Uma etapa importante de um projeto prioritário do programa espacial brasileiro, a construção de um foguete capaz de lançar satélites na órbita terrestre, foi concluída em outubro. Em uma unidade do Instituto de Aeronáutica e Espaço (IAE), em São José dos Campos (SP), foi realizado o primeiro teste em solo do S50, o maior motor para foguetes já desenvolvido no país. Com 6,2 metros (m) de comprimento, 1,5 m de diâmetro e projetado para queimar 12 toneladas (t) de combustível (um propelente sólido formado pela combinação de diversos compostos químicos), o motor é também o primeiro desse porte a ter o seu envelope – o invólucro cilíndrico – fabricado em fibra de carbono, material mais leve do que o aço, usado nos artefatos anteriores.
O procedimento, denominado de ensaio de tiro em banco, consistiu em acionar o motor, preso a um bloco sísmico, de concreto, enquanto sensores coletaram dados sobre seu comportamento. A temperatura dentro da estrutura ultrapassou os 2.700 graus Celsius (oC) e a pressão interna superou 70 vezes a pressão atmosférica normal (70 atm). O motor será o principal elemento propulsor do Veículo Lançador de Microssatélites (VLM-1), o acalentado projeto do programa espacial do país.
“Utilizamos mais de 200 sensores, que forneceram dados importantes sobre a curva de empuxo [a força de impulsão], temperatura e pressão do motor, bem como informações sobre níveis de vibração e deslocamentos que o artefato sofreu quando pressurizado”, relata o major engenheiro Rodrigo César Rocha Lacerda, gerente do Projeto VLM-1 no IAE. Segundo o órgão, pertencente ao Comando da Aeronáutica, o S50 passou no teste, permitindo o prosseguimento do projeto.
O motor foi projetado e desenvolvido pelo IAE com financiamento da Agência Espacial Brasileira (AEB). A fabricação ficou sob responsabilidade da empresa privada Avibras Indústria Aeroespacial, também de São José dos Campos. “O S50 é o principal sistema do VLM-1”, destaca Lacerda. O projeto do veículo lançador teve início em 2014 e é resultado de uma parceria entre a AEB e a agência espacial alemã, Deutsches Zentrum für Luft- und Raumfahrt (DLR).
O investimento brasileiro previsto é de aproximadamente R$ 170 milhões, dos quais já foram despendidos R$ 110 milhões, segundo o engenheiro eletricista Paulo Roberto Braga Barros, diretor de gestão de portfólio da AEB. A maior parte dos recursos gastos até o momento está relacionada com a contratação da Avibras para produção de seis motores S50 destinados aos testes em solo e também para equipar o foguete de sondagem VS-50, veículo suborbital que será construído antes do VLM-1 e faz parte da campanha de desenvolvimento deste. Os motores do VLM-1 ainda não foram contratados – os recursos para essa finalidade dependem do governo federal.
Com o VLM-1, as agências espaciais do Brasil e da Alemanha pretendem entrar no mercado de lançamentos de nano e microssatélites – artefatos com até 10 quilos (kg) e entre 10 e 100 kg, respectivamente. Com capacidade para captar e transmitir imagens quase em tempo real, esses aparelhos são utilizados para observação e acompanhamento de atividades terrestres, com aplicação em áreas como monitoramento climático e ambiental, logística, segurança e espionagem. Também são empregados na conexão machine-to-machine usada em sistemas de internet das coisas (IoT).
É um segmento estratégico que, segundo especialistas, vale a pena ser disputado. O relatório Mercado global de nanossatélites e microssatélites: Análise e previsão, 2020-2026, publicado pela consultoria norte-americana ADS Reports, informa que o mercado mundial desses aparelhos espaciais gerou receitas de US$ 283,1 milhões em 2019 e estima uma taxa de crescimento anual de 25% até 2026.
Para a AEB, o VLM-1 tem também o papel de inserir o Brasil no restrito grupo de nações com autonomia no desenvolvimento e no lançamento de satélites. “Seremos o 13º país capaz de colocar satélites em órbita a partir de seu território e com seu próprio veículo lançador”, argumenta Barros. “Esse projeto nos permitirá lançar nossos micro e nanossatélites nas órbitas em que precisamos e no momento adequado”, complementa Barros. “O Brasil terá outro status nas discussões sobre o uso do espaço exterior.”
