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Limite considerado como consumo moderado de álcool cai no mundo

Aumento de casos de câncer e de outras doenças associadas a poucas doses de bebida desafia a noção de beber com parcimônia

Aline van Langendonck

Beba com moderação. A frase que embala as propagandas de bebidas alcoólicas recorre ao bom senso das pessoas, mas deixa em aberto um ponto central: com quantos copos de cerveja, taças de vinho ou doses de destilado se faz um consumidor regrado? É razoável argumentar que não há um número mágico universal, que se adéque a todos os públicos. Esse limite dependeria de uma série de fatores, como idade, sexo, constituição física, características genéticas, estilo de vida e estado geral de saúde do indivíduo, além do teor alcoólico do líquido ingerido.

A maioria das cervejas tem cerca de 5% de álcool, aproximadamente dois quintos do teor de etanol predominante em vinhos e espumantes. A cachaça, o uísque, a vodca, o gim – enfim, os destilados – têm por volta de oito vezes mais álcool do que a cerveja. Então, além da quantidade, o tipo de bebida consumida também entra na equação da moderação. Isso sem falar que, não raro, a ocasião às vezes induz o bebedor ao copo. Quem recusa um chopinho numa mesa de bar com os amigos ou um brinde numa festa de casamento ou aniversário?

Não há consenso na literatura científica sobre quanto seria beber com parcimônia, algo como um padrão de consumo sem repercussões negativas ou com impactos quase desprezíveis na saúde física e mental. Nas últimas décadas, alguns estudos sugeriam que o consumo de pequenas doses de álcool, geralmente vinho tinto, poderia ser benéfico ao coração, mas o tema permanece polêmico e hoje é contestado por muitos trabalhos. O pouco que se ganharia em termos de proteção cardiovascular seria anulado pelo aumento da probabilidade do surgimento de outras doenças (ver quadro).

A conclusão dominante de um conjunto de estudos e recomendações mais recentes é a de que não há dose, por pequena que seja, com risco zero à saúde. Quanto menor for a ingestão de álcool, menor o risco de desenvolver doenças relacionadas a esse hábito, como problemas no coração, alguns tipos de câncer, cirrose hepática, distúrbios mentais e alcoolismo, sofrer ou provocar acidentes e se envolver em violência física. Essa é a mensagem central da Organização Mundial da Saúde (OMS) e de boa parte dos trabalhos científicos atuais.

“Álcool é uma substância psicoativa, não é remédio”, diz o psiquiatra Arthur Guerra Andrade, supervisor chefe do Grupo Interdisciplinar de Estudos de Álcool e Drogas (Grea) do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (HC-USP). “Pessoas bebem há milhares de anos e esse hábito provavelmente não vai desaparecer das sociedades humanas no futuro. Mas não se sabe com que frequência e em que medida seria seguro ingerir álcool.”

Segundo a OMS, os efeitos negativos do consumo de álcool estão associados à ocorrência de mais de 200 tipos de doenças e acidentes danosos à saúde. No mundo, cerca de 3 milhões de mortes por ano, 5,3% de todos os óbitos, decorrem dos efeitos do álcool. As vítimas fatais entre os homens, os maiores consumidores de bebidas alcoólicas, representam 7,7% do total de mortes masculinas. Nas mulheres, são 2,6%. O impacto negativo da bebida entre jovens adultos é ainda maior: 13,5% das mortes de indivíduos na faixa dos 20 aos 39 anos são atribuídas a problemas causados pelo álcool.

Dados globais, divulgados por um relatório de 2018 da OMS, indicavam que quase 29% das mortes associadas ao álcool eram causadas por acidentes (de carro, quedas, violência interpessoal), 21% por doenças digestivas, 19% por problemas cardiovasculares, 13% por doenças infecciosas, 12% por cânceres e o restante devido a outras enfermidades. No Brasil, a porcentagem de mortes atribuída ao álcool também gira em torno de 5%, com destaque aos óbitos relacionados a acidentes de trânsito e cirrose hepática. Aqui quase 70% das mortes de homens por cirrose estão associadas ao consumo de álcool. Na Arábia Saudita, que proíbe a venda desse tipo de bebida, essa fração é de 4%.

