O projeto de Lei de Biossegurança nº 2.401, de 2003, que deveria substituir a legislação atual e definir regras claras para a pesquisa e comercialização de organismos geneticamente modificados (OGMs), incendiou o debate sobre transgênicos no país. O texto aprovado na Câmara dos Deputados, no dia 5 de fevereiro, que agora tramita no Senado Federal, cria o Sistema de Informação de Biossegurança para a gestão das atividades que envolvam transgênicos e o Fundo de Incentivo ao Desenvolvimento da Biotecnologia para Agricultores Familiares, destinado a financiar projetos na área de biotecnologia e engenharia genética implementados por instituições públicas, que aprimoram a legislação atual. Mas é polêmico em pelo menos dois aspectos: atribui a um conselho de ministros a palavra final sobre a comercialização de organismos geneticamente modificados e proíbe as pesquisas com células-tronco para fins terapêuticos.
Em relação ao primeiro aspecto controverso, os cientistas querem que a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) seja a única e definitiva instância para avaliar tanto as atividades de pesquisa como a comercialização dos transgênicos. “É fundamental para o desenvolvimento nacional que as pesquisas oriundas das instituições públicas possam ser rapidamente incorporadas ao nosso setor produtivo, sob pena de a sociedade brasileira não poder usufruir dos investimentos em ciência e tecnologia no Brasil”, dizem os representantes de 13 entidades científicas, entre elas a Academia Brasileira de Ciências, em carta encaminhada aos senadores no dia 18 de fevereiro.
O Conselho Superior da FAPESP também se manifestou. Em documento entregue ao presidente do Senado, José Sarney, pelo diretor-científico, José Fernando Perez, a Fundação “apela aos parlamentares para que ouçam os representantes acreditados da comunidade científica no sentido de transformar o texto da lei em instrumento de progresso e independência tecnológica, evitando assim danos irreparáveis aos mecanismos de geração de conhecimento e de riqueza” (veja abaixo o documento na íntegra). A comunidade científica reagiu também negativamente à proibição das pesquisas com células-tronco para fins terapêuticos. “Os textos do projeto de lei que tratam da pesquisa com células-tronco embrionárias são particularmente alarmantes quanto aos efeitos na saúde pública”, afirma o documento elaborado pelas 13 entidades. “A terapia celular com células-tronco embrionárias pode representar a esperança no tratamento de mais de 5 milhões de pessoas, a maioria crianças e jovens. Não se trata de produzir embriões para esta finalidade, mas de utilizar aqueles que são descartados em clínicas de fertilização”. As entidades pedem que a CTNBio também deva ter legimidade para decidir em última instância sobre esta matéria.
Embate legal
O Brasil conta com uma Lei de Biossegurança (nº 8.974), desde 1996, que atribui competência à CTNBio – criada por medida provisória, em agosto de 2001, e vinculada ao Ministério da Ciência e Tecnologia -, para estabelecer normas técnicas e emitir pareceres conclusivos em relação à biossegurança. A competência da CTNBio para emitir pareceres sobre segurança ambiental, no entanto, tem sido contestada por meio de ações civis públicas com base na Lei Ambiental que, conforme se argumenta, confere esta autoridade ao Ministério do Meio Ambiente. Por conta deste embate legal, foi suspenso o parecer da CTNBio, de 1998, que dispensava a soja geneticamente modificada, da Monsanto, do Estudo de Impacto Ambiental, antes da liberação do plantio.
Essa batalha, ainda inconclusa, criou um hiato jurídico que imobilizou as atividades de pesquisa e obrigou a edição de três medidas provisórias para autorizar a colheita da safra da soja da Monsanto, no Rio Grande do Sul. O governo então decidiu constituir uma comissão formada por nove ministérios e capitaneada pela Casa Civil para analisar a questão da biossegurança e formular uma nova lei que pusesse fim à polêmica sobre transgênicos. O projeto de lei do Executivo foi enviado à Câmara dos Deputados em outubro do ano passado. Ao longo de três meses, uma comissão especial – que teve como relator o deputado Aldo Rebelo (PCdoB – SP) -, acompanhada de perto por pesquisadores e representantes de associações científicas, modificou o texto original. Às vésperas da votação, Rebelo assumiu o Ministério da Coordenação Política e Assuntos Institucionais e foi substituído na relatoria pelo deputado Renildo Calheiros (PCdoB – PE), que, sob pressão de ambientalistas e da bancada evangélica, modificou o projeto. “O resultado foi um Frankenstein jurídico”, avalia Carlos Vogt, presidente da FAPESP.
