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Entrevista

Lise Tupiassu: Redefinir a quantidade de dinheiro para enfrentar o aquecimento global é um desafio da COP29

Procuradora federal e pesquisadora da UFPA, especialista em financiamento climático fala sobre as expectativas em torno da conferência da ONU no Azerbaijão

Arquivo pessoalQuanto dinheiro vai ser destinado para combater e mitigar a crise climática nos próximos anos é o que está em jogo nesta e na próxima semana em Baku, capital do Azerbaijão, onde começou na segunda-feira (11/11) a 29ª Conferência das Partes (COP29) da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças do Clima (UNFCCC). O encontro está sendo chamado de “COP das finanças” ou “do financiamento”. Na cerimônia de abertura, o secretário-executivo da UNFCCC, afirmou que é preciso “dispensar qualquer ideia de que o financiamento climático é caridade”. Segundo Simon Stiell, “uma nova e ambiciosa meta de financiamento climático é inteiramente do interesse próprio de todas as nações, incluindo as maiores e mais ricas”.

O tópico mais quente de debate é o estabelecimento de uma Nova Meta Coletiva Quantificada (NCQG, na sigla em inglês), o instrumento de financiamento global originalmente estabelecido em 2009 que prevê a transferência de fundos dos países mais ricos e desenvolvidos para as nações pobres e em desenvolvimento. O montante atualmente acordado, considerado insuficiente, é de US$ 100 bilhões por ano para o período de 2020 a 2025. A meta em discussão em Baku, para a segunda metade desta década, parte desse piso e alguns blocos de países pressionam para que as transferências entrem na casa do trilhão de dólares por ano.

Em conversa por vídeo realizada pouco antes do início da COP29, a procuradora federal paraense Lise Tupiassu, também professora e pesquisadora da Universidade Federal do Pará (UFPA) e do Centro Universitário do Pará (Cesupa), falou a Pesquisa FAPESP sobre sua expectativa para o evento. Com mestrado e doutorado em direito tributário e público e mais de 25 anos de atuação profissional, Tupiassu, de 46 anos, se especializou em financiamento climático na Universidade Columbia, nos Estados Unidos, entre 2022 e 2023. Ela esteve na COP do ano passado, mas não pôde ir à deste ano. A seguir, a entrevista por ela concedida.

Muito se fala sobre o papel central desta reunião que antecede a COP de Belém, em 2025, para que os países consigam chegar à NCQG. Por que a nova meta é tão importante para o debate climático e o que acontece se ela não for definida em Baku? Essa decisão ficará para a COP30 no Brasil?
Com certeza. Se ela não for definida neste momento, vai sobrar para o Brasil ano que vem. É muito importante que se defina uma nova meta quantificada, porque, a partir disso, temos um instrumento para pressionar os países a disponibilizarem os recursos necessários para o financiamento climático. O montante atual de US$ 100 bilhões demorou muito a ser atingido e foi fixado em 2009, mas há dados que demonstram que ele é muito insuficiente. O cenário internacional tem uma capacidade de alocação muito maior. Quando o comparamos com o valor empregado em guerras ou mesmo na pandemia de Covid-19, essa é uma quantia muito inferior. E, mesmo esse valor sendo atingido, ainda temos um problema sério de alocação. Isso porque a maior parte das conversas entre os países costumava girar em torno de recursos para mitigação, ou seja, o custeio de medidas voltadas para a redução nas emissões dos gases de efeito estufa, causadores do aquecimento do planeta. Na última COP, nos Emirados Árabes Unidos, avançou-se no debate sobre o custeio de medidas para a adaptação nos países. Já estamos muito perto do patamar de aquecimento de 1,5 grau Celsius na atmosfera terrestre em comparação a níveis pré-industriais. Já estamos vivendo as catástrofes dos eventos extremos. O problema é que o montante destinado para adaptação dos países para lidar com essas catástrofes é mínimo.