Aline van Langendonck

Em razão de avanços no conhecimento científico, as autoridades de saúde de alguns países revisam periodicamente as recomendações referentes à ingestão moderada de bebidas alcoólicas. No início deste ano, o governo do Canadá fez esse movimento e suas novas orientações são muito restritivas. Elas preconizam o consumo de até duas doses de álcool por semana para manter em níveis baixos a probabilidade de desenvolver a longo prazo doenças relacionadas a esse hábito. A ingestão de três a seis doses por semana, nunca mais do que duas por dia, eleva de forma moderada os riscos. Do sétimo drinque em diante, o risco de vir a sofrer consequências na saúde é alto e aumenta a cada dose extra. A diretriz é a mesma para homens e mulheres e vale para qualquer tipo de bebida.

“Nos últimos 10 anos houve realmente um avanço significativo no nosso entendimento da associação entre mortalidade e morbidade e uso de álcool. Temos uma compreensão muito melhor da ligação entre álcool e câncer”, disse, em comunicado de imprensa, Catherine Paradis, diretora associada de pesquisa do Canadian Centre on Substance Use and Addiction (CCSA), uma das coordenadoras de um painel de especialistas que revisaram as orientações. Desde o início da década passada, o álcool é classificado como uma substância carcinogênica, com papel conhecido no surgimento de pelo menos sete tipos de câncer: cavidade oral, faringe, laringe, esôfago, fígado, mama e colorretal (ver quadro).

“No caso do tabaco, que também é carcinogênico, sabemos que o tempo de adoção do hábito de fumar tem grande peso no aparecimento de câncer. Quem fuma há mais tempo, tem um risco maior”, diz o médico sanitarista Victor Wünsch Filho, da Faculdade de Saúde Pública da USP e diretor-presidente da Fundação Oncocentro de São Paulo (Fosp). “Com o álcool, parece que o tempo de uso da substância tem um peso menor do que o tamanho da dose ingerida no surgimento de cânceres.” Essa seria uma das explicações para as mulheres, que metabolizam mais lentamente o álcool, terem um risco maior de desenvolver câncer de mama devido ao consumo regular da bebida.

Entrevista: Victor Wünsch Filho
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Wünsch participou de um grande trabalho realizado pelo projeto International Head and Neck Cancer Epidemiology que analisou a correlação estatística entre a incidência de câncer na cavidade oral, laringe e orofaringe (a parte da garganta logo atrás da boca) e hipofaringe (pouco antes do esôfago), a dose de álcool consumida e há quanto tempo os pacientes bebiam. O estudo, que se baseou em resultados de 26 trabalhos anteriores, analisou dados de mais de 62 mil pessoas, das quais cerca de 40% tinham recebido um diagnóstico de câncer e 60% faziam parte de um grupo de controle. “O risco de câncer aumentou em todos os sítios da cabeça e pescoço em função do número de doses tomadas por dia, mas não em razão do tempo que o indivíduo bebia”, conta o médico sanitarista, que desenvolve pesquisas que tiveram apoio da FAPESP. A única exceção ocorreu para o câncer de hipofaringe, cuja probabilidade de ocorrência se elevou em função da dose e do tempo que a pessoa consumia bebidas alcoólicas. O estudo foi publicado no British Journal of Cancer em outubro de 2020.

Os novos limites recomendados no Canadá são bem mais severos do que os preconizados na revisão anterior, de 2011, que aconselhava até 15 doses semanais para homens e 10 para mulheres. Também difere bastante das recomendações difundidas pelos serviços de saúde de outros países para consumo moderado de bebidas alcoólicas entre adultos saudáveis. Nos Estados Unidos, o limite indicado é de até duas doses diárias para homens e uma para mulheres. No Reino Unido, é de 14 doses semanais para ambos os sexos. Na Austrália, que atualizou suas diretrizes no fim de 2020, as recomendações estipulam até 10 drinques por semana, nunca mais de quatro doses em uma única ocasião. Na França, a quantidade de drinques considerada de baixo ou moderado risco é a mesma da Austrália, mas ainda é aconselhado não ultrapassar duas doses em uma jornada e ficar ao menos um dia por semana sem beber.

