o autor procura mostrar no último capítulo do livro, “Quando arquitetos e movimentos sociais se encontram (1980-1990)”. Nele, o autor constrói uma etnografia a partir dos conjuntos habitacionais Copromo e União da Juta, focalizando seus espaços, formas de produção, de trabalho e da materialidade, as aproximações, mas também conflitos, práticas e discursos entre a assessoria técnica Usina – Centro de Trabalhos para o Ambiente Habitado e os moradores-operários.

Nas considerações finais, ao recuperar o poema “Perguntas de um trabalhador que lê”, de Bertolt Brecht, o autor sintetiza seus argumentos, afirmando que “as narrativas hegemônicas sobre arquitetura e história urbana reduzem violentamente nossa compreensão acerca das formas de agência envolvidas na produção do ambiente construído”. É contra essa narrativa que ele se coloca, desvendando suas formas discursivas e recuperando as práticas semiomateriais e os repertórios políticos desses outros agentes. Seu lugar entre dois mundos lança novas luzes sobre a produção habitacional, construindo críticas que parecem travadas no campo da arquitetura e do urbanismo. Ao destravá-las, Bortoluci aponta caminhos inspiradores de reflexão e prática.

Joana Mello de Carvalho e Silva é professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo e de Design da Universidade de São Paulo.

Republicar