andré pessoaFilha de pai francês e mãe brasileira, Niède Guidon graduou-se em história natural na Universidade de São Paulo (USP) em 1959. Naquela época, o curso abarcava dois ramos do conhecimento, a biologia e a geologia, que acabariam ganhando vida própria na academia com o passar do tempo. Formada, passou um rápido período como professora da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo e ingressou em seguida no Museu Paulista, que em 1963 seria incorporado à USP. Não havia no Brasil formação específica em arqueologia, área que a então jovem paulista de Jaú queria seguir. “O Paulo Duarte, do Museu Paulista, me incentivou a estudar arqueologia na França”, lembra Niède, hoje com 81 anos. Ela procurou a embaixada da França e pediu uma bolsa de estudos para se aprofundar na disciplina em Paris. Conseguiu e fez um curso de especialização em arqueologia pré-histórica na Sorbonne entre 1961 e 1962.
De volta ao país, começou a trabalhar no museu. A ideia era fazer pesquisa por aqui. Mas houve o golpe militar em 1964 e Niède teve que, às pressas, retirar o passaporte da gaveta. Não que ela tivesse de fato alguma atuação política em partidos de esquerda. Mas uma tia ficou sabendo por um amigo militar que alguém do trabalho a denunciara por atividades supostamente subversivas. “Tive de sair rapidamente do país”, relembra a arqueóloga. “Deixei até um apartamento montado em São Paulo.” A alternativa foi fazer carreira na França, sua segunda pátria, onde obteve o doutorado e o pós-doutorado, também na Sorbonne, e teve a chance de se aperfeiçoar com pesquisadores renomados, como o arqueólogo e etnólogo André Leroi-Gourhan, criador em 1962 da cadeira de pré-história no Museu do Homem, em Paris.
Anos mais tarde, o Brasil iria entrar definitivamente como cenário de seus trabalhos de campo. Pesquisadora do Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS) em Paris, Niède era assistente da arqueóloga francesa Annette Laming-Emperaire durante a primeira missão franco-brasileira que, em 1973, procurava vestígios do homem mais antigo das Américas. Os interesses científicos de Annette se centravam na Patagônia e, em solo brasileiro, na região de Lagoa Santa, nos arredores de Belo Horizonte, onde poderia haver vestígios de uma remota ocupação humana no continente. Niède não gostava muito desse tipo de pesquisa, que buscava descobrir o homem mais antigo das Américas. Fez então um trato com a francesa. Prepararia toda a expedição à localidade mineira desde que ela a deixasse ir ao Piauí para ver as belas pinturas rupestres preservadas no semiárido nordestino.
Dessa visita à região de São Raimundo Nonato, no sudeste do Piauí, há mais de quatro décadas, nasceria um trabalho que, unindo preservação e pesquisa da pré-história no Brasil e conservação e estudos ambientais, levaria à criação do Parque Nacional Serra da Capivara em 1979. Considerado patrimônio cultural da humanidade pela Unesco, o parque abriga o maior número de sítios pré-históricos conhecidos das Américas, mais de 1.400, dos quais 900 ornamentados com pinturas rupestres feitas há milhares de anos, talvez dezenas de milhares de anos. “Apenas na minha primeira visita, em 1973, encontramos 55 sítios com pinturas rupestres”, conta Niède. “Isso nos animou a trabalhar na região.” Até 1993, Niède passava temporadas no Piauí enquanto vivia na França. A partir daquele ano, passou a residir em São Raimundo Nonato. “O governo brasileiro pediu à França que me emprestasse para fazer um projeto visando à proteção e conservação da serra da Capivara”, afirma a arqueóloga, que, em 1999, se aposentou na França, mas continua em plena atividade até hoje.
O parque no semiárido do Piauí é enorme. Abrange 129 mil hectares em meio à vegetação de caatinga. Em 1986, Niède criou (e até hoje a preside) a Fundação Museu do Homem Americano (Fumdham), ao lado de pesquisadores brasileiros e franceses. Desde 1994, a Fumdham, que coordena as pesquisas e cuida do acervo natural da unidade de conservação, coadministra o parque ao lado do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), autarquia vinculada ao Ministério do Meio Ambiente. A unidade de conservação – que mantém mais de uma centena de sítios pré-históricos abertos para visitação pública – vive uma situação crônica de falta de verbas e pessoal, ameaças de desmatamento de suas áreas verdes e caça de seus animais e assentamentos ilegais no seu entorno. “Há anos prometem inaugurar o aeroporto de São Raimundo Nonato para facilitar a visitação ao parque, mas a obra nunca fica pronta”, reclama Niède. A última previsão é de que o aeroporto seja aberto para voos comerciais ainda neste semestre. Essas dificuldades, no entanto, nunca a afastaram de seu importante trabalho de preservação e pesquisa nessa região de beleza e importância única no país.
Por uma dessas ironias da vida, as pesquisas feitas em São Raimundo Nonato acabaram levando a carreira da arqueóloga brasileira justamente para a questão que, inicialmente, queria evitar: a cronologia a respeito da chegada do homem às Américas. Trinta anos atrás, ninguém acreditava que a presença do Homo sapiens no Nordeste, região seca e teoricamente desfavorável à ocupação humana, pudesse ser muito antiga. Niède tomou um susto quando recebeu os dados das primeiras datações, feitas na França, de uma amostra de carvão obtida no sítio pré-histórico chamado Pedra Furada, conhecido desde os anos 1960 e uma espécie de cartão-postal do lugar. O carvão provinha de uma fogueira, possivelmente feita por seres humanos no interior desse abrigo sob rochas, e sua idade fornecida pelo método do carbono 14 bateu na casa dos 32 mil anos. Segundo esses exames, as fogueiras eram bem mais antigas do que a idade normalmente associada à entrada das primeiras levas de Homo sapiens nas Américas, por volta de 13 mil anos de idade.