O relatório de Rebelo colocava a pesquisa sob a tutela da CTNBio e atribuía a um Conselho Nacional de Biossegurança – formada por 15 ministros – a palavra final sobre a oportunidade econômica da comercialização dos transgênicos. Tanto no caso da pesquisa como na comercialização, caberia à CTNBio a avaliação de riscos e a identificação das atividades potencialmente danosas ao meio ambiente e que poderiam causar riscos à saúde humana. Calheiros modificou o texto para “valorizar o papel técnico” da comissão, como ele justifica em seu relatório. No projeto aprovado, fica claro que a CTNBio mantém autonomia para decidir sobre os projetos de pesquisa, cabendo ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Renováveis (Ibama) licenciar as atividades poluidoras identificadas pela comissão. No artigo 11, no inciso XXIII, o projeto afirma que, “em caso de parecer técnico prévio conclusivo favorável sobre a biossegurança no âmbito da atividade de pesquisa, a CTNBio remeterá o processo respectivo aos órgãos e entidades referidos no artigo 13, para o exercício de suas atribuições”. O artigo 13 define as funções e atribuições dos órgãos e entidades de registro e fiscalização vinculados ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento; Ministério da Saúde; Ministério do Meio Ambiente; Secretaria Especial de Aquicultura e Pesca.
Mas, no que se refere à comercialização, o texto não é tão esclarecedor. No mesmo artigo, no inciso XXIII, parágrafo 4, o projeto prevê que “em caso de parecer técnico conclusivo favorável sobre a biossegurança no âmbito da atividade de uso comercial, a CTNBio remeterá cópia do parecer ao Conselho Nacional de Biossegurança, para o exercício de suas atribuições”. E, no artigo 13, parágrafo 1, o projeto diz que, “após manifestação favorável do Conselho Nacional de Biossegurança”, caberá em decorrência de análise específica e decisão pertinente, ao órgão competente do Ministério do Meio Ambiente, no caso o Ibama, licenciar e emitir autorização e registros, fiscalizar e monitorar produtos e atividades que envolvam OGMs e seus derivados a serem liberados no ecossistema” no prazo máximo de 120 dias. Este período, no entanto, será suspenso “durante a elaboração dos estudos ou preparação de esclarecimentos pelo empreendedor”.
Esta falta de clareza em relação à competência da CNTBio, na visão de cientistas, faz supor que o parecer da comissão será definitivo apenas quando for contrário à liberação dos OGMs. Se favorável, o parecer terá que ser submetido ao conselho ministerial, para ratificação ou não. O texto também “permite interpretar” que a avaliação do risco ambiental e para a saúde realizada pela Comissão Técnica poderá não ser acolhida pelo Ibama ou pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), de acordo com Reginaldo Minaré, advogado especialista em biotecnologia. “O Ibama ou a Anvisa poderão, cada um no seu campo de atuação, exigir mais estudos sobre a biossegurança da atividade ou produto oriundo da engenharia genética, pois, de acordo com o texto, essas exigências serão feitas após a manifestação favorável do conselho ministerial”, ele prevê.
Para o Ministério do Meio Ambiente (MMA), não há nenhuma dúvida em relação ao projeto. “O texto aprovado dá ao Ibama poderes para questionar no Conselho Nacional de Biossegurança pareceres da CTNBio para a comercialização dos transgênicos. O instituto poderá pedir Estudos de Impacto Ambiental quando considerar que o plantio para a comercialização possa trazer prejuízos ao meio ambiente”, informa a assessoria do MMA no site www.mma.gov.br. No mesmo site, a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, comemorou os resultados. “Esse não foi um trabalho exclusivo do Ministério do Meio Ambiente. Tudo foi coordenado pela Casa Civil, de forma que foi possível chegar a um projeto de lei adequado, conforme entendimento do governo, da maioria dos parlamentares e de boa parte da sociedade civil e da comunidade científica.” A julgar pela reação da comunidade científica, a “maioria” não inclui boa parte dos pesquisadores.
“Esse resultado foi uma surpresa”, diz Aluízio Borem, da Academia Brasileira de Ciência e que também integra a Sociedade Brasileira de Genética e a Sociedade Brasileira de Biotecnologia. Desde 1998, os pesquisadores aguardam o final do confronto entre o Ministério do Meio Ambiente e a CTNBio, para dar continuidade a projetos estratégicos como, por exemplo, o do feijão resistente a vírus desenvolvido pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), que beneficiaria, principalmente, os pequenos produtores. “O atraso foi irreparável”, lamenta Elíbio Rech, pesquisador da Embrapa.
