Em uma cena do filme Os boas-vidas (1953), de Federico Fellini (1920-1993), um dos personagens, em meio a um delírio etílico, faz uma proposta insólita a um amigo: abandonar tudo e partir para o Brasil. Embalados por imagens exóticas, personificadas na época pela cantora Carmen Miranda (1909-1955), cineastas italianos desse período idealizaram o país como um lugar idílico, repleto de sensualidade, alegria e paisagens naturais, capaz de abrigar sonhos impossíveis no contexto da Europa devastada pela Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Décadas depois, a presença de Chico Buarque em Roma, durante o exílio entre 1969 e 1970, deu início a um processo de revisão desse imaginário, segundo o brasilianista Luca Bacchini, da Universidade de Roma La Sapienza, na Itália.
Pesquisador de vínculos históricos e culturais entre Brasil e Itália há mais de duas décadas, Bacchini dedicou boa parte de sua pesquisa à relação de Buarque com a nação europeia. Ele recorda que, na década de 1970, o artista lançou ali discos, gravou músicas em parceria com compositores célebres como Ennio Morricone (1928-2020) e teve canções interpretadas por vários cantores consagrados, como Sergio Endrigo (1933-2005) e Mina Mazzini. Segundo Bacchini, a canção “A banda”, por exemplo, foi adaptada em italiano em duas versões, sendo que uma delas alterou o sentido original para adequar-se à interpretação de Mazzini. “Quando Chico chegou autoexilado à Itália, as gravadoras criaram estratégias para lançá-lo no mercado local, que tinha uma imagem estereotipada sobre o Brasil. Houve um esforço teimoso para moldá-lo ao gosto italiano”, explica. O pesquisador considera que, pelo fato de as canções de Buarque não mobilizarem tal imaginário, acabaram por ajudar a desconstruir estereótipos em relação à cultura brasileira. “Porém o artista pagou um preço por isso e foi incompreendido por um mercado que, naquela época, estava acostumado a consumir um tipo específico de brasilidade”, afirma Bacchini, que no momento prepara dois livros. Um deles sobre o exílio italiano de Buarque e outro envolvendo sua produção literária.
Da mesma forma que aconteceu com sua carreira na música, Buarque enfrentou resistência para ter a trajetória literária reconhecida no país europeu. “No ambiente universitário italiano, ele não era considerado um autor representativo da literatura brasileira, mas sim um músico que, eventualmente, escrevia romances”, comenta Bacchini. De acordo com o pesquisador, situação similar ocorreu com Vinicius de Moraes (1913-1980) na Itália, que ainda é visto como um músico que fazia poemas e não propriamente como um poeta. Essa visão, no caso de Buarque, começou a mudar nos últimos anos, sobretudo depois da vitória do prêmio Camões , em 2019. “Embora na academia italiana prevaleça uma visão engessada do cânone literário, há cada vez mais alunos que descobrem o Brasil e sua língua por meio dos livros de Chico”, afirma Bacchini.

Mondadori Portfolio / Getty ImagesAutor sentado em frente a uma igreja em Roma, na Itália, durante o exílio, em 1969Mondadori Portfolio / Getty Images
Atualmente, o pesquisador está ministrando na Universidade de Roma La Sapienza um curso anual dedicado exclusivamente ao autor. “Entre as novas gerações, o romancista é quase mais popular do que o músico. Tenho alunos que nunca ouviram músicas como “Apesar de você” ou “Cálice”, mas já leram Budapeste ou Bambino a Roma”, diz Bacchini, recordando que, entre 1953 e 1955, o historiador e sociólogo Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982), pai do artista, ocupou a primeira cátedra de literatura brasileira em La Sapienza.
Buarque tem seis livros traduzidos para o italiano, como Leite derramado, Budapeste e Essa gente. No Brasil, ele publicou seus primeiros textos ainda adolescente no jornal do colégio onde estudava na capital paulista e, em 1966, um conto de sua autoria saiu no jornal O Estado de S. Paulo. Em 1974, escreveu a novela Fazenda modelo (Civilização Brasileira), mas seu romance de estreia, Estorvo, foi lançado bem mais tarde, em 1991, pela Companhia das Letras, editora que publicou sete de seus 11 livros. Além do italiano, títulos como Estorvo, Benjamim e Budapeste ganharam versões em espanhol e inglês.
