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Entrevista

Luiz Bevilacqua: Pontes para a interdisciplinaridade

O precursor da Coppe e idealizador do modelo da Universidade Federal do ABC conta como o desenvolvimento da pesquisa em engenharia marcou o país

Ana Carolina Fernandes

Aos 84 anos recém-completados, o engenheiro carioca Luiz Bevilacqua vislumbra, de uma posição privilegiada, o desenvolvimento da ciência e do país nas últimas seis décadas. Formado engenheiro pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) em 1959, resolveu dedicar-se à pesquisa em uma época em que ela era embrionária no país. Especialista em pontes e grandes estruturas, passou períodos na Alemanha e nos Estados Unidos e foi o responsável pelos programas de engenharia civil e engenharia mecânica nos primeiros anos do Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-graduação e Pesquisa em Engenharia (Coppe), uma das mais produtivas instituições voltadas para a pesquisa em engenharia do país, vinculada à UFRJ.

Diversificou seus interesses de pesquisa para apoiar as demandas que grandes empresas apresentavam à Coppe, mas se demitiu da instituição em meados dos anos 1970 quando ela estava sob intervenção. Foi trabalhar na Promon, empresa responsável pelos projetos de engenharia das usinas de Angra 1 e 2. Reiniciou a carreira acadêmica nos anos 1980, agora com uma forte contribuição em administração acadêmica, que enveredou para a gestão do sistema universitário e de ciência e tecnologia em diferentes governos. Foi secretário-executivo do Ministério da Ciência e Tecnologia (1992-1993), criador do comitê de pesquisa interdisciplinar da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, a Capes (1999), e diretor da Agência Espacial Brasileira (2003-2004). Mais recentemente, foi reitor (2006-2008) e um dos idealizadores do modelo transdisciplinar e sem departamentos da Universidade Federal do ABC (UFABC), que em 20 anos de existência se tornou uma destacada instituição de pesquisa. Na entrevista a seguir, Bevilacqua relembra sua trajetória.

Idade 84 anos
Especialidade
Engenharias civil e mecânica
Formação
Graduação em engenharia (UFRJ-1959), especialização em estruturas (Universidade de Tecnologia de Stuttgart), livre-docência (UFRJ-1966), doutorado (Universidade Stanford-1971)
Produção
52 artigos, 10 capítulos de livros

O senhor se graduou em 1959, quando se fazia pouca pesquisa em engenharia no país. Como desenvolveu seu interesse pela pesquisa?
Sempre tive bastante interesse em explorar o conhecimento e entrei na Escola de Engenharia. Não era uma escola de pesquisa. Era um excelente curso profissionalizante, com professores de muito boa qualidade, grandes profissionais. A matemática era uma exceção. Havia entre os professores pesquisadores de alto nível, mas eles estavam mais dedicados à criação do Instituto de Matemática Pura e Aplicada, o Impa. Era o Maurício Matos Peixoto [1921-2019], sua esposa, Marilia Chaves Peixoto [1921-1961], o Lindolpho de Carvalho Dias [1930-1984], o Leopoldo Nachbin [1922-1993]. Mas eu queria fazer pesquisa em engenharia. O professor Roger Castier, que tinha estudado na Alemanha, tentou abrir um laboratório, mas não havia instalações nem pessoas que pudessem auxiliá-lo e ele acabou desistindo. Meus professores da área de estruturas davam a seguinte recomendação: “Quer saber o que está acontecendo no mundo? Leia revistas, principalmente as alemãs”.

O senhor foi para a Alemanha nessa época, não é?
Fui para Stuttgart. Lá, não participei de projetos de pesquisa, mas aprendi muito nos cursos que fiz. Nessa época, comecei a fazer um trabalho que terminou cinco anos depois, no Rio, e foi a minha livre-docência. Quando voltei para o Brasil, fui trabalhar em uma empresa, a Geotécnica, e desenvolvia essa tese à noite. Durante o dia eu trabalhava em projetos. Fizemos uma estrada no Paraguai, de Concepción até Assunção. À noite, trabalhava na tese. Era professor-assistente também da cadeira de Resistência dos Materiais na Escola de Engenharia. Saía do trabalho e ia correndo para lá. Dava aulas e voltava para o trabalho. Os diretores das empresas gostavam que alguns dos seus engenheiros fossem professores na universidade, porque dava prestígio. Em 1965 eu apresentei a minha tese de livre-docência na UFRJ.