É preciso tomar cuidado ao comparar as quantidades de doses de bebida alcoólica de diferentes países. Não há um padrão universalmente adotado para estabelecer o que é uma dose de álcool, um drinque. Para a OMS, uma dose padrão contém 10 gramas (g) – ou 12,7 mililitros (mL) – de etanol puro. Ela equivale a 285 mL de uma cerveja comum, 100 mL de vinho ou 30 mL de destilados. Mas a dose no Canadá é definida como tendo 13,45 g de álcool. No Reino Unido, 8 g; nos Estados Unidos, 14 g (ver quadro). “No Brasil costumamos adotar a definição de dose recomendada pela OMS”, comenta a psicóloga Clarice Madruga, da Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas da Universidade Federal de São Paulo (Uniad-Unifesp). “Hoje sabemos que não há dose segura para consumo de álcool. Em pesquisa é muito comum usarmos o indicador que chamamos de binge drinking, caracterizado pela ingestão, em uma única ocasião, de quatro ou mais doses de bebida para mulheres e cinco ou mais para homens.” Além de levar a eventuais danos de longo prazo à saúde, esse nível do consumo de álcool causa embriaguez e aumenta o risco imediato de acidentes e de violência interpessoal.

Alexandre Affonso / Revista Pesquisa FAPESP

Para formular diretrizes sobre o que seria um consumo baixo ou moderado de álcool é preciso ter em mãos estudos epidemiológicos de amplo alcance, que levem em conta os mais variados tipos de impacto, de curto e de longo prazo, sobre a saúde das pessoas. O Canadá, por exemplo, constituiu um painel com 23 especialistas que procuram por estudos sobre álcool e saúde disponíveis em 10 bases de dados científicos. Foram considerados trabalhos de revisão e meta-análises publicados entre 6 de janeiro de 2017 e 17 de fevereiro de 2021 que abordassem uma questão central: riscos e benefícios do álcool à saúde de curto e longo prazo e durante a gestação e o desenvolvimento infantil.

As meta-análises são um tipo de estudo epidemiológico que usa técnicas estatísticas para sintetizar ou reunir dados de trabalhos independentes e produzir uma avaliação mais ampla sobre um tema. No final do levantamento, o painel encontrou 16 estudos que passaram pelo crivo dos especialistas. Os dados desses trabalhos foram usados em uma modelagem matemática que levou em conta dados de incidência de doenças e longevidade da população canadense.

“Atualmente, os painéis de especialistas estudam as ligações que existem entre o nível de consumo de álcool e as probabilidades de morte por causas [doenças] sabidamente relacionadas ao uso dessa substância, como cirrose, câncer de mama, derrames e problemas de coração”, explica, em entrevista por e-mail a Pesquisa FAPESP, o psicólogo Tim Stockwell, da Universidade de Vitória, um dos participantes do painel canadense. “Foi assim que nosso painel estimou recentemente que apenas seis drinques por semana aumentava o risco de morte por doenças em 1%.”

O número pode parecer pequeno, mas a discussão se dá em níveis de consumo de álcool que são socialmente toleráveis e percebidos por muitas pessoas como plenamente aceitáveis. Então estavam errados os estudos que apontavam que um consumo modesto de álcool, geralmente de vinho tinto, poderia fazer bem ao coração? “A ideia de que o vinho está associado a benefícios para a saúde provavelmente se deve a uma falsa associação. As pessoas que o consomem são mais ricas e têm hábitos mais saudáveis do que outros bebedores”, pondera Stockwell. “Os polifenóis podem fazer bem, mas o etanol na bebida não faz. É melhor comer uva todo dia.” Os polifenóis são substâncias presentes na casca de uvas tintas e em outras frutas e alimentos. A despeito das críticas, as pesquisas sobre possíveis benefícios da ingestão moderada de vinho tinto permanecem ativas em vários lugares do mundo (ver quadro).

