A atual voga do “lugar de fala” ergueu-se contra uma tradição forte no campo da teoria da literatura. Desde os anos 1910, começou a tomar forma a ideia de que a obra literária deveria ser vista em si mesma, em seus termos, não como tributária da vida ou do contexto do autor. Foi uma saudável reação à ideia biografista de que a obra seria explicada pela vida do escritor.
Passou-se um século e agora, nos casos mais radicais, a categoria “lugar de fala” reivindica ligação imediata e inescapável entre biografia e obra. Nos mais amenos, trata-se de uma advertência para a relevância de considerar dimensões objetivas da vida do autor.
Vista a coisa desde o ângulo do debate literário, o trabalho de Sergio Miceli tem a grande virtude de lembrar esses condicionantes e de oferecer elementos objetivos. O sociólogo já tem uma contribuição incontornável para pensar o modernismo brasileiro. Agora, publica Lira mensageira, com dois ensaios de altíssimo valor no tema. O primeiro ensaio trata do escritor mineiro Carlos Drummond de Andrade (1902-1987). Como costuma fazer, Miceli segue os passos do sociólogo francês Pierre Bourdieu (1930-2002) no exame de traços objetivos na vida e na obra dos intelectuais estudados: filiação, inserção na história local, os laços que mantém ou conquista entre as elites, os gêneros literários que pratica, os valores a que dá voz. Isso ao lado da formação intelectual, da carreira profissional, da sociologia dos casamentos, dos favores que prestou ou pediu, das lealdades que manteve ou renegou.
As dimensões são muitas. A história de Minas Gerais toma parte ativa e ajuda a diferenciar o modernismo praticado em Belo Horizonte daquele de São Paulo. Diferentes contingências, elites com distintas aspirações e possibilidades, solicitam coisas diversas dos intelectuais. Miceli lê correspondências, artigos de imprensa, biografias e a própria obra literária, essa que tantas vezes é ainda tomada como pertencendo à esfera metafísica e que o autor, ao lado de outros como o crítico literário britânico John Gledson, especialista em Drummond, ajuda a lembrar que participa da natureza das coisas humanas.
O ensaio mira no decisivo papel que os postos de emprego público tiveram na trajetória de Drummond e sua turma. Ao contrário do que ocorreu em São Paulo, em que os salões endinheirados funcionaram como ambiente dominante para a carreira dos modernistas, em Minas, e depois no Rio, os cargos de confiança, na esfera letrada (jornais) ou não (funções políticas), estruturaram a vida dos jovens. No conjunto, esse ensaio oferece vasto material para a comparação entre províncias, que reposiciona a leitura do fenômeno em São Paulo.
Há passagens de alto poder de iluminação. Destacar a opção de Drummond pela poesia mostra correlação com a escolha pelo engajamento político de A rosa do povo. O poeta se apresenta, em “Confidência do itabirano”, como um simples “funcionário público”, mas a análise sublinha seu papel de grande destaque na hierarquia oficial.
O segundo ensaio tem também imenso interesse para o debate literário e cultural. Num foco preciso, trata de analisar o primeiro livro de cada um dos modernistas paulistas. Esses são examinados em sua trajetória social inicial – interioranos ou paulistanos, de elite ou não, ricos ou pobres, casando-se para cima ou para baixo – e as escolhas temáticas e formais. Com exceção de Mário de Andrade (1893-1945), todos cursam direito, militam na imprensa e quase todos estreiam com livros de poemas, tudo isso sendo lido como lances de um xadrez de larga duração, em busca de legitimidade e prestígio.
Para apontar alguma limitação nos ensaios, menciono dois aspectos. Um deles é a obsessão em encontrar metáforas para descrever os passos, as escolhas, as ideias. O outro aspecto é a recusa a sintetizar as várias, criativas e agudas análises tópicas em momentos generalizantes, que dariam a ver o quadro geral.
As duas marcas parecem fazer parte de uma estratégia deliberada, em parte apoiada em Bourdieu, que combatia ativamente o encantamento propiciado pelos relatos, em favor de encontrar os elementos objetivos, ainda que sutis, e neles escorar a análise. Tudo considerado, o novo livro de Miceli tem alto valor analítico, que dá a ver muito da dimensão empírica da sociologia das relações e das fantasias literárias dos modernistas mineiros e paulistas.
Luís Augusto Fischer é professor de literatura brasileira da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e autor de Duas formações, uma história – Das “ideias fora do lugar” ao “perspectivismo ameríndio” (Arquipélago, 2021).
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