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Obituário

Luiz André Barroso foi pioneiro no planejamento dos datacenters

Engenheiro do Google ajudou a criar infraestrutura que permitiu a computação em nuvem e é considerada o cérebro da internet

Luciana AithO engenheiro fez sua carreira no Google, onde trabalhou por 22 anosLuciana Aith

A morte do engenheiro carioca Luiz André Barroso, aos 59 anos, nos Estados Unidos, onde vivia desde os anos 1990, foi noticiada timidamente no Brasil, o que talvez se explique pela natureza invisível do que ele fazia – estar por trás da infraestrutura que permite o funcionamento da internet – e por sua personalidade discreta.

Barroso construiu a carreira no Google, onde ficou por 22 anos, e ganhou a distinção de fellow, reservada a pouquíssimas pessoas na empresa. Seu trabalho mais reconhecido, a inovação no planejamento dos gigantescos datacenters, considerados uma espécie de cérebro da internet, teve impacto direto em toda a indústria da informação. O trabalho está descrito no livro The datacenter as a computer (Morgan & Claypool, 2018), de Barroso e Urs Hölzle. “Facebook, Microsoft e Amazon adotaram”, conta o engenheiro Berthier Ribeiro-Neto, professor de ciência da computação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e diretor do Centro de Engenharia do Google em Belo Horizonte.

Para que a internet funcione, da ferramenta de busca até uma chamada de vídeo ou e-mail, é preciso que todos os dados estejam armazenados e processados dentro de máquinas, empilhadas em prateleiras dentro de prédios físicos, instalações gigantescas, maiores que shopping centers, conectadas entre si por cabos que atravessam oceanos e continentes. “A nuvem não é algo abstrato. Alguém está lá atrás fazendo a coisa acontecer”, explica a engenheira da computação Cíntia Borges Margi, professora do Departamento de Engenharia de Computação e Sistemas Digitais da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli-USP).

Barroso foi um personagem central da gênese dessa infraestrutura, denominada warehouse scale computing (WSC), que organiza a hierarquia de memórias e o acesso aos dados de forma a obter o melhor resultado. Em 2001, depois de trabalhar em um projeto de chip chamado Piranha para a fabricante norte-americana Compaq, nos Estados Unidos, Barroso decidiu se transferir para o Google e se dedicar à programação. Por volta de 2005, com a ampliação do serviço de busca e do Gmail, a empresa precisou expandir radicalmente seus datacenters e nenhum fornecedor terceirizado tinha escala suficiente para atender às necessidades.

O problema é que o Google era uma empresa de engenheiros de software, e não de hardware. Como tinha histórico de trabalho com hardware, Barroso acabou assumindo o protagonismo. “Tínhamos pouca experiência, mas não pouca confiança”, divertiu-se o engenheiro em uma entrevista concedida à Association for Computing Machinery (ACM), organização que em 2020 lhe concedeu, junto com o Institute of Electrical and Electronics Engineering (IEEE) Computer Society, o prêmio Eckert-Mauchly, o mais importante do mundo na área de arquitetura de computadores.

A saída encontrada por Barroso foi construir datacenters do zero, projetando servidores, computadores de rede, sistemas de armazenamento, o próprio prédio, a estrutura de resfriamento e de distribuição de energia. Pensar programação e máquina ao mesmo tempo permitiu, por exemplo, que fossem utilizados carregadores de energia mais baratos, numa época em que o Google ainda não dava lucro. Possibilitou também que os processos se distribuíssem de modo que o resfriamento não precisasse ser tão intenso o tempo todo nem em todas as áreas do prédio.

A ciência em ação
Barroso se dizia um entusiasta da ciência em ação, inspirado na prática profissional do pai e do avô, ambos médicos. Também do avô o radioamadorismo o encantou aos 8 anos e o levou à decisão pela engenharia elétrica, segundo declarou em uma mesa-redonda da qual participou no ano passado. A graduação e o mestrado foram cursados na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), graças a bolsas de estudo da universidade, na graduação, e da multinacional IBM, no mestrado. O doutorado em engenharia da computação foi feito na Universidade do Sul da Califórnia (USC), nos Estados Unidos.