A expectativa em relação a uma nova lei era grande. Mas, apesar de o texto dar tratamento diferenciado à pesquisa científica – um antigo pleito dos pesquisadores -, transfere os obstáculos legais para a comercialização, neutralizando eventuais avanços obtidos com a pesquisa, já que impedirá a transferência de tecnologia para o agronegócio. “O Ibama não tem competência para essa análise. Eles são ecólogos e não biólogos moleculares. Prova disso é que o instituto pediu um levantamento socioeconômico da população estabelecida num raio de 3 quilômetros para que a Embrapa pudesse testar o plantio do feijão numa área de 10 metros quadrados”, afirma Borem. “Estamos diante de um retrocesso com graves consequências para o agronegócios. Se a pesquisa genética não puder ser transferida ao setor produtivo, o país não vai avançar”, acrescenta Marcelo Menossi, do Instituto de Biologia da Universidade Estadual de Campinas.
Competência estratégica
“O Brasil adquiriu competência nessa área estratégica de pesquisa que tem grande potencial para gerar oportunidades socioeconômicas. O governo precisa de uma legislação não inibidora deste projeto, que é fundamental para o desenvolvimento de novas empresas”, comenta Perez, da FAPESP.A perspectiva de enfrentar novos obstáculos para o licenciamento comercial de produtos preocupa também as empresas. A Cooperativa dos Produtores de Cana, Açúcar e Álcool de São Paulo (Coopersucar), por exemplo, já testou em campo, com o aval da CTNBio, cana-de-açúcar resistente aos herbicidas glifosato, em parceria com a Monsanto, e ao Bt, junto com a Syngenta. “Temos produtos que poderiam ser comercializados, mas estamos aguardando uma definição legal até hoje”, diz Eugênio Cérsar Ulian, gestor de biotecnologia da Coopersucar. Diante da nova lei, a empresa poderá interromper estudo com um gene da cana identificado como responsável pelo seu florescimento, implementado em parceria com a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (USP), em Ribeirão Preto,com o objetivo de aumentar a produtividade das lavouras. “Nenhuma empresa pesquisa por pesquisar”, justifica Ulian.
Os representantes da comunidade científica propõem ao Senado que alterem o texto, credenciando a CTNBio como a “única e definitiva instância” para julgar a natureza científica da matéria e que seus pareceres pautem não apenas as atividades de pesquisa, mas também a comercialização. O Ministério do Meio Ambiente, eles argumentam, poderá se manifestar sobre o assunto, no âmbito da própria comissão que será formada por 27 doutores, 12 dos quais “especialistas de notório saber científico e técnico” e 15 representantes dos ministérios e entidades civis. Na avaliação de Esper Cavalheiro, que presidiu o Conselho Nacional de Pesquisa e Desenvolvimento Tecnológico (CNPq) e CTNBio, a comissão “sempre teve condições” de avaliar se uma determinada manipulação pode causar danos à saúde ou ao meio ambiente. “Quando afirmam que os estudos de impacto ambiental não podem ser julgados por cientistas eu indago: Então eles devem ser julgados por quem? Por que os cientistas deveriam submeter seu parecer a outros cientistas que não estão na comissão?”, ele diz.
Outro ponto polêmico do projeto diz respeito à proibição das pesquisas com células-tronco embrionárias. A bancada evangélica na Câmara, formada por 55 deputados, chegou a ameaçar votar contra o projeto caso não fosse vetada a manipulação de embriões humanos para fim de clonagem terapêutica, prevista no relatório de Rebelo. Ganharam apoio de parlamentares católicos, ampliando o quórum para 120 deputados e até da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), que enviou representantes ao Congresso. O resultado está no artigo 5º do projeto: “É vedado: qualquer procedimento de engenharia genética em organismos vivos ou o manejo in vitro de ADN/ARN natural ou recombinante, realizado em desacordo com as normas previstas nesta lei; a manipulação genética em células germinais humanas e embriões humanos; clonagem humana para fins reprodutivos; produção de embriões humanos destinados a servir como material biológico disponível; intervenção em material genético humano in vivo, exceto, se aprovado pelos órgãos competentes, para fins de: realização de procedimento com finalidade de diagnóstico, prevenção e tratamento de doenças e agravos, e clonagem terapêutica com células pluripotentes.”
