Os anos de chumbo foram também marcados por muito concreto armado e debates acirrados. Rodrigo Lefèvre (1938-1984) lutou contra o golpe de 1964, foi atuante nas instituições de classe durante a redemocratização e produziu uma arquitetura de protesto que aliou seu conhecimento do sistema técnico à tradição construtiva popular. Desde o final da década de 1990 sua obra tem despertado o interesse de pesquisadores e gerado reflexão sobre o papel do arquiteto e o lugar da arquitetura na contemporaneidade.
O livro de Miguel Buzzar é uma grande contribuição ao estudo da obra de Lefèvre. Uma belíssima publicação das Edições Sesc, fartamente documentada, resultado da tese de doutorado do autor defendida na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP) em 2002. Aborda aspectos pouco explorados em trabalhos anteriores e é pioneiro nos estudos dedicados exclusivamente ao arquiteto.
Buzzar situa Lefèvre em relação às vanguardas arquitetônicas europeias da segunda metade do século XX e reivindica seu lugar e de seus companheiros de profissão, Sérgio Ferro e Flávio Império (1935-1985), na revisão historiográfica do movimento moderno no Brasil. Outra contribuição muito importante dessa pesquisa foi a incursão aos arquivos da empresa de consultoria Hidroservice, na qual Lefèvre trabalhou a partir de 1972. Buzzar não apenas teve acesso aos arquivos, como entrevistou seu diretor, visitou as obras e colheu depoimentos de técnicos e encarregados da execução e manutenção dos edifícios nos quais Lefèvre atuou diretamente. Fez uma análise inédita dos projetos dessa sua fase, o que leva a uma reflexão importante sobre a atuação dos arquitetos nas empresas de consultoria.
Dividido em sete capítulos, o texto conta com uma introdução e uma pergunta que a obra de Buzzar pretende responder: qual foi a catedral de Rodrigo Lefèvre? A catedral é um cânone da arquitetura, símbolo da monumentalidade. Na tradição patrimonial brasileira, a catedral é a casa. Assim, Buzzar concentra grande parte de sua narrativa no programa doméstico. O primeiro capítulo do livro é uma introdução à casa brasileira, baseada na interpretação de textos de Lucio Costa (1902-1998) e Vilanova Artigas (1915-1985). O segundo capítulo trata das obras do Grupo Arquitetura Nova durante a década de 1960, principalmente casas e algumas escolas. Um tema bastante explorado pela literatura anterior na qual o autor se baseia.
No terceiro capítulo, o autor situa o debate historiográfico tão caro à sua geração. Questiona a hegemonia do movimento moderno, atuando criticamente para que a revisão historiográfica da arquitetura acompanhe as transformações em curso com a reconstrução da democracia no país. Não sem razão, o tema do lugar da arquitetura no desenvolvimento nacional será bastante explorado ao longo desse capítulo e é o principal do seguinte.
Os capítulos 5 e 6 abordam a atuação de Lefèvre na década de 1970, quando ele deixa o presídio Tiradentes onde ficou encarcerado durante um ano com o também arquiteto Sérgio Ferro. Buzzar analisa as casas em abóbadas da década de 1970, quando o arquiteto dá uma contribuição original à execução desse tipo de cobertura. Em seguida apresenta os projetos realizados durante o período em que Lefèvre atuou na Hidroservice, concluindo que sua abordagem do programa doméstico, por meio de rigoroso controle dimensional e organizativo e também de genuína preocupação com todos os envolvidos na obra, levou-o a obter sucesso nos projetos complexos que coordenou na empresa. Assim, Buzzar explica como em 1973 Lefèvre assumiu o cargo de chefia do Departamento de Arquitetura da empresa de consultoria.
O capítulo 7 trata da contribuição para uma arquitetura popular, autogerida, registrada em sua dissertação de mestrado, intitulada “Projeto de um acampamento de obra: Uma utopia”, defendida na FAU-USP, em 1981. Esse foi um dos trabalhos mais inspiradores para uma geração de arquitetos seguidores de Lefèvre que acreditaram em uma revolução democrática popular no Brasil. A utopia e os impasses presentes na trajetória do arquiteto que o livro de Buzzar ilumina podem ser pistas para a revisão ainda não realizada da crise da arquitetura diante do impasse da democracia brasileira.
Ana Paula Koury é professora do Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade São Judas Tadeu.
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