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Genética

Laços de família

Há cerca de 46 mil anos seres humanos modernos já habitavam o coração da Europa e tiveram filhos com neandertais

Diferentes ângulos de dente molar inferior de Homo sapiens com antepassado neandertal encontrado na caverna Bacho Kiro, na Bulgária

Rosen Spasov, MPI-EVA Leipzig

Uma caverna ao pé dos Bálcãs na região de Dryanovo, município de 8 mil habitantes na parte central da Bulgária, abriga um dos registros mais antigos da presença de seres humanos de feições modernas na Europa. Os quatro fragmentos de osso e o dente molar inferior escavados entre 2015 e 2018 na caverna Bacho Kiro pertencem a três Homo sapiens que viveram entre 45,9 mil e 42,5 mil anos atrás. A análise do genoma desses fósseis, realizada pelo grupo do paleogeneticista sueco Svante Pääbo, do Instituto Max Planck de Antropologia Evolutiva, em Leipzig, Alemanha, mostra que esses humanos modernos eram híbridos. Eles resultaram do cruzamento de Homo sapiens com os seus parentes evolutivamente mais próximos, hoje extintos: os neandertais (Homo neanderthalensis), seres humanos arcaicos que surgiram entre 700 mil e 500 mil anos atrás em algum lugar da Europa ou da Ásia e tinham o corpo mais atarracado, a face mais protuberante e o crânio mais baixo e alongado do que o das populações humanas atuais.

De 400 mil a 40 mil anos atrás, pequenos grupos de neandertais se distribuíram por uma região que hoje abrange a Europa, o oeste da Ásia e o Oriente Médio. Desde o sequenciamento do genoma neandertal em 2010, os dados genéticos sugerem com frequência que, em algumas das ocasiões em que se encontraram, H. sapiens e neandertais se reproduziram e deixaram descendentes férteis. Por essa razão, populações humanas atuais sem ancestralidade exclusivamente africana abrigam em seu genoma trechos de DNA neandertal – não há evidências de que neandertais tenham vivido na África. Os especialistas defendem que essa pequena contribuição tenha influenciado certas características dos seres humanos modernos. Vários estudos já associaram genes neandertais a traços mais vantajosos, como um sistema imune mais robusto, o que teria permitido ao H. sapiens sobreviver aos patógenos de novos ambientes e se espalhar pelo planeta, ou desvantajosos, como maior risco de desenvolver doenças como diabetes ou depressão.

No caso de Bacho Kiro, os três Homo sapiens mais antigos da caverna tiveram entre seus ancestrais um antepassado não muito distante – um pentavô ou hexavô – neandertal, segundo artigo publicado em 7 de abril na revista Nature pela equipe de Pääbo, autoridade mundial no estudo de DNA antigo. Como consequência, de 3,4% a 3,8% do genoma desses indivíduos era neandertal, proporção maior do que a encontrada hoje (de 1,8% a 2,6%) nos seres humanos sem ascendência africana. “Temos agora alguns dos genomas humanos mais antigos que existem”, afirmou a paleogeneticista Mateja Hajdinjak, primeira autora do trabalho e hoje pesquisadora no Instituto Francis Crick, no Reino Unido, à revista Nature.

Também em 7 de abril, outro grupo do Max Planck, coordenado pelo paleogeneticista alemão Johannes Krause, apresentou na revista Nature Ecology & Evolution um recálculo da idade de outro fóssil de H. sapiens com ascendência neandertal. É um crânio quase completo de uma mulher, conhecido como Zlatý kůň (cavalo dourado, em checo), encontrado no início dos anos 1950 em uma caverna próxima a Praga, na República Checa, a quase 1.500 quilômetros a noroeste de Bacho Kiro. Krause e seus colaboradores não conseguiram datar diretamente o crânio pelo método do carbono 14, mas extraíram DNA. A análise dos trechos de origem neandertal permitiu estimar em ao menos 45 mil anos a idade de Zlatý kůň, que teria tido um antepassado neandertal 80 gerações (quase 2 mil anos) antes.