O senhor saiu da Geotécnica. Por que foi para a PUC-RJ?
Aceitei um convite que me foi feito. Passei um ano lá, mas logo soube que a Coppe estava se formando na UFRJ. Decidi ir para a Coppe.

Que linha de pesquisa desenvolveu?
A cadeira que eu lecionava era a de Resistência dos Materiais, que tinha a ver com estruturas. Eu fui para fundar o Programa de Engenharia Civil, do qual fui chefe, e trouxe para a Coppe o Fernando Lobo Carneiro [1913-2001]. Ele não era professor, mas pesquisador do Instituto Nacional de Tecnologia [INT]. A Escola de Engenharia não tinha pesquisa em laboratório e o INT era um laboratório. Fazia ensaio de vigas, de estruturas estáticas e dinâmicas. Lobo Carneiro acabou abrindo vários laboratórios na Coppe. Havia o Programa de Mecânica, que ficou sem um responsável. Alberto Luiz Coimbra [1923-2018], que era o diretor, pediu que eu cuidasse desse também.

Estamos falando de uma época em que o país estava em crescimento e fazia grandes obras. Qual foi a contribuição da Coppe?
A grande demanda vinha da Petrobras. A descoberta de petróleo em águas profundas causou um grande impacto, pois ninguém no mundo trabalhava com isso. Ou a Petrobras resolvia aqui ou não tinha como explorar petróleo. Foi uma maravilha, porque houve convênios e contratos com a Coppe na área de estruturas, de exploração de petróleo. Nessa época, Lobo Carneiro tinha feito um excelente laboratório de ensaios de estruturas. Cooperamos com o projeto da ponte Rio-Niterói. A Coppe também contribuiu para o desenvolvimento de métodos numéricos para cálculo de estruturas. No fim dos anos 1960, início dos 1970, conseguiu um computador IBM-1130, que tinha menos memória do que qualquer celular hoje, mas que ocupava uma sala enorme. Foi um espetáculo. Vários métodos numéricos começaram a ser desenvolvidos. O Programa de Engenharia Civil liderou essa análise com métodos computacionais devido à grande complexidade de estruturas. Entre 1968 e 1971 estudei na Universidade Stanford, nos Estados Unidos, e fiz um doutorado bastante interessante lá. Nessa época, o que se desenvolvia no Brasil não tinha sustentação matemática suficiente. Eu me dediquei ao que se chama de métodos variacionais para análise de estruturas. Foi uma contribuição boa. Ajudou a determinar técnicas de modelagem, técnicas de desenvolvimento de cálculo com uma base científica e analítica forte.

Coppe/UFRJ Em 2019, Bevilacqua ministra aula inaugural do programa de Engenharia Química da Coppe/UFRJCoppe/UFRJ

No doutorado em Stanford, a sua tese foi sobre propagação de ondas em sólidos, é isso?
Exatamente. Eu me encantei com a parte de dinâmica de estruturas, de propagação de ondas em sólidos. Quando voltei para o Brasil, consegui, com dois estudantes, desenvolver um pouquinho essa área e eles continuaram nessa linha. Mas também tive que me dedicar muito mais a métodos variacionais, porque o Brasil precisava disso.

Como avalia o papel da sua geração para a engenharia?
Minha geração implantou a pesquisa, preparou a geração seguinte, participou na administração acadêmica, e tinha de fazer tudo isso. Era como se tivesse que fazer os pratinhos girarem sem deixar nenhum deles cair. A maioria dos colegas da minha geração não seguiu o mesmo caminho que eu. Continuaram como engenheiros. Quando comecei a me dedicar à pesquisa, encontrei pessoas mais jovens do que eu. Eles vinham do curso de engenharia direto para a pós-graduação e não passavam por empresas. Isso me permitiu enxergar a pesquisa de outra forma. Eu via como ela poderia ser aplicada e a importância que tinha, inclusive na formação de pesquisadores. Havia ligação direta entre a nossa pesquisa e o que estava sendo executado. A Petrobras conectava as duas pontas. A indústria aeroespacial fazia isso; a indústria química ainda faz. Infelizmente, houve uma trava nessa cooperação. Várias empresas brasileiras foram destruídas nas últimas décadas e isso nos deixou em desvantagem. A China vai construir uma ponte na Bahia entre o continente e a ilha de Itaparica. O Brasil fazia pontes maravilhosas. Agora, importamos o projeto. É triste.

