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Luzes vivas

Mecanismo que faz cogumelos brilharem leva a método para detectar contaminação

Cassius Stevani/USPPleurotusgardneri: redescoberto no PiauíCassius Stevani/USP

No filme de animação Vida de inseto, toda a iluminação interna do formigueiro é feita com cogumelos luminosos. “Há um tanto de licença poética na criação”, comenta Cassius Stevani, do Instituto de Química da Universidade de São Paulo (USP), “mas na essência é verdade”. De fato existem cogumelos que emitem luz, ou bioluminescentes, e muitas formigas cultivam fungos em suas tocas – mas não desse tipo. Stevani está empenhado em entender o mecanismo químico que gera essa luminosidade e qual a sua função no organismo. No caminho já encontrou um uso prático: detectar contaminação por metais no solo.

Veja o vídeo com o Neonothopanus gardneri

Bastou meia década para Stevani e colegas descobrirem 12 espécies de fungos luminescentes no Brasil. Entre elas estão a amazônica Mycena lacrimans, encontrada por Ricardo Braga-Neto, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), e uma espécie parecida com um guarda-chuva invertido que nasce na base de palmeiras como a piaçava ou o babaçu, no Piauí. No mundo são 71 espécies, de acordo com um artigo de revisão feito por Stevani em colaboração com o biólogo norte-americano Dennis Desjardin, da Universidade Estadual de São Francisco, na Califórnia, que em março estampará a capa da revista Mycologia. “Deve haver muito mais espécies por descobrir”, imagina o químico, “ainda não descritas porque são difíceis de encontrar; pouca gente anda sem lanterna pela mata em noites sem luar”.

Até 2002 não se tinha notícia de fungos bioluminescentes no Brasil. Ou melhor, havia uma espécie, descrita no século XIX pelo britânico George Gardner com o nome científico Agaricus phosphorescens (mais tarde rebatizada como Pleurotus gardneri), mas hoje os especialistas em fungos questionam essa classificação, baseada em espécies semelhantes na Europa. E ficava difícil corrigir o erro porque a única amostra preservada está num herbário na Inglaterra.

Um cogumelo que parece ser da mesma espécie foi recentemente encontrado brilhando na base de uma palmeira-piaçava pela primatóloga norte-americana Dorothy Fragaszy, que terminava a jornada de perseguição aos macacos mais tarde do que o habitual no Piauí. Fascinada, ela mostrou as fotos a um conterrâneo do Jardim Botânico de Nova York, que entrou em contato com Dennis Desjardin, considerado um dos maiores especialistas na identificação desses organismos. Este, por sua vez, avisou Stevani. Bastou ao brasileiro uma pesquisa na internet para descobrir que Dorothy estava no Brasil para um trabalho em colaboração com a primatóloga Patrícia Izar, do Instituto de Psicologia da USP – que ele imediatamente procurou em busca da pista do cogumelo. É uma dessas histórias de acaso, em que informações precisam correr o mundo antes de chegarem quase ao mesmo lugar.

Deu certo: o dono da propriedade onde Dorothy e Patrícia trabalhavam, Marino Gomes de Oliveira, secou ao sol e mandou a Stevani 4 quilogramas do cogumelo brilhante. Agora os pesquisadores estão perto de corrigir a identificação, com o exame detalhado dos cogumelos pelos micólogos (especialistas em fungos) Marina Capelari, do Instituto de Botânica de São Paulo, e Desjardin. Ele tem se dedicado a explorar florestas pouco conhecidas pelo mundo afora, inclusive no Brasil, e diz que os esforços inéditos de seu grupo têm sido responsáveis por muitas descobertas. “Recentemente liderei uma expedição para uma ilha na Micronésia, no oceano Pacífico, onde os cogumelos nunca tinham sido documentados; das 128 espécies que encontramos, sete eram luminescentes”, conta, deixando claro que os fungos brilhantes são minoria.

O Brasil é promissor por-que tem uma imensa área de floresta cujos fungos ainda não foram estudados, diz Desjardin. “Sabemos muito pouco sobre os cogumelos do Brasil, então esperamos encontrar muitas novas espécies, luminescentes ou não.” Ele explica também que, para encontrar fungos lumi-nosos, é preciso pensar nisso. A maior parte dos micólogos que estudam diversidade de fungos descreve os cogumelos durante o dia (quando eles também emitem luz, mas o pesquisador não enxerga) e os seca imediatamente para preservação; é preciso examiná-los primeiro no escuro para determinar se há luminescência e só depois secar. “Por isso, especulo que vários dos fungos tropicais raros sejam luminescentes, mas não percebemos ainda.”

Apesar de ainda pouco conhecidos, há muito tempo que se tem notícia de cogumelos luminosos. Aristóteles, o filósofo da Grécia Antiga, foi o primeiro a relatar o fenômeno há mais de dois milênios, quando descreveu o brilho vivo e determinou que era diferente do fogo. Mas os estudos científicos sobre esse fenômeno só tiveram início nos anos 1950 e apenas agora começam a contribuir para a compreensão da bioluminescência nesses organismos especialistas em decompor madeira e outros tipos de matéria orgânica.

Rodrigo BaleiaMycena fera: cogumelos brilham o tempo todo, mas só são vistos no escuroRodrigo Baleia

Sinalização
O interesse de Stevani pelos fungos brotou de seu trabalho anterior com vagalumes e outros insetos. Em 2002, durante uma viagem para coleta de material com Etelvino Bechara, renomado especialista em bioluminescência de vagalumes, agora na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), ele aproveitou para procurar os cogumelos de que Bechara lhe tinha falado. E encontrou: enquanto fixava os olhos na escuridão de uma área de vegetação úmida próxima a uma cachoeira em meio ao Cerrado em Mato Grosso do Sul, ali estava uma luz verde diferente – constante, ao contrário do pisca-pisca dos vagalumes.

Eram cogumelos, e deram origem ao projeto que o pesquisador da USP desenvolveu a partir de 2002 com auxílio da FAPESP no programa Jovem Pesquisador. Antes mesmo de o trabalho começar, os fungos luminosos