Marek Jantacˇ Zlatý ku˚nˇ, crânio encontrado nos anos 1950 na República Checa, pertenceu a ser humano moderno do sexo feminino com ascendência neandertal. Sua idade agora foi estimada em mais de 45 mil anosMarek Jantacˇ

Fósseis tão antigos de seres humanos modernos raramente são encontrados fora da África, onde a espécie surgiu. Com a publicação desses resultados, no entanto, em um só dia saltou de dois para seis o total de fósseis de H. sapiens com mais de 40 mil anos de idade e ancestralidade neandertal. Aos de Bacho Kiro e ao crânio Zlatý kůň, somam-se outros dois: um fêmur de 45 mil anos encontrado em 2008 no vilarejo de Ust’-Ishim, na porção ocidental da Sibéria, e uma mandíbula denominada Oase 1, com 37 mil a 42 mil anos de idade, achada em 2003 em uma caverna no sudoeste da Romênia. O chamado homem de Ust’-Ishim teve um ancestral neandertal entre 8 mil e 13 mil anos antes (ou seja, entre 53 mil e 58 mil anos atrás), enquanto Oase 1, com 9% de DNA neandertal, descende de um cruzamento ocorrido havia menos de seis gerações.

“A descoberta de que os humanos modernos do Pleistoceno Superior sistematicamente apresentam evidências de ancestralidade neandertal recente sugere que esse padrão de cruzamento não era uma exceção, mas a regra”, escreveu o paleogeneticista Carles Lalueza-Fox, do Instituto de Biologia Evolutiva, em Barcelona, Espanha, em um comentário sobre os dois trabalhos, publicado na Nature Ecology & Evolution. Curiosamente, lembra o pesquisador espanhol, até o momento só foi registrado o fluxo de genes de neandertais para H. sapiens. “É possível que os humanos modernos pudessem tolerar híbridos, mas os neandertais não. Ou que indivíduos mestiços tenham sido socialmente rejeitados pelos grupos de neandertais”, supõe Lalueza-Fox.

A ideia de que H. sapiens tenham convivido com neandertais não é nova. Antes dos estudos de DNA antigo, já existiam evidências arqueológicas dessa coexistência no Oriente Médio e na Europa. Cavernas em Israel e na Jordânia guardam resquícios de ocupação em sequência das duas espécies. Além disso, alguns fósseis, como o de uma criança encontrado no Abrigo de Lagar Velho, em Portugal, apresentavam traços mistos de H. sapiens e neandertal. “Os dados genéticos atuais permitem vislumbrar um cenário complexo de migrações de H. sapiens para a Europa, aonde chegaram por volta de 45 mil anos atrás”, conta a bioantropóloga Mercedes Okumura, coordenadora do Laboratório de Estudos Evolutivos Humanos da Universidade de São Paulo (USP).

Traçar a árvore genealógica dos hominídeos e conhecer como cada espécie se relacionou com as outras do mesmo gênero não é tarefa simples. Os fósseis antigos são escassos e, quando achados, é difícil extrair material genético deles. As descobertas dos últimos anos sugerem que o H. sapiens surgiu no norte da África cerca de 300 mil anos atrás, mas só mais tarde se aventurou por outros continentes. Os fósseis indicam ao menos três principais saídas desse continente: a primeira há pouco mais de 100 mil anos para o Oriente Médio (onde teriam encontrado neandertais), a segunda entre 70 mil e 50 mil anos atrás para o sul da Ásia e a terceira, há uns 60 mil anos, para o centro-norte da Ásia e a Europa, onde novamente se depararam com grupos de H. neanderthalensis. “É possível que nessas migrações algumas das populações humanas tenham tido mais contato com neandertais, enquanto outras não os tenham encontrado. Isso justificaria por que só alguns esqueletos apresentam evidência de cruzamento”, explica Okumura.

Tsenka Tsanova, MPI-EVA Leipzig Na caverna Bacho Kiro, na Bulgária, arqueólogos escavam camada em que foram encontrados quatro ossos fossilizados de Homo sapiens com idade entre 45,9 mil e 42,5 mil anosTsenka Tsanova, MPI-EVA Leipzig

A existência de várias ondas migratórias também ajuda a entender por que apenas alguns dos H. sapiens mais antigos que viveram fora da África guardam certo parentesco com os seres humanos atuais. Os dados indicam que os indivíduos de Bacho Kiro, assim como o homem de Ust’-Ishim e Oase 1, têm semelhanças genéticas com populações do leste asiático e das Américas, mas não com as da Europa. Isso sugere que eles seriam representantes de uma população que inicialmente se espalhou pelo continente europeu e asiático e depois desapareceu da Europa. Já o fóssil Zlatý kůň não compartilha características genéticas com populações atuais. Pertenceria a um grupo de H. sapiens que interagiu com neandertais e foi extinto.