Considerando o panorama global e o cenário brasileiro, por que o valor atual é insuficiente?
Temos que ter em conta que a NCQG é um instrumento que está dentro do tratado da ONU para mudanças climáticas. O fluxo global de financiamento climático fora desse tratado é muito maior e está na casa do trilhão. Mesmo que o valor da NCQG suba de US$ 100 bilhões para o patamar dos trilhões, temos um problema qualitativo: como alocar o dinheiro no setor adequado e gastá-lo corretamente. De acordo com dados da organização Climate Policy Initiative (CPI), que produz relatórios sobre financiamento climático, o fluxo de transferências globais é, em média, de US$ 1,3 trilhão por ano, somando fontes públicas e privadas, dentro e fora do tratado da ONU. Mas como esse dinheiro está chegando às pessoas? O chamado dinheiro grátis, que é realmente doado, soma apenas US$73 bilhões. O dinheiro que gera dívida e visa lucro, como os empréstimos, é uma parte muito maior. Quais setores mais recebem dinheiro desse fluxo global? A maior parte vai para os setores de energia e de transportes. No caso do Brasil, esse dinheiro teria que ir mais para a resiliência da floresta e a manutenção dos meios de vida das comunidades tradicionais. Diferentemente de outros países, onde a maior parte das emissões de carbono vem da queima de combustível fóssil, a produção de gases de efeito estufa no Brasil vem essencialmente de mudanças no uso da terra e da disrupção dos modos de vida que mantêm a floresta em pé.

Existe algum impasse internacional entre quem deve dar esse dinheiro e quem deve de fato receber?
Essa é uma pergunta essencialmente sobre justiça climática. Há ainda dúvidas sobre quem deve pagar e quem deve receber. De um lado, há os países mais desenvolvidos que cresceram às custas das emissões de gases de efeito estufa e geraram o problema climático atual. De outro, há os países que tiveram dificuldade em se desenvolver. Aqui estamos praticamente falando do Sul Global, de nações que não contribuíram tanto para as emissões do passado. Porém, hoje em dia, muitos desses países em desenvolvimento são grandes emissores, como é o caso do Brasil, da Índia e da China. Então, há uma discussão sobre quem deve contribuir para o financiamento dessa dívida climática: apenas os países ricos ou também os em desenvolvimento que passaram a emitir mais há pouco tempo? O pagamento da NCQG gera impacto na economia dos países. Esse embate mistura valores, não apenas os financeiros, mas, sim, a visão que se tem sobre essa dívida histórica e sobre a própria percepção de justiça climática.

Entrevista: Renata Fontanetto
00:00 / 15:21

Há clareza sobre como o dinheiro do financiamento climático deve ser coletado e o que ele deve patrocinar?
Isso ainda não está claramente definido. O debate para o financiamento de medidas de adaptação é recente. Precisamos evoluir muito. Há ainda uma desconexão entre o que se debate no âmbito da COP e o efeito concreto do dinheiro no dia a dia das pessoas. Infelizmente, é um problema da grande maioria dos instrumentos de financiamento climático, senão de todos. Um grande exemplo é a Ilha do Marajó, no Pará, onde estão alguns dos piores Índices de Desenvolvimento Humano (IDHs) do Brasil. Trata-se de uma área de proteção ambiental, dentro do bioma Amazônia, e há dificuldade de fazer o recurso chegar lá, proporcionando a resiliência do sistema socioecológico. Existe uma burocracia no sistema de financiamento climático que impede que o recurso se reverta, ao final, em justiça climática efetiva. Dentro da COP, muitos públicos falam para si mesmos. Falta diálogo por parte de quem toma as decisões em relação às comunidades tradicionais e aqueles que mais precisam. É como se fosse um discurso de fora para dentro e não da base para o topo.

Quem define como o dinheiro do financiamento climático vai ser gasto? São os governos?
Não somente os governos. Vou dar um exemplo do Brasil. Uma parte do recurso global de financiamento climático vai para o Fundo Amazônia, que é gerido pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Esse gestor fará uma chamada de projetos em que ele define as prioridades ou deixa em aberto se o dinheiro deve ir para atividades de mitigação ou de adaptação. O gestor financeiro também tem regras, que fazem parte de normativas. Às vezes não é uma questão de o governo ou o gestor não querer que o dinheiro chegue às pessoas. É o sistema que foi moldado de uma forma que gera dificuldade de acesso. Seja dentro do Brasil ou no âmbito das Nações Unidas, precisamos deixar as normativas mais claras e avançar na flexibilização delas para permitir acesso direto dos públicos que mais precisam.