Artigo de pesquisadores da Universidade de Brasília (UnB) publicado em outubro de 2022 na revista científica PLOS ONE calculou que os custos diretos e indiretos (faltas ao trabalho) com problemas de saúde relacionados ao consumo de álcool no Brasil entre 2010 e 2018 foram de cerca de US$ 1,5 bilhão (aproximadamente R$ 7,5 bilhões). Foram gastos US$ 740 milhões com hospitalização, US$ 420 milhões em cuidados com pacientes que não foram internados e US$ 330 milhões devido ao absenteísmo laboral. Em 2018, por exemplo, os custos diretos referentes ao consumo de álcool representaram 0,56% dos US$ 22,8 bilhões gastos naquele ano pelo Sistema Único de Saúde (SUS) com internações e despesas com paciente. Os valores se baseiam em dados do SUS e do sistema nacional de seguridade. No trabalho, foram considerados 21 tipos de complicações de saúde e acidentes que podem ter relação com o consumo de álcool, de acordo com o padrão adotado no estudo internacional The global burden of disease (O peso global das doenças, em tradução livre).

Alcoolismo, acidentes não intencionais e batidas no trânsito foram, nessa ordem, os problemas que mais geraram gastos de hospitalização. Só o tratamento do câncer de mama, um dos sete tipos de tumor cujo aparecimento pode ser causado pela ingestão de álcool, respondeu por mais de 45% das despesas com doenças associadas a esse hábito que não requereram internações. O estudo levou em conta dados de consumo de álcool no Brasil coletados em 2019 na população adulta, com 18 anos ou mais, pela Pesquisa Nacional de Saúde (PNS), uma iniciativa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em parceria com o Ministério da Saúde.

Aline van Langendonck

Segundo essa PNS, 73,4% da população brasileira declarou que não consome semanalmente álcool (62,9% entre os homens e 83,0% entre as mulheres). Mais de 60% dos que bebiam regularmente disseram ingerir menos de 12 gramas de etanol por dia, o índice mais baixo entre os que não se declararam abstêmios. Mesmo assim, por representar a maior faixa dos consumidores, essa fatia de pessoas vistas como bebedores moderados é a que mais impacta o SUS em termos de custos de saúde relacionados a problemas por conta de ingestão de álcool. “Apesar de a categoria de 12 gramas por dia ser a menor em quantidade de álcool consumida, ela é uma das principais em termos de risco atribuído à população, dada a sua maior prevalência”, escrevem no artigo Mariana Gonçalves de Freitas e Everton Nunes da Silva, do Programa de Pós-graduação em Saúde Pública da UnB.

Um dado preocupante é que o consumo entre as mulheres, embora ainda em menor escala e menos abusivo do que o dos homens, apresenta tendência de crescimento no Brasil. Na PNS de 2019, 17% das mulheres disseram beber uma vez por semana diante de 13% na PNS anterior, de 2013. Entre os homens houve uma ligeira queda na quantidade de bebedores entre as duas pesquisas, de menos de 1 ponto percentual. Feita desde 2006 pelo Ministério da Saúde, a pesquisa de vigilância de fatores de risco e proteção para doenças crônicas por inquérito telefônico (Vigitel) sinaliza que as mulheres também passaram a beber em excesso (mais de quatro doses de 12 g de álcool em uma ocasião) nos últimos 15 anos. No levantamento de 2006, menos de 8% tinham apresentando esse comportamento nos últimos 30 dias, metade da porcentagem verificada em 2020.