Voo inaugural
O primeiro voo do VLM-1 está planejado para 2025. Ele está sendo projetado para colocar até 30 kg de carga útil em órbitas baixas, a 300 quilômetros (km) de altitude. Para que isso ocorra, uma série de etapas terá que ser cumprida. O motor S50, por exemplo, deverá passar por outro ensaio de tiro em banco, programado para o segundo semestre de 2022. Sendo novamente aprovado, estará pronto para equipar o foguete VS-50, previsto para ser lançado em agosto de 2023.
Com 12 m de altura, o VS-50 fará um voo suborbital, ou seja, alcançará uma altitude de 100 km acima do nível do mar, mas não inserirá carga útil em órbita da Terra. Um segundo voo do VS-50 está planejado para 2024. Os dois voos do foguete de sondagem são importantes para o processo de qualificação de sistemas que farão parte do VLM-1.
O VS-50, de acordo com Lacerda, terá a incumbência de ensaiar em condições de voo diversas estruturas do VLM-1, como as interfaces de separação de estágios, os sistemas de controle de navegação, a telemetria de voo, as redes elétricas e os itens pirotécnicos (para ignição do motor). Na linguagem espacial, estágios são os vários segmentos que compõem um foguete. Cada um deles tem um sistema propulsivo, responsável pelo aumento de velocidade do veículo, que vai sendo descartado no transcorrer do voo. A ideia é que os voos do VS-50 colaborem para a redução de riscos do primeiro lançamento do VLM-1.
O lançamento do foguete suborbital também permitirá testar a infraestrutura de lançamentos a partir da Torre Móvel de Integração (TMI) do Centro Espacial de Alcântara (CEA) no Maranhão. Além de integrar uma etapa do desenvolvimento do VLM-1, o VS-50 é um novo produto do IAE que será oferecido para o mercado internacional. “Ele tem grande potencial como plataforma de testes para aceleradores hipersônicos”, exemplifica Lacerda. O VS-50 está cotado para ser utilizado como plataforma para o lançamento de um veículo experimental hipersônico em desenvolvimento pela Agência Espacial Europeia, o Hexafly-INT.
O VLM-1 contará com três sistemas propulsivos, sendo dois motores-foguete S50 e um motor-foguete S44, bem menor, com 800 kg de propelente sólido. O S44 foi testado em 2012 no foguete de sondagem VS-40. O motor está sendo remodelado pela empresa Cenic Engenharia, de São José dos Campos, e terá seu ensaio de tiro em banco neste ano ou 2023.
A alemã DLR será responsável pelos demais sistemas do VS-50 e do VLM-1, como o módulo de serviços eletrônicos embarcados, os sistemas de controle e navegação, os adaptadores interestágios, o sistema de atuação de tubeira móvel TVA, que permite o direcionamento do jato do motor para execução do controle de atitude do foguete, e a coifa, onde viajam os satélites que serão lançados. A maioria desses componentes alemães para o VS-50 já foi produzida e alguns se encontram no Brasil para os ensaios de integração com os motores, informa Lacerda.
A baixa disponibilidade de recursos financeiros, técnicos e humanos levanta dúvidas entre especialistas que já passaram pela AEB e pelo IAE da real capacidade brasileira em cumprir com sua parte no projeto do VLM-1. Nem todos, porém, sentem-se à vontade para expor suas opiniões em público.
Ariovaldo Félix Palmerio, doutor em engenharia mecânica e funcionário entre 1975 e 2011 do IAE, onde foi responsável pela área de engenharia de sistemas, é um entusiasta do projeto, mas faz ressalvas sobre a capacidade brasileira de execução. “O IAE sofreu grande perda de profissionais qualificados em algumas especialidades e poderá ter dificuldades para conduzir seus projetos”, avalia. Nas últimas décadas, sustenta, o programa espacial sofreu com a não reposição de profissionais que se aposentaram ou passaram para a iniciativa privada.
Petrônio Noronha de Souza, tecnologista do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e diretor de política espacial da AEB entre 2012 e 2018, diz que a falta de continuidade na liderança dos projetos aeroespaciais na Aeronáutica também atrapalha. “A carreira militar prevê uma realocação periódica dos oficiais. Quando uma chefia militar está amadurecida para liderar os projetos aeroespaciais é substituída por outra não necessariamente com o mesmo nível de preparo. Esse processo gera ineficiência e impacta os projetos em curso, que são sempre de longo prazo”, observa.