O senhor deixou a Coppe após uma intervenção no programa. O que ocorreu?
O professor Coimbra foi preso em 1973. Uma pessoa que lecionava estudos de problemas brasileiros fez um dossiê dizendo que ele tinha ideias esquerdistas. O Coimbra tinha suas convicções, era mais de esquerda do que de direita, mas não queria implantar ideia nenhuma. Na Coppe, o que existia era ciência. Mas sua saída foi trágica para o instituto. O professor Sidney Santos, da Escola de Engenharia, foi indicado diretor. Chamavam-no de interventor, mas ele levava as coisas suavemente. Passou um ano, um ano e meio. Numa das reuniões, tomei coragem e disse: “Está na hora de fazermos uma reunião do conselho da Coppe e indicar um diretor”. Até podia ser ele, mas tinha que ter a indicação. Ele ficou muito indignado, mas aceitou. Fez-se uma lista tríplice, que foi encaminhada ao reitor e eu estava nela. Isso foi em janeiro. Passou fevereiro, março, abril, eu telefonei para o reitor: “O senhor tem alguma dúvida, quer conversar comigo?”. Ele disse: “Não o conheço, não vou indicá-lo como diretor da Coppe. Vou designá-lo primeiro para um comitê de pós-graduação da reitoria para ver como o senhor age, depois eu vejo se o nomeio”. Respondi: “Não fui indicado para esse comitê, então o senhor nomeie outra pessoa”. Fiquei muito desgastado e pedi licença-prêmio de seis meses. Depois, como nada tinha sido resolvido a contento, pedi ao novo reitor uma licença sem vencimento. Ele negou. Aí tomei uma decisão radical: pedi demissão do serviço público. Eu tinha o convite do Décio Leal de Zagottis, que estava trabalhando na empresa Promon, e aceitei. Foram cinco anos felizes na Promon, em que resolvemos problemas importantes no projeto de tubulações e vasos de pressão de classe nuclear para as usinas de Angra 1 e Angra 2.

Qual foi seu envolvimento nesses projetos?
Era preciso desenvolver os projetos dos equipamentos. Eram quilômetros de tubulações, com vários diâmetros, que não podiam apresentar vazamento absolutamente nenhum. Fizemos certas configurações-padrão de tubulação. Com elas, foi possível trabalhar muito mais rápido nos projetos das tubulações. Se passa nesse padrão, então pronto, vamos ver o outro trecho. Havia um grande problema em Angra 1. Em um trecho, era preciso reduzir a pressão na tubulação de um montante equivalente a uns 600 metros de altura de coluna d’água. E conter isso em um pedacinho de pouco mais de 1 metro. Não havia equipamento que funcionasse. Quebrava tudo. Fizemos um projeto de 6 metros, introduzindo em cada pedaço de tubo uma placa com um furinho, que ia quebrando a pressão à medida que passava de um furo para outro. Funcionou. A Promon poderia ter patenteado. A Westinghouse, que era a projetista de Angra 1, parece que utilizou o mesmo projeto para usinas semelhantes em outros países.

Seu retorno para a vida acadêmica novamente foi pela PUC-RJ e só mais tarde para a Coppe. O que foi fazer na PUC-RJ?
O que eu tinha para fazer na Promon estava bastante estabilizado. O Décio já tinha saído. O pessoal da área de mecânica da PUC começou a insistir muito. Queriam minha cooperação, inclusive com o conhecimento adquirido nos projetos de Angra 1 e 2. Aceitei. Poucos meses depois que entrei, a reitoria da PUC pediu que eu aceitasse a posição de vice-reitor acadêmico. Não pude negar e busquei fazer da PUC uma universidade mais integrada. Fizemos uma nova revisão acadêmica da PUC. Na mesma época, fui eleito presidente da Associação Brasileira de Ciências Mecânicas [ABCM]. Não existia revista brasileira técnica na área de mecânica, então eu fundei com 10 associados a Revista Brasileira de Ciências Mecânicas (RBCM). Ela nunca deixou de sair. Tem um fator de impacto muito bom para uma revista de engenharia, 1.7. Atualmente é publicada pela Springer, mas o controle editorial continua com a ABCM.