Estudos arqueológicos e genéticos dos últimos anos têm contribuído para desfazer a ideia, por muito tempo prevalente, de que os neandertais teriam sido mais primitivos e menos habilidosos do que os H. sapiens. Ligeiramente mais altos, fortes e com cérebro um pouco maior, eles caçavam animais de grande porte, produziam ferramentas sofisticadas (lanças, machados, lâminas, anzóis) e trançavam cordões a partir de fibras vegetais (possivelmente faziam roupas). Vestígios achados em cavernas indicam que saberiam usar plantas medicinais, produziam representação simbólica (pinturas em paredes e estruturas usando estalagmites) e sepultavam os mortos. Tudo antes de os humanos modernos deixarem a África.

Embora a maior parte do conhecimento sobre os neandertais seja produzida por estrangeiros, pesquisadores brasileiros também contribuíram para conhecer como teriam sido esses parentes próximos. Assim que saiu o genoma neandertal, em 2010, o grupo coordenado pelos geneticistas Francisco Salzano (1928-2018) e Maria Cátira Bortolini na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) realizou trabalhos sugerindo que, do ponto de vista genético, neandertais não seriam tão diferentes de H. sapiens.

A geneticista Tábita Hünemeier, então aluna de doutorado na UFRGS e hoje pesquisadora da USP, comparou as características em humanos modernos e neandertais da região gênica HACNS1, associada à capacidade de andar em duas pernas e à destreza manual. Atribui-se a esse trecho do genoma, mais expresso nos pés e nas mãos, a habilidade dos H. sapiens de realizar o movimento de pinça com os dedos polegar e indicador, fundamental para movimentos de precisão. Segundo os resultados publicados em 2010 no American Journal of Physical Anthropology, essa região é idêntica tanto em seres humanos modernos como arcaicos, sinal de que teriam potencial de alcançar nível semelhante de destreza. “A versão presente nesses dois grupos deve ter sido selecionada antes do surgimento dos representantes do gênero Homo”, conta Hünemeier.

Pacal Goetgheluck / Science Photo Libraray / Fotoarena O crânio de H. neanderthalensis (à esq.) é maior e mais alongado do que o de H. sapiens (à dir.)Pacal Goetgheluck / Science Photo Libraray / Fotoarena

Hoje pesquisadora na Universidade Federal da Bahia (UFBA), Vanessa Paixão-Cortes, à época também aluna de doutorado no grupo da UFRGS, decidiu testar a hipótese, comum no meio científico, de que os neandertais seriam menos inteligentes do que H. sapiens. Ela analisou 162 genes que, nos primatas, estão associados à formação do cérebro – e, de certo modo, à inteligência. Cinquenta e um genes eram exclusivos do gênero Homo e apresentavam 93 mutações. Nos neandertais, não havia dados disponíveis para apenas 25 dessas mutações. As demais eram idênticas à dos humanos modernos, segundo o resultado publicado em 2013 no American Journal of Human Biology. “Levando em conta o background genético, não encontramos diferença que permitisse dizer que uma das espécies poderia ser mais inteligente”, afirma Paixão-Cortes.

Em um estudo publicado em fevereiro deste ano na Science, o neurocientista brasileiro Alysson Muotri e sua equipe na Universidade da Califórnia em San Diego, Estados Unidos, chegaram a um resultado diferente. Eles usaram uma técnica de edição gênica para criar minicérebros (órgãos em miniatura que simulam o cérebro) contendo um gene neandertal no lugar de seu equivalente humano. Os minicérebros com o gene arcaico se desenvolveram mais rapidamente do que os com o gene dos seres humanos modernos, mas ficaram menores, possivelmente porque apresentavam uma proliferação mais lenta dos neurônios e taxa maior de morte celular. Também tinham menos proteínas associadas às conexões (sinapses) entre neurônios, indicando uma rede mais simplificada e menos eficaz de transmissão de informações. “Nossa hipótese é de que as redes neurais do cérebro humano se tornaram muito mais complexas ao longo da evolução”, explicou Muotri na reportagem “Cérebro neandertal em laboratório”, publicada no site de Pesquisa FAPESP.