Outro problema apontado por Souza é a ausência de regularidade de recursos e de projetos capazes de manter em atividade contínua a indústria aeroespacial brasileira. Como essas condições não existiram nas últimas décadas, houve um desmantelamento da capacidade produtiva e perda de know-how, o que obriga cada novo projeto a começar praticamente do zero, afirma.
A falta de recursos humanos, financeiros, técnicos e administrativos está, segundo Palmerio, na origem das falhas que envolveram o Veículo Lançador de Satélites (VLS-1), projeto de um foguete brasileiro iniciado em 1985. A última dessas falhas ocorreu quando o terceiro protótipo do foguete teve a ignição inesperada de um de seus motores em solo três dias antes de seu lançamento em Alcântara. O acidente, em agosto de 2003, vitimou de forma fatal 21 técnicos e engenheiros e danificou as estruturas da TMI, que só foi reconstituída nove anos depois. A construção do VLS-1 integrava um dos objetivos da Missão Espacial Completa Brasileira (MECB), o primeiro programa espacial de grande porte do país estabelecido pelo governo federal no fim dos anos 1970.
No livro Introdução à tecnologia de foguetes (SindCT, 2017), Palmerio faz a seguinte observação sobre o acidente: “Um projeto de foguetes bem conduzido já é uma fonte de perigo. Sem os devidos amparos, os fatores que desencadeiam falhas se avultam”. Para ele, o programa espacial brasileiro só deve ter continuidade se houver condições adequadas para a execução de seus projetos.
O programa do VLS teve duas tentativas anteriores de lançamento, que também falharam. Oficialmente o projeto foi encerrado em 2016, sem obter sucesso em seu intento de lançar um satélite. Na ocasião, o acordo entre as agências espaciais brasileira e alemã para a construção do VLM-1 já estava estabelecido. Segundo Souza, estava claro para a AEB que não havia gente capacitada e recursos financeiros suficientes para levar adiante os dois projetos. Optou-se por priorizar o VLM-1 e executá-lo na medida do possível.
Para alguns especialistas, a opção pelo VLM-1 talvez não tenha sido a mais promissora. “É um projeto de concepção antiquada quando comparado às tendências recentes”, avalia Souza. Hoje, empresas privadas, como as norte-americanas Space X e Virgin Orbit e a francesa Arianespace, estão ocupando o espaço das agências governamentais na colocação de nano e microssatélites em órbita. Uma estratégia comercial dessas empresas é o lançamento conjunto de dezenas desses artefatos, reduzindo o custo operacional.
Além disso, muitas vezes nano e microssatélites vão ao espaço de carona em foguetes maiores, pagando taxas reduzidas ou mesmo gratuitamente, quando a finalidade é a pesquisa acadêmica. Para Palmerio, a AEB também poderia ofertar o lançamento de dezenas de nanossatélites e obter seu espaço em um mercado em franca expansão, mas antes é preciso conquistar a confiança dos potenciais consumidores, com um bem-sucedido voo de seu veículo lançador.
Em teoria, a construção do VLM-1, com 30 kg de carga útil, é menos complexa que a de seu antecessor, que estava programado para 200 kg de carga útil. O VLS-1 contava com quatro sistemas propulsores, um a mais que o VLM-1. Ambos os foguetes têm altura na casa de 20 metros, mas o VLS-1 tinha 50 t de massa na decolagem, enquanto o VLM-1 pesa pouco mais da metade, 28 t. O VLS-1 também buscava alcançar órbitas mais altas, na casa de 750 km da Terra, mais do que o dobro da meta do VLM-1 (ver tabela acima).
Independentemente do porte, a construção de um lançador de satélites é um projeto complexo e caro. Como define Lacerda, do IAE, um veículo desses voa em condições extremas de velocidade, pressão, vibração e temperatura, fazendo com que seus sistemas tenham de ser fabricados atendendo requisitos muito específicos de massa, resistência estrutural, condições ambientais e desempenho operacional que não são demandados por outros sistemas aeronáuticos. “São poucos os países capazes de desenvolver um veículo lançador”, afirma o militar. “É um objetivo desafiador que estamos perseguindo com determinação.”
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