E o seu retorno para a Coppe?
Voltei como professor convidado, porque eu tinha saído do serviço público. Tive que fazer todos os concursos de novo, para associado e para titular, para ser admitido na carreira estatutária da UFRJ. Logo que cheguei, pediram que eu fosse para a Diretoria de Desenvolvimento. Naquela época, a Petrobras continuava com cooperação intensa com a Coppe e precisava de um veículo de operação remota. Era preciso fazer inspeções a grandes profundidades, impossível para os mergulhadores. Começamos um projeto interdisciplinar, com gente de mecânica, de civil, de elétrica, de sistemas. Esse grupo começou a desenvolver motores, tecnologias de sensores, mãos mecânicas, braços mecânicos, propulsão. Isso foi feito em cooperação com uma empresa brasileira muito competente, a Consub, que projetava um veículo de operação remota e que também tinha contrato com a Petrobras.  Mas aconteceu algo que, infelizmente, se tornou comum no Brasil. A Suécia tinha desenvolvido um veículo de operação remota. A Petrobras, quando soube, interrompeu o projeto e comprou deles. Se tivessem continuado, poderíamos ter uma empresa de veículos de operação remota e a Coppe teria se desenvolvido mais nessa área. Esse grupo que se originou com veículos de operação remota continuou trabalhando em manipuladores e em veículos autônomos. Eles desenvolveram um veículo, em 2014, para ajudar no desmonte de equipamentos perigosos ou de explosivos. Isso porque, na Copa de 2014, a Fifa exigiu que o país tivesse essa capacidade de evitar atos terroristas. Isso foi desenvolvido com uma empresa que se instalou no Nordeste, financiado pela Finep [Financiadora de Estudos e Projetos]. Sabe o que aconteceu? Veio uma empresa estrangeira, comprou a empresa brasileira e fechou aqui no Brasil. Isso me traz um desgosto profundo.

A descoberta de petróleo em águas profundas causou grande impacto. Ou a Petrobras resolvia aqui ou não tinha como explorar

Em 1991, o senhor, quase 20 anos depois, tornou-se diretor da Coppe?
O então diretor da Coppe, professor Nelson Maculan, foi escolhido reitor, eu era o vice e assumi. Mas não fiquei muito tempo. Em 1992, o senhor Fernando Collor era o presidente e o ministro da Ciência e Tecnologia era um grande professor da área de humanas, Hélio Jaguaribe. Alguns amigos dele, que eram da PUC-RJ, me disseram: “Você tem que ser o secretário-executivo. Ele é um grande cientista político, mas precisa de alguém que entenda de tecnologia”. Me dei muito bem com ele, uma pessoa fantástica. Em abril de 1992 eu fui para o ministério. O Brasil trabalhava para fazer a Rio-92, a grande conferência ambiental. Ao mesmo tempo, o governo americano tinha proposto a criação do IAI [Inter-American Institute for Global Change Research] e queria que o Itamaraty promovesse um encontro no Rio. Não dava para fazer as duas coisas juntas. O Uruguai assumiu esse encargo e programaram a primeira reunião para Montevidéu. Fui escalado para participar da reunião. Eles formaram um comitê, do qual fiz parte de 1992 a 2002. Ali foi uma das possibilidades de aprendizagem de convergência disciplinar, porque as questões ambientais só se resolvem com pessoas de várias áreas do conhecimento e técnicas de observação da Terra.

Essa experiência foi útil quando o senhor implementou a área interdisciplinar na Capes?
O professor Abílio Baeta Neves, quando comandava a Capes, tinha recebido três ou quatro propostas que não se encaixavam em programa nenhum e me convidou para fazer a análise. Eu criei o comitê que analisou aqueles projetos e fiz a proposta de começar a área interdisciplinar. A primeira área que se destacou foi a de ciências ambientais. Quando eu fui para o IAI, ficou muito evidente que certos problemas emergentes na preservação do nosso mundo, da nossa sociedade, da vida na Terra exigiam soluções que não são possíveis de alcançar por só uma área do conhecimento. Você não pode tratar da parte biológica da Amazônia, por exemplo, sem saber como é o clima, porque isso afeta diretamente todas as questões ambientais. Por outro lado, há a presença dos indígenas na Amazônia. Como extrair daquele conhecimento, que é milenar, mas muito intuitivo, algo com maior rigor científico? Essa convergência é muito importante. Eu mesmo fui trabalhar em outra vertente, a de dinâmica populacional, com a expansão da malária.