Nos Estados Unidos, a literatura de Buarque tem colaborado para tornar o conjunto de sua obra mais conhecido, segundo o pesquisador norte-americano Charles A. Perrone, professor emérito do Departamento de Espanhol e Português da Universidade da Flórida. Ele estuda a obra musical de Buarque desde a década de 1970. Segundo o pesquisador, no âmbito da música Buarque é menos conhecido na América do Norte do que artistas como Milton Nascimento, Caetano Veloso e Gilberto Gil, mas a publicação de Estorvo começou a mudar esse cenário. “Vertido para o inglês como Turbulence [Editora Pantheon, 1993], o livro teve boa acolhida pela crítica inglesa e norte-americana, especialmente após a tradução, a partir do fim dos anos 1990, de ensaios do crítico Roberto Schwarz sobre a ficção de Buarque”, relata Perrone, autor de livro publicado em 2022, em que analisa as 11 canções do disco que leva o nome do artista, lançado em 1978. “De forma geral, o público norte-americano não compreende a poesia presente nas canções de Chico, e a linguagem de seus romances acabou sendo mais aceita, especialmente fora de circuitos acadêmicos.”

ReproduçõesLivros inserem, com sutileza, elementos que revelam a complexidade da formação social do paísReproduções
Já em Portugal, a obra de Buarque percorreu um caminho distinto. A portuguesa Clara Rowland, da Universidade Nova de Lisboa, observa que o artista é conhecido no país desde o começo de sua carreira, nos anos 1960, e diferentes gerações cresceram escutando as suas músicas. De acordo com a pesquisadora, que é professora do Departamento de Estudos Portugueses da instituição, a força desse vínculo ficou evidente em 2019, quando o artista venceu o Prêmio Camões, do qual ela foi uma das juradas. Instituído em 1989 pelos governos de Brasil e Portugal, o reconhecimento é considerado o principal prêmio de literatura em língua portuguesa. “Testemunhei a comoção com que a notícia foi recebida em Portugal. A reação das pessoas foi explosiva”, recorda Rowland, em entrevista a Pesquisa FAPESP.
Para a pesquisadora, a presença do som, da música e da voz são elementos centrais na literatura de Buarque. Em seu livro mais recente, Bambino a Roma, em que aborda as impressões de uma infância vivida e imaginada na cidade italiana, a reconexão com um amigo de infância acontece quando o autor canta um samba em italiano. “A música funciona como um fio condutor que leva os personagens de volta a si mesmos e reorganiza fragmentos do passado”, propõe. Na visão de Rowland, o livro, que foi lançado em Portugal e no Brasil no ano passado, articula experiências autobiográficas e reflexões sobre o ato de escrever. Em um dos episódios, por exemplo, o protagonista percorre Roma de bicicleta, levando consigo um mapa. Quando o papel desgastado se rompe, ele desenha no verso sua própria versão da cidade, ou seja, uma Roma imaginada que, segundo o narrador, “se constrói de dentro para fora”.
Rowland considera ainda que Buarque domina a criação de canções como poucos artistas de forma contínua, ao longo de décadas. “A sua produção literária, por outro lado, parte de uma zona de risco, apresentando experimentações, desvios e retornos. A irregularidade na qualidade dos textos faz parte desse movimento de exploração da escrita, que os próprios livros dele, aliás, tematizam”, observa.
Produção literária de Buarque parte de uma zona de risco, apresentando experimentações, desvios e retornos
Os livros de Buarque são tema de uma edição especial da revista Literatura e Sociedade, publicada no final do ano passado, que compila análises de pesquisadores de diferentes áreas sobre a trajetória literária do autor. Organizadora da publicação, Maria Augusta Fonseca, professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), relaciona a obra buarquiana com uma tradição literária iniciada com Machado de Assis (1939-1908), que ganhou continuidade com os modernistas Mário de Andrade (1893-1945) e Oswald de Andrade (1890-1954). Na sua perspectiva, livros como Leite derramado (2009) dialogam com obras machadianas como Memórias póstumas de Brás Cubas (1881) e Dom Casmurro (1899), e também com Memórias sentimentais de João Miramar (1924), de Oswald de Andrade. Segundo ela, a despeito das diferenças temáticas, todos esses trabalhos apresentam uma forma fragmentária e trazem reflexões sobre mundos em que conexões se desfazem, convocando o leitor a reconstruí-las. “Nos livros do autor, se sobressaem a musicalidade do andamento narrativo e a presença do humor, que domina criticamente os relatos”, propõe.