Há algum instrumento jurídico que penalize os países por não reunirem o dinheiro necessário para a nova meta global quantificada?
Não temos nenhum instrumento jurídico que obrigue os países e que os penalize. Da mesma forma, muitos países já estão descumprindo suas próprias metas de redução de emissão de carbono. A sanção é muito mais política, na forma de pressão ou de uma notificação alertando para o descumprimento de uma meta. Temos grande dificuldade de impor sanções em todo o direito internacional. Isso não é um problema apenas dessa convenção específica relacionada às mudanças climáticas.

Mudando um pouco de assunto. Você vem trabalhando com mercado de carbono. Existe expectativa em relação ao avanço dessa pauta também nesta COP?
O mercado de carbono global está inserido nas previsões do Artigo 6 do Acordo de Paris, de 2015, e até hoje não foi regulamentado. Ainda não conseguimos definir como esse mercado irá de fato funcionar. Antes, tínhamos as definições estabelecidas em 1997 no âmbito do Protocolo de Kyoto. Como funcionava esse mecanismo até então? Alguns países, em grande parte os desenvolvidos, tinham um limite de emissão, conhecido no jargão como cap. Se ultrapassasse esse teto, o país poderia comprar créditos de alguém que emitiu menos do que ele. Portanto, essa outra parte tem crédito para trocar ou, no jargão, trade. Esse é o sistema cap and trade. Na prática, o país poluidor poderia comprar créditos de carbono para compensar o estouro de seu limite de emissão. Já os países do Sul Global poderiam participar desse mercado por meio do mecanismo de desenvolvimento limpo. Ou seja, o país que emite mais poderia investir em um projeto de um país do Sul Global. Créditos de carbono seriam emitidos e eles poderiam ser usados para cumprir a meta do país emissor. Qual foi o problema desse mecanismo? Alguns projetos em países do Sul Global geraram injustiça climática porque não eram tão limpos assim e geravam problemas socioambientais. Essa e outras distorções levaram o mecanismo do mercado de carbono a ser reformulado no Acordo de Paris. Tudo ficou mais complexo. Agora empresas, e não apenas países, também podem participar do sistema, por exemplo. Mas o mecanismo reformulado ainda não foi regulamentado. Por ora, não sabemos de forma clara como esses créditos serão comercializados. No Brasil, tivemos uma longa discussão sobre a regulação nacional do mercado de carbono. Atualmente temos o Projeto de Lei no 182 de 2024, em tramitação no Senado Federal, que visa instituir e regulamentar o Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões de Gases de Efeito Estufa (SBCE). Toda decisão na COP29 terá repercussão aqui dentro.

O que está em jogo para a Amazônia brasileira nesta COP?
A questão do financiamento climático. Não é só questão de quantidade de dinheiro, é a qualidade no uso do recurso, como já mencionei. Temos um fluxo de financiamento que não está olhando para a Amazônia, onde temos alguns problemas: a transformação do uso da terra, a agropecuária predatória e a transição energética. Por mais que grande parte do Brasil use energia de fontes limpas, grande parte da região Amazônica em si usa energia produzida por combustíveis fósseis. A realidade do que ocorre na Amazônia ainda é desconhecida da maior parte dos investidores internacionais que estão de olho em projetos dentro da Amazônia. Eles veem um projeto no papel e pensam que é perfeito. Mas o olhar externo para a Amazônia não condiz com a realidade local. Por exemplo, sem olhar seriamente para a questão fundiária, é muito difícil manter a preservação da floresta. E há muitas outras questões em jogo. Creio que vir para uma COP na Amazônia, como a de Belém em 2025, e passar 10 ou 15 dias aqui, não dará a ninguém uma noção suficiente dessa realidade. Mas precisamos também ser otimistas e olhar a metade cheia do copo: já é um passo e tanto pelo menos trazer as pessoas para cá e, quem sabe, despertar nelas uma curiosidade genuína para que percebam que o sistema de financiamento climático como está não funciona plenamente. É essencial se aproximar dos moradores daqui e visar uma mudança de comportamento, de perspectiva e quem sabe, das próprias práticas de consumo e de mercado.

Esta reportagem faz parte da Climate Change Media Partnership 2024, uma bolsa de jornalismo organizada pela Earth Journalism Network da Internews e pelo Stanley Center for Peace and Security.

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