Outro trabalho do grupo do Rio Grande do Sul contribuiu para desfazer a ideia de que os neandertais fossem sempre ruivos e de olhos claros. Três mulheres neandertais cujos fósseis foram encontrados na Croácia integravam a amostra do estudo, que analisou em seres humanos modernos e arcaicos variações de 67 genes ligados à pigmentação de pele, olhos e cabelos. Segundo o resultado, publicado em 2012 no American Journal of Human Biology, uma das neandertais era ruiva com pele clara e as outras eram morenas, com pele e cabelos mais escuros. Todas tinham olhos castanhos (ver Pesquisa FAPESP nº 193).

À parte questões sobre semelhanças e inteligência, é cada vez mais evidente que a pequena contribuição neandertal – em média, 2% – para o genoma dos H. sapiens influenciou algumas características dos seres humanos modernos. Em 2017, o grupo coordenado pelo geneticista Joshua Akey, à época na Universidade de Washington, em Seattle, Estados Unidos, constatou que essa herança neandertal não é silenciosa. De acordo com o trabalho, publicado na revista Cell, ao menos 25% dos genes neandertais introduzidos no genoma humano estão ativos em diferentes graus nos diversos tecidos do corpo.

Nos últimos anos, dezenas de estudos já associaram genes neandertais à manifestação de traços mais vantajosos ou a maior risco de desenvolver doenças. Genes neandertais já foram ligados à capacidade de os seres humanos atuais viverem em grandes altitudes, à maior fertilidade e ao menor risco de sangramento em mulheres. Mas também à maior probabilidade de desenvolver diabetes, esquizofrenia, depressão e lúpus ou mesmo à de sentir mais dor. Recentemente, Pääbo e Hugo Zeberg, um colaborador do Instituto Karolinska, na Suécia, apresentaram resultados mostrando que pessoas com uma região do cromossomo 3 herdada dos neandertais correm maior risco de morrer de Covid-19, enquanto as que têm um trecho de origem neandertal no cromossomo 12 estariam um pouco mais protegidas de adoecer se forem infectadas pelo vírus.

A maior contribuição, no entanto, parece ter sido para a robustez do sistema imune. Em 2018, também na Cell, os biólogos David Enard, da Universidade do Arizona, e Dmitri Petrov, da Universidade Stanford, ambas nos Estados Unidos, mostraram que diversos genes herdados dos neandertais conferem proteção contra vírus, o que pode ter sido fundamental para a sobrevivência dos seres humanos modernos, após a saída da África. Como lembraram Akey e seus colaboradores em 2017, os neandertais foram extintos há cerca de 40 mil anos, mas muito do seu DNA continua vivo nos seres humanos modernos, moldando a biologia humana.

Artigos científicos
HAJDINJAK, M. et al. Initial Upper Palaeolithic humans in Europe had recent Neanderthal ancestry. Nature. 7 abr. 2021.
PRÜFER, K. et al. A genome sequence from a modern human skull over 45,000 years old from Zlatý kůň in Czechia. Nature Ecology & Evolution. 7 abr. 2021.
Hünemeier, T. et al. Brief communication: Population data support the adaptive nature of HACNS1 sapiens/neandertal-chimpanzee differences in a limb expression domain. American Journal of Physical Anthropology. v. 143, n. 3, p. 478-81. Nov. 2010.
PAIXÃO-CORTES, V. et al. The cognitive ability of extinct hominins: bringing down the hierarchy using genomic evidences. American Journal of Human Biology. v. 25, n. 5, p. 702-5. 2013.
TRUJILLO, C. A. et al. Reintroduction of the archaic variant of NOVA1 in cortical organoids alters neurodevelopment. Science. 12 fev. 2021.
CERQUEIRA, C. C. S. et al. Predicting Homo pigmentation phenotype through genomic data: from Neanderthal to James Watson. American Journal of Human Biology. v. 24, n. 5, p. 705-9. Set-Out. 2012.
MCCOY, R. C. et al. Impacts of Neanderthal-introgressed sequences on the landscape of human gene expression. Cell. v. 168, n. 5, p. 916-27. 27 fev. 2017.
ENARD, D. e PETROV, D. A. Evidence that RNA Viruses Drove Adaptive Introgression between Neanderthals and Modern Humans. Cell. v. 175, n. 2, p. 360-71. 4 out. 2018.

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