O foco histórico constitui um dos traços mais marcantes da trajetória literária de Buarque. “Ela lida diretamente com os impasses do Brasil contemporâneo, sem perder de vista camadas históricas que o estruturam. Seus textos procuram mostrar como o país permanece preso a contradições fundantes, como a pobreza, a desigualdade e a violência”, observa Fonseca. Essa característica está presente, por exemplo, em Leite derramado, obra em que o protagonista, um homem de 100 anos à beira da morte, dita a sua vida a uma enfermeira. “O personagem atua como um tirano não apenas da palavra, mas também da história, carregando todos os vícios e as visões da elite a que pertence”, comenta. “O idoso rememora sua trajetória de forma aparentemente acrítica, exaltando comportamentos e valores que, hoje, soam abomináveis, como a defesa da escravidão e de preconceitos de classe.” Para a pesquisadora, esse narrador, na superfície, parece apenas contar a sua vida. Mas, no subtexto, tece uma crítica incisiva à sociedade brasileira. “No livro, Buarque insere, com discrição, elementos que revelam a complexidade da formação social do país, incluindo os vínculos familiares entre senhores e escravizados, que aparecem diluídos na narrativa. É preciso atenção para perceber informações entranhadas no texto”, aponta.

MMaranhão / FolhapressBuarque (no centro) na cerimônia do Prêmio Camões, em 2023, realizada no Palácio Nacional de Queluz, em Sintra, PortugalMMaranhão / Folhapress
O professor de filosofia Denilson Soares Cordeiro, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), observa que é possível ler a obra de Chico Buarque a partir da visão de radicalismo do crítico literário Antonio Candido (1918-2017). De acordo com essa ideia, radicalismo é uma perspectiva histórica de crítica social e política. “Chico revela, em sua literatura, um modo radical de ser escritor, mas esse radicalismo de classe média tem limites impostos por sua própria posição social”, afirma. Essa tensão se expressa em Anos de chumbo e outros contos (2021), que explora temas como brutalidade policial e militar, violência sexual, loucura e miséria social. Um dos contos narra a história de uma menina de 14 anos que é vendida pelos pais ao tio miliciano. “Apesar de tudo, a menina narradora conta a situação com amenidade”, diz. Cordeiro destaca que essa característica se repete em outros contos do livro, que tratam a violência extrema com certo tipo de distanciamento. “O autor expressa, assim, os limites de seu radicalismo, marcando a fronteira política da literatura que produz”, defende o pesquisador.
A ficção literária oferece a Buarque a possibilidade de elaboração estética e política de temas que já se insinuavam em suas canções, de acordo com o sociólogo Marcelo Ridenti, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Nesse sentido, o pesquisador avalia que nos romances, e especialmente em Benjamin (1995), o autor trabalha com a dimensão subjetiva do tempo, que se confronta com o curso da história objetiva. “No livro, que trata da obsessão do protagonista pela morte de sua amada, o foco de atenção não é o tempo teorizado dos historiadores, mas o tempo vivido e sentido pelas personagens”, analisa.
Essa abordagem permite, segundo Ridenti, pensar criticamente sobre o esvaziamento do imaginário popular que projetou o Brasil como “país do futuro”. Segundo o pesquisador, esse horizonte se dissolveu nas últimas décadas, com o enfraquecimento de projetos coletivos de transformação. “Mesmo os governos de esquerda têm tido dificuldades em propor alternativas a uma sociedade centrada no consumo e na exploração do trabalho”, observa. Para o sociólogo, Buarque capta esse esfacelamento da percepção do tempo histórico. “Ele expressa como a utopia que marcou a construção do imaginário revolucionário brasileiro nos anos 1960 e 1970 cedeu lugar a uma sensação de deslocamento temporal.”
A reportagem acima foi publicada com o título “Circuitos estrangeiros” na edição impressa nº 351 de maio de 2025.
Artigos científicos
CORDEIRO, D. S. Matéria brasileira e radicalismo em Anos de chumbo e outros contos. Revista Literatura e Sociedade. Romance. Conto. Memória. Teatro. Homenagem a Chico Buarque. v. 31, n. 40, 2024.
RIDENTI, M. Benjamim, Benjamin. Romance, história e melancolia de esquerda. Revista Literatura e Sociedade. Romance. Conto. Memória. Teatro. Homenagem a Chico Buarque. v. 31, n. 40, 2024.
Livro
PERRONE, C. A. Chico Buarque’s first Chico Buarque. Londres: Bloomsbury Academic, 2022.