Destinados a causar polêmica, os resultados de Pedra Furada foram publicados em um artigo que ganhou em 1986 as páginas da prestigiada revista científica Nature. Grande parte da comunidade científica, em especial arqueólogos americanos, jamais endossou a afirmação de que a fogueira teria sido feita por humanos. Para esses críticos, os carvões foram produzidos de forma natural, por incêndios espontâneos, e a ocupação humana no Piauí é, como sempre se acreditou, muito mais recente. “Os europeus nunca questionaram os nossos dados”, afirma Niède, que manteve sua posição e seguiu com as pesquisas.
Infelizmente, os sítios arqueológicos da serra da Capivara nunca forneceram ossadas humanas que pudessem ser datadas de forma direta, um tipo de dado científico mais difícil de ser alvo de reprovações. A saída foi continuar apostando em evidências indiretas para tentar determinar quando o homem fincou pé na região. Datações posteriores de artefatos de pedra lascada encontrados em vários sítios arqueológicos do parque, que teriam sido feitos por humanos, e de pinturas rupestres empurraram para ainda mais longe a presença humana no Nordeste, algo entre 50 mil e 100 mil anos atrás. “Nossa pintura rupestre é contemporânea à encontrada nas cavernas da Europa”, afirma Niède. Claro que essas novas idades, ainda mais recuadas no tempo, jogaram mais lenha na fogueira da polêmica.
As informações coletadas em décadas de pesquisa na serra da Capivara levaram Niède e os pesquisadores da Fumdham a formular uma teoria alternativa sobre a entrada do homem em nosso continente. Para a arqueóloga brasileira, as levas iniciais de H. sapiens não chegaram às Américas via estreito de Bering, na divisa do Alasca com a Sibéria, há cerca de 13 mil anos, como sustenta a visão mais clássica sobre esse processo. Niède defende a ideia de que o homem moderno saiu da África e aqui desembarcou por via oceânica, depois de ter cruzado o Atlântico, pulando de ilha em ilha, cerca de 100 mil anos atrás. Ele teria aproveitado uma janela de oportunidade histórica para fazer a migração: havia então uma grande seca na África, que o empurrava a procurar comida no mar, e o nível do Atlântico estava 140 metros abaixo do atual, fazendo surgir mais ilhas e encurtando a distância entre os dois continentes.
Por esse cenário, os primeiros desbravadores das Américas aportaram no Caribe e na costa norte do Brasil, provavelmente na região do atual rio Parnaíba, na divisa do Maranhão com o Piauí. Desse ponto, eles teriam se espalhado, ao longo dos anos, pelo interior do continente e outros pontos da costa. “Se há pesquisas mostrando que macacos fizeram essa travessia de ilha em ilha da África para as Américas há alguns milhões de anos, por que os homens também não podem ter feito essa migração?”, indaga a arqueóloga.
Durante muito tempo, as teses de Niède foram vistas com reticência em boa parte do meio científico, embora a excelência do trabalho da Fumdham em prol da conservação do patrimônio pré-histórico do Piauí seja uma unanimidade. Nos últimos anos, aos poucos e sem muito alarde, alguns pesquisadores mudaram sua visão sobre as pesquisas feitas na serra da Capivara a respeito da presença do homem moderno nas Américas. “O trabalho social e de preservação do patrimônio feito pela Niède Guidon na serra da Capivara é único no país e raramente encontrado em outras partes do mundo”, afirma o arqueólogo e antropólogo Walter Neves, coordenador do Laboratório de Estudos Evolutivos Humanos do Instituto de Biociências da USP. “Já sua sugestão de que o homem chegou às Américas entre 30 mil e 100 mil anos atrás é bastante polêmica. Ela ainda não encontra aceitação entre seus pares.”
Segundo Neves, que também é um grande crítico da visão clássica sobre a entrada do homem em nosso continente, não há dúvidas com relação às idades fornecidas pelas datações efetuadas em material coletado em São Raimundo Nonato. O que se questiona é se os instrumentos líticos encontrados em Pedra Furada foram realmente feitos por mãos humanas. “Minha impressão sobre o assunto mudou muito nos últimos anos. A convite da própria Niède, tive a oportunidade de analisar os instrumentos líticos desse sítio polêmico há alguns anos. Hoje estou 99% convencido de que se trata de fato de artefatos produzidos pelo homem. O Prêmio Conrado Wessel para o trabalho da Niède é mais do que merecido”, afirma o pesquisador da USP.
A arqueóloga francesa Anne Marie-Pessis, atualmente professora da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e pesquisadora da Fumdham, trabalha com Niède nas terras do semiário do Piauí desde 1982. Seu depoimento ajuda a dimensionar a importância da atuação de Niède numa área remota do país. “Desde o início das pesquisas numa região então desconhecida, que hoje é o Parque Nacional Serra da Capivara, a Niède adotou uma abordagem pluridisciplinar nas pesquisas científicas e integrou cientistas de diversas áreas do conhecimento”, diz Anne Marie, que publicou dois livros sobre o parque, um referente às pinturas rupestres e outro sobre o bioma e as sociedades humanas da região. “Essa interação continuada entre especialistas das ciências naturais, do ambiente e das ciências humanas estruturada em torno do fenômeno arqueológico resultou na construção da atual pesquisa interdisciplinar. Para os estudantes e jovens cientistas que participaram de seus trabalhos foi muito enriquecedor transcender os limites de uma única disciplina fragmentada e se aprofundar em temas, métodos e técnicas que desafiavam as tentações interpretativas generalizantes da arqueologia e da antropologia.”
Republicar