No caso das mulheres, um dos principais problemas associados ao consumo de álcool é o aumento do risco de câncer de mama, o mais comum na população feminina. Segundo estudo publicado em 2018 no periódico Asian Pacific Journal of Cancer Prevention, mulheres com menos de 50 anos que consumiam regularmente álcool há pelo menos uma década tinham um risco três vezes maior de desenvolver esse tipo de tumor. O estudo foi feito com 1.506 mulheres atendidas no Instituto Fernandes Figueira da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), do Rio de Janeiro, das quais 1.100 formaram um grupo de controle (não tinham a doença) e 406 tinham recebido esse diagnóstico. O estudo, no entanto, não detalhou qual era o nível de consumo médio das participantes, apenas se eram abstêmias ou bebiam.

Apesar de um número cada vez maior de estudos e levantamentos enfatizar que não há quantidade segura de álcool a ser ingerida, alguns trabalhos de grupos importantes apontam eventuais benefícios associados ao consumo de pequenas quantidades de bebida para alguns segmentos da população. Artigo publicado na revista médica Lancet em julho de 2022 indica que, entre jovens adultos com idade de 20 a 39 anos, o consumo de álcool só aumenta riscos e não proporciona nenhum benefício à saúde. Para pessoas acima dos 40 anos, o risco varia conforme a idade e a região geográfica que a pessoa vive. No entanto, o trabalho indica que indivíduos mais velhos, sem problemas de saúde, poderiam se beneficiar com o consumo diário de um a dois drinques, cada um deles com 10 g de etanol. Esses eventuais efeitos positivos se concentrariam na área cardiovascular.

Alexandre Affonso / Revista Pesquisa FAPESP

“Consumido com moderação, o álcool reduz o risco de doença arterial coronariana, de derrame e de diabetes. Mas ele também aumenta a probabilidade de muitos cânceres, de acidentes, de cirrose e de doenças infecciosas, como tuberculose”, comenta, em entrevista a Pesquisa FAPESP, a pesquisadora Dana Bryazka, do Instituto de Métricas e Avaliação da Saúde (IHME) da Universidade de Washington, dos Estados Unidos, coordenadora do estudo. Com apoio da OMS e de outras agências, esse grupo do IHME coordena o projeto The global burden of disease. Trata-se de um grande esforço internacional que, há mais de 30 anos, estuda o impacto das patologias na mortalidade e morbidade da população do planeta. O artigo na Lancet levou em conta dados do consumo de bebidas alcoólicas de 204 países e seu impacto sobre 22 doenças ou tipos de acidentes.

Atingir um consenso sobre o que seria uma ingestão moderada, ou tolerável, de álcool é muito difícil. Alguns pontos, no entanto, são hoje inegociáveis. Certas parcelas da população não devem beber de forma nenhuma. Esse é o caso dos menores de idade, cujo desenvolvimento cerebral pode ser afetado pelo álcool, e das grávidas e lactantes. “O álcool passa pela placenta, chega ao feto e também é repassado ao bebê na amamentação”, afirma Arthur Guerra. Certas situações requerem uma política de tolerância zero com o álcool, como antes de dirigir ou realizar tarefas que possam causar acidentes ou oferecer perigo à vida. É igualmente prudente não beber em excesso antes de tomar decisões importantes. Há inúmeros casos – alguns anedóticos – sobre situações que ocorrem sob o efeito do álcool, como casamentos entre desconhecidos em uma capela de Las Vegas, nos Estados Unidos, que, logo em seguida, se arrependem do ato.

Informar a população e os formuladores de políticas públicas sobre os riscos associados ao consumo de álcool, um hábito arraigado na maior parte das sociedades, é a tônica dos estudos mais recentes. Mesmo os mais combativos críticos do papel do álcool nas sociedades não defendem atualmente sua proibição, como ocorreu entre 1920 e 1933 nos Estados Unidos. A chamada Lei Seca norte-americana foi uma medida radical, sem efetividade, e socialmente insustentável. Hoje pouco mais de 10 países, a maioria por motivos religiosos, proíbem total ou parcialmente a venda de bebidas alcoólicas. No Brasil, bebe-se, em média, entre 7 e 8 litros de etanol por ano por habitante. Boa parte dos países da Europa, onde o consumo é mais elevado, ultrapassa 12 litros por ano.