Como foi sua experiência como diretor da Agência Espacial Brasileira?
O Brasil participava do projeto da Estação Espacial Internacional e tinha se comprometido a colocar US$ 60 milhões nesse projeto. Não tínhamos esse dinheiro. Logo na minha primeira semana lá, telefonou um dos diretores da Nasa me dando os parabéns e perguntando quanto nós íamos investir no projeto da estação. Eu disse: “US$ 2 milhões”. Sabe o que ele respondeu? “Pela primeira vez alguém me disse a verdade, porque só ouvia US$ 60 milhões, depois saía US$ 500 mil”. Ele propôs que, em vez de darmos dinheiro, fabricássemos certos equipamentos e partes da estação no Brasil e fornecêssemos para eles. Foi bom, porque estimulou a nossa indústria.

Na sua gestão houve a explosão do lançador de satélites na base de Alcântara, em 2004, que matou 21 pessoas. Como foi lidar com a tragédia?
Foi um choque tremendo. A Agência Espacial Brasileira não tem um corpo tecnocientífico, mas tem a responsabilidade de coordenar. Ela delega. O Centro Tecnológico da Aeronáutica [CTA] era o responsável pela execução desses lançadores. Eles trabalhavam com toda a dedicação. A minha proposta, após o acidente, foi transferir a execução do projeto para uma empresa especializada. Conversei com o pessoal do CTA e propus: “Vocês continuam fazendo o desenvolvimento científico e tecnológico de propulsores, de tipos de combustíveis, mas a execução de um projeto de grande porte é uma atividade industrial, vamos passar para uma empresa que tem experiência nisso”. Isso estava em discussão, mas houve problemas internos na agência, com o ministro da época, e eu saí. Não sei se a Aeronáutica aceitaria isso, mas ainda acho a melhor solução. Se bem que agora está muito difícil, porque nem temos mais a Base de Alcântara.

Como foi concebida a UFABC?
Em 1998, houve um evento em Angra dos Reis para discutir um projeto da universidade nos tempos modernos e ali se falou da necessidade de ampliar o diálogo interdisciplinar. Outro momento foi uma tentativa que fizemos na UFRJ com outros professores, com o Leopoldo de Meis [1938-2014], Antônio Paes de Carvalho, Moysés Nussenzveig, entre outros, de criar um bacharelado com duas etapas. Levamos isso ao reitor, mas o conselho universitário não estava disposto a discutir e eu desisti. O reitor na época era o Nelson Maculan. Ele gostava da ideia. Em 2014, o Maculan era o secretário de Educação Superior do MEC e me telefonou dizendo que o projeto de uma universidade federal no ABC deveria sair e era a hora de implementar aquelas ideias. Aceitei. Fizemos um comitê, que preparou o projeto de uma universidade sem departamentos, com três centros e um núcleo de cognição, porque me parecia que os processos cognitivos teriam cada vez mais influência nessas áreas científicas.

Faltam no setor empresarial ousadia e vontade de desempenhar um papel de protagonista no desenvolvimento tecnológico

Como a formação dos alunos foi estruturada?
Primeiro, três anos de bacharelado mais um ou dois para a formação profissional, dependendo da área. Segundo: os fios condutores não seriam mais física 1, 2, 3 e 4, mas sim matéria e energia, processos de informação e comunicação, humanidades, matemática e modelagem computacional. Eram essas as grandes linhas, sem departamentos. Começamos a contratar um considerável número de professores de excelente qualidade. Aliás, a UFABC é USP e Unicamp, porque 70% dos professores da UFABC vieram das duas instituições. Eu conversava com todos os candidatos: “Vocês vão encontrar uma universidade diferente”. Todos no início estavam de acordo, alguns se ressentiam depois. As maiores reações vieram de engenheiros. Eles são mais reacionários, mas depois foram absorvendo. Em uma avaliação da Clarivate Analytics, a UFABC aparece em primeiro lugar no país em termos de publicação e impacto científico. Uma avaliação da revista Nature classificou a UFABC em quinto. Não tem importância, as primeiras são USP, Unicamp, UFRN, UFRJ e depois a UFABC, fantástico. A contribuição para a ciência da UFABC é inegável, porque tem como demonstrar.