“Não importa que todo o trabalho de Barroso tenha sido realizado dentro do Google, e não na academia, porque tudo o que ele fez está publicado, tem método científico, com lastro de pesquisador”, destaca Margi, da Poli. “Na universidade, não temos a mesma escala de demanda de uma empresa. Ele teve mais de 20 anos de resultados importantes, trabalhando com muita gente.”

O engenheiro foi adepto do exercício regular do que chamava, com humor, de “suicídio de carreira”, mudanças drásticas de área que o fizeram desempenhar funções tão díspares quanto trabalhar com imagens de satélite para o Google Maps, tecnologias de realidade aumentada, aprendizado de máquina, segurança e privacidade on-line, cultura de inovação e tomada de decisões. Até na pandemia de Covid-19 ele atuou, criando um sistema de notificação para a exposição ao novo coronavírus.

“O conhecimento técnico combinado com a empatia e a bondade estão na gênese desse projeto bem-sucedido que salvou vidas. Só no Reino Unido, um estudo publicado pela Nature estimou que o sistema ajudou a evitar 1 milhão de suspeitas, 44 mil hospitalizações e 9,6 mil mortes por Covid-19”, declarou o Google em comunicado. “Muitas pessoas que trabalharam no projeto lembram da liderança de Luiz com carinho e admiração”, disse Fernanda Guzzo, gerente de Comunicação e Relações Públicas da empresa.

“Talvez minha formação em engenharia”, explicou Barroso em uma entrevista concedida em 2021, “tenha me dado um pouco da soberba de achar que de algum jeito se descobre como fazer as coisas”. Para ele, se uma mudança de área estivesse ancorada em entusiasmo, dava para “aguentar o tranco de ser a pessoa menos informada no recinto por algum tempo”. Ele dizia haver uma certa “mágica” que acontece quando alguém experiente e inteligente empresta os olhos virgens para uma área totalmente nova e enxerga o que os especialistas como ele podem deixar passar.

Música, pássaros e vida selvagem
A defesa de uma diversidade de perspectivas e olhares foi aplicada a outros interesses nos últimos anos, em especial na ligação com o Brasil. “Era uma nova fase da vida, em que ele estava empolgado em fazer outras coisas”, disse o amigo e também engenheiro Marcus Fontoura, CTO da fintech Stone, que tinha conseguido convencer Barroso a entrar no conselho da empresa. “Ele estava nos ajudando a criar uma cultura de engenharia nos moldes de uma big tech. Era muito preocupado com a educação, em como usar a tecnologia para o desenvolvimento do mundo e do país.”

O interesse por questões sociais se traduziu ao longo dos anos na liderança executiva do Hola, Grupo de Funcionários Hispânicos e Latinos do Google, e na participação como mentor da Fundação Estudar. Junto com a mulher, a cantora e compositora norte-americana Catherine Warner, estava envolvido na causa da defesa de meninas e mulheres. “Barroso sempre acreditou que o Brasil precisava de justiça climática e reprodutiva. Apoiou também mulheres de cada canto do mundo para que pudessem exercer seus direitos sexuais e reprodutivos e desenvolver projetos de vida em seus próprios termos”, afirmou a Pesquisa FAPESP a cientista política argentina Giselle Carino, diretora-executiva da Fòs Feminista, aliança que reúne mais de 200 organizações de mulheres pelo mundo.

Tinha como hobbies a música e a fotografia de pássaros e da vida selvagem. A música era levada tão a sério que lançou em 2023 o álbum Before bossa, com arranjos seus para músicas brasileiras e de jazz que inspiraram os criadores da bossa-nova. Tinha ainda, segundo os amigos, projetos ambiciosos no âmbito musical, como inaugurar um clube de jazz e verter para o inglês canções de Chico Buarque.

Também planejava atuar mais intensamente na defesa ambiental. Para isso entrou no conselho do Rainforest Trust, organização internacional dedicada ao conservacionismo e a proteger territórios indígenas. Pouco antes de morrer, passou uma semana no Pantanal com o CEO da organização, James Deutsch.

“Às vezes, você encontra na vida alguém que é um milhão de vezes mais inteligente que você. E às vezes cruza com gente muito, muito gentil. Mas raramente elas são a mesma pessoa. Luiz era as duas coisas. Estava muito à frente de nós”, declarou Deutsch, emocionado. “É uma grande perda para o Brasil e para o conservacionismo.”

Barroso morreu de causas naturais no dia 16 de setembro. Não deixou filhos.

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