Na pandemia, a bebida se tornou um companheiro de muitas pessoas que estavam isoladas em casa. O consumo aumentou em todo o mundo e a incidência de doenças relacionadas ao álcool também. “O mercado brasileiro é pouco controlado. Não há nem uma licença específica que regulamente quem pode e quem não pode vender álcool”, diz Clarice Madruga, da Unifesp. “Precisamos de políticas públicas mais claras e definidas para o setor.” A OMS e autoridades sanitárias pressionam por mais controles na venda do álcool. O governo da Irlanda estuda colocar nos rótulos das bebidas avisos sobre os possíveis malefícios decorrentes do consumo de álcool, como ocorre com o tabaco. Se vier a ser implementada, a medida poderá ser um sinal de uma nova era na relação milenar do homem com as bebidas alcoólicas.

O fim do paradoxo francês?
Em 17 de novembro de 1991, um dos mais bem-sucedidos programas da televisão norte-americana, o 60 Minutes, da rede CBS, levou ao ar um segmento intitulado Paradoxo francês. Em linhas gerais, a emissão dava conta de que a incidência de problemas cardíacos era 40% menor na França do que nos Estados Unidos, a despeito de os europeus terem uma dieta rica em gorduras. Um dos segredos, talvez o principal, dessa aparente contradição seria o consumo moderado de vinho tinto nas refeições entre os franceses. A bebida contém polifenóis, substâncias presentes na casca das uvas vermelhas, que evitariam o entupimento das vias circulatórias.

Mesmo antes da popularização dessa ideia no programa, já havia estudos que sugeriam algum grau de proteção cardiovascular em razão da ingestão de quantidades pequenas de bebidas alcoólicas (o excesso sempre foi visto como prejudicial, inclusive ao coração). Mas seu impacto nem de perto se assemelhou ao efeito que o chamado paradoxo francês, atribuído em grande parte ao vinho tinto, teve sobre a opinião pública, médicos e pesquisadores nas últimas décadas. Hoje, mais de 30 anos depois da forte disseminação desse conceito, destacam-se dois pontos com repercussões distintas sobre o consumo de bebidas alcoólicas, sobretudo o vinho tinto.

O primeiro é que, em uma série de estudos observacionais, comparativos e não controlados, os benefícios conferidos à bebida podem estar mais ligados a outros hábitos saudáveis dos consumidores moderados de vinho tinto (como se exercitar e ter um padrão de vida melhor) e a problemas prévios de saúde dos abstêmios que fizeram parte desses trabalhos. Esses fatores, se não levados em conta, podem fazer com que a saúde dos que bebem um pouco pareça melhor do que a dos que não ingerem uma gota de álcool. “Embora seja bem estabelecido que o álcool aumenta o risco de cânceres, acidentes e cirrose hepática, há muita variabilidade nos achados de estudos sobre a relação do álcool e de várias outras patologias, sobretudo da doença cardíaca isquêmica”, comenta Dana Bryazka, do Instituto de Métricas e Avaliação da Saúde (IHME) da Universidade de Washington, nos Estados Unidos.

O segundo ponto é que, de fato, há trabalhos científicos indicando mecanismos associados a eventuais benefícios cardiovasculares por meio da ingestão de polifenóis presentes no vinho tinto, no suco de uva e em outros alimentos. “Essa associação não ocorre com todas as bebidas alcoólicas, apenas com o vinho tinto”, diz o cardiologista Protásio Lemos da Luz, do Instituto do Coração (InCor), ligado à Universidade de São Paulo (USP), estudioso do tema há décadas. “Os polifenóis melhoram a vasodilatação, tem ação antiplaquetária [impede a formação de coágulos sanguíneos] e são anti-inflamatórios. Se não houver nenhum problema de saúde em que se proíba beber, não desaconselho a ingestão de uma taça e meia de vinho por dia, que tem cerca de 25 gramas de álcool.”