Mas houve dificuldades de implantação?
Os professores de cursinho diziam aos alunos: “Não vão para essa universidade, não vai funcionar”. E eles não se candidatavam para a UFABC. A imprensa dizia que aquilo era a UniLula, que era uma farsa. Nós demos um curso de atualização para professores de ensino médio e eles ficaram encantados com a UFABC. Aí mudou a visão dos cursinhos. E quando o jornal Folha de S.Paulo começou a implementar o modelo para avaliação de universidades em internacionalização, quem tirava sempre em primeiro lugar? A UFABC. Todos reconheceram que não era o que estavam pensando. Mas isso não resolveu todo o problema. Os estudantes que procuram a universidade não são aqueles com o melhor desempenho no ensino médio. Mas tem gente muito boa. A resposta das empresas que os contratam é a seguinte: “Conhecem bem o que fazem e, quando damos a eles problemas que não aprenderam, sabem onde procurar”. Essa vantagem de ter independência intelectual é muito boa.

E a formação do engenheiro, como deveria ser?
Acabei de participar de um novo projeto curricular que será apresentado pela Academia Nacional de Engenharia. O caminho é: uma formação básica forte, envolvendo os temas fundamentais para exercer a profissão e estar a par da evolução de vários setores do conhecimento, e depois uma formação específica. Na Universidade Harvard é assim: áreas fundamentais, três outras complementares e mais uma, que é matemática. Muita gente considera que essa formação é inadequada, para generalistas. Não vejo assim. Devemos pensar ao mesmo tempo na nossa formação como cidadãos e como profissionais. Também propomos que certas disciplinas de aplicação não sejam dadas por professores em dedicação exclusiva, mas por profissionais da indústria. Eu não posso dar uma disciplina de pontes estudando no livro. Para dar essa disciplina, é preciso ter projetado e construído pontes. Outro ponto é acabar com o Conselho Regional de Engenharia e Arquitetura [Crea] como ele é hoje. O Crea interfere nas disciplinas oferecidas. Tem que deixar a universidade fazer o que achar melhor. Mas, para ser engenheiro credenciado, tem que passar por um exame de ordem do Crea. Isso é legítimo. Você dá liberdade para a universidade funcionar como ela acha melhor para a formação do cidadão e do engenheiro, e dá liberdade aos conselhos profissionais para autorizar o exercício da profissão.

Os empresários também se preocupam com a formação dos engenheiros.
É verdade, mas falta ousadia no setor empresarial. Falta em nossas empresas a vontade de desempenhar um papel de protagonista no desenvolvimento tecnológico. O que se publica de patente hoje no Brasil é absolutamente ridículo.

ACI / UFABC Bevilacqua (à dir.) com o então reitor da UFABC Helio Waldman, em uma cerimônia na universidade em 2013ACI / UFABC

Qual é o seu vínculo com a Coppe nesse momento? Orienta alunos?
Eu tenho um pouco de escrúpulo, porque há tantos jovens professores que precisam de estudantes. Procuro auxiliar aqueles que estão orientando os estudantes. Me agrego a eles, colaboro. E com a China, porque eu tenho um ex-aluno chinês, Maosheng Jiang, que terminou em 2017 o seu doutorado e voltou para a China. Acabamos de ter dois trabalhos aceitos neste ano, mais duas contribuições que vão sair neste primeiro semestre.

E quais são seus interesses atuais?
Tenho me dedicado mais à pesquisa, coisa que sempre me encantou, mas que foi muito interrompida por outras atividades. Trabalho em dois temas com aplicações interessantes. Um é difusão com fluxos múltiplos, que serve para modelos de movimentos de populações, epidemias e de fluxo de capitais. Permite também avaliar como o seu salário se transforma em gastos e se você está ganhando ou perdendo. Outro tema está relacionado com a geometria de curvas, que podem representar por exemplo árvores ou vasos sanguíneos ou membranas biológicas. A vida acadêmica, a curiosidade, não termina nunca. Nunca envelhece.

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