“A existência como ser humano começa com a fusão do óvulo com o espermatozoide. O embrião já é uma vida. Trata-se de um princípio religioso”, justifica o deputado Henrique Afonso, da Frente Parlamentar Evangélica. Para Marco Antonio Zago, da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, da USP, e coordenador do Centro de Terapia Celular, um dos dez Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepids) mantidos pela FAPESP, a preocupação da Câmara está equivocada. “O debate deveria ser o que se faz com embriões humanos congelados em clínicas”, sugere. Na avaliação de Mayana Zatz, coordenadora do Centro de Estudos do Genoma Humano – outro Cepid – houve uma confusão entre os conceitos de clonagem reprodutiva, clonagem terapêutica e terapia celular com células-tronco. “A clonagem reprodutiva que seria a tentativa de produzir uma cópia de um indivíduo deve mesmo ser condenada e proibida”, ela ressalva.
Mas a clonagem terapêutica, uma técnica de transferência de núcleo celular, é apenas um dos métodos para se obter células-tronco para terapia celular ou medicina regenerativa. O resultado desta “confusão” poderá trazer sérios prejuízos para a pesquisa e colocar o Brasil na dependência de importar tecnologia de países que autorizam essa investigação. “Teremos que comprar essa célula lá fora e perder a chance de treinar pessoas que pudessem desenvolver essas linhagens. É um marco de limitação do progresso da ciência no país”, prevê Lygia da Veiga Pereira, do Centro de Estudos do Genoma Humano da USP.
Células progenitoras
As células-tronco são células progenitoras que mantêm a capacidade de diferenciar os inúmeros tecidos do corpo humano, explica Mayana Zatz. Podem ser obtidas pela técnica de transferência de núcleo ou clonagem terapêutica – como acaba de ser anunciado pelo grupo de cientistas coreanos (ver página 22) – de cordão umbilical ou de embriões.
Por meio da clonagem terapêutica ou transferência de núcleo, detalha Mayana, é possível transferir o núcleo de uma célula de uma pessoa – da pele, por exemplo – para um óvulo sem núcleo, esse novo óvulo, em tese, se tornaria capaz de produzir qualquer tecido daquela pessoa em laboratório, sem risco de rejeição. A clonagem terapêutica permitiria, por exemplo, reconstituir a medula de um paraplégico ou substituir o tecido cardíaco de quem sofreu um infarto.
Essa técnica, no entanto, não poderia ser utilizada em portadores de doenças genéticas, já que todas as células teriam o mesmo defeito. Daí a importância das pesquisas com células-tronco.
Existem células-tronco em vários tecidos de crianças e adultos, mas em pequena quantidade. “Não sabemos ainda em que tecidos elas são capazes de se diferenciar”, observa Mayana. O sangue do cordão umbilical também é rico em células-tronco, mas os cientistas tampouco sabem qual o potencial de diferenciação destas células em distintos tecidos. “Se as pesquisas mostrarem que células-tronco de cordão umbilical serão capazes de regenerar tecidos ou órgãos, esta será, sem dúvida, a mais importante fonte para a sua obtenção”, diz Mayana. Neste caso, seria necessário observar a compatibilidade entre doador e receptor e criar um banco público de cordão umbilical. Se estas pesquisas não derem o resultado esperado, a alternativa será o uso de células-tronco embrionárias que, de acordo com Mayana, são certamente pluripotentes, ou seja, têm capacidade de diferenciar-se em qualquer um dos tecidos humanos. Podem ser obtidas por meio de transferência de núcleo – como demonstraram os coreanos – ou a partir de embriões de má qualidade, que não teriam potencial para gerar um vida. “É fundamental que a nossa legislação aprove esse tipo de pesquisa porque elas poderão, no futuro, salvar inúmeras vidas.”
Carta da FAPESP aos senadores
Lei de Biossegurança
Obstáculos à pesquisa científica e tecnológica
O Conselho Superior da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), reunido em 11/02/04, manifesta grande preocupação com os termos da Lei de Biossegurança recentemente aprovada pela Câmara dos Deputados e presentemente em discussão no Senado da República.
A lei, nos termos que foi aprovada, criará sérios obstáculos à pesquisa científica e ao desenvolvimento tecnológico em um setor no qual a transferência de tecnologia, da descoberta à sua aplicação, é extremamente rápida.
Nessa área, de importância estratégica para o desenvolvimento econômico e social, bem como para a soberania nacional, o Brasil conquistou competência equivalente à dos países mais adiantados, competência que pode ser revertida em grande benefício para a população nas áreas de alimentos, agropecuária e saúde.
O Conselho Superior da FAPESP apela aos senhores parlamentares para que ouçam os representantes acreditados da comunidade científica no sentido de transformar o texto da lei em instrumento de progresso e independência tecnológica, evitando assim danos irreparáveis aos mecanismos de geração de conhecimento e de riqueza.
São Paulo, 11 de fevereiro de 2004
Carlos Vogt – Presidente