Um estudo recente coordenado por Luz, publicado em dezembro de 2022 no American Journal of Clinical Nutrition, sugere que o consumo diário de 250 mL de vinho tinto remodela a flora intestinal, promovendo um perfil considerado geralmente mais favorável. O efeito foi medido em 42 homens, com idade média de 60 anos, que passaram por períodos de três semanas sem tomar a bebida e três semanas consumindo vinho tinto de forma alternada.

Álcool é considerado carcinogênico há mais de uma década
Desde 2012, o etanol presente nas bebidas alcoólicas faz parte do grupo 1 de agentes e substâncias classificados como carcinogênicos pela Agência Internacional de Pesquisa em Câncer (Iarc) da Organização Mundial da Saúde (OMS). Essa categoria abrange atualmente 126 itens, sobre os quais há evidência científica suficiente de que são capazes de causar câncer em seres humanos. É a classificação mais severa que um agente pode receber. Substâncias provável e possivelmente carcinogênicas são catalogadas, respectivamente, nos grupos 2A e 2B. As que não provocam câncer são listadas no grupo 3.

A classificação da Iarc não indica a probabilidade de um agente provocar câncer em função do grau de exposição dos seres humanos a ele. “Ela não mede se um agente causa mais ou menos câncer do que outro”, comenta o médico sanitarista Victor Wünsch Filho, da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP-USP) e diretor-presidente da Fundação Oncocentro de São Paulo (Fosp). Apenas sinaliza o grau de confiabilidade da informação científica sobre sua capacidade de gerar tumores.

Uma gama diversa de compostos químicos, misturas complexas, moléculas farmacêuticas, agentes físicos e biológicos aparecem na listagem da entidade. O tabaco, a poluição atmosférica, a luz solar, os raios gama e X, os vírus HPV e Epstein-Barr são exemplos de carcinógenos dentro do grupo 1 ao lado do etanol. O acetaldeído, um composto químico produzido no processo de metabolização do álcool no organismo e associado à sensação de ressaca, também faz parte dessa categoria.

Não se sabe em detalhes os mecanismos que levam o álcool a causar câncer, doença provocada, em muitos casos, pela ação conjunta de múltiplos fatores de risco. Mas algumas alterações biológicas associadas ao surgimento de tumores já são conhecidas. “O acetaldeído, por exemplo, é capaz de promover danos no DNA celular”, diz Thainá Alves Malhão, do Instituto Nacional de Câncer (Inca). “O maior consumo de etanol também pode induzir estresse oxidativo por meio do aumento da produção de espécies reativas de oxigênio, que são tóxicas ao material genético e carcinogênicas.” Nas mulheres, o álcool pode elevar os níveis circulantes do hormônio estradiol, alteração que aumenta o risco de câncer de mama.

Por fim, há ainda um efeito indireto da presença do álcool no organismo. Ele age como um solvente e favorece a penetração nas células de outras substâncias carcinogênicas, como as presentes no tabaco.

Artigos científicos
Canadian Centre on Substance Use and Addiction. Canada’s Guidance on Alcohol and Health: Final Report. jan. 2023
HAAS, E. A. et al. A red wine intervention does not modify plasma trimethylamine N-oxide but is associated with broad shifts in the plasma metabolome and gut microbiota composition. American Journal of Clinical Nutrition. v. 116, n. 6. dez. 2022.
FREITAS, M.G e SILVA, E. N. Direct and indirect costs attributed to alcohol consumption in Brazil, 2010 to 2018. Plos One. 25 out. 2022.
GBD 2020 Alcohol Collaborators. Population-level risks of alcohol consumption by amount, geography, age, sex, and year: a systematic analysis for the Global Burden of Disease Study 2020. Lancet. v. 400. n. 10347. 16 jul. 2022.
DI CREDICO, G. et al. Alcohol drinking and head and neck cancer risk: the joint effect of intensity and duration. British Journal of Cancer. v. 123. out. 2020.
VIERA. R. et al. Alcohol Consumption as a Risk Factor for Breast Cancer Development: A Case-Control Study in Brazil. Asian Pacific Journal of Cancer Prevention. vol. 19, n. 3. mar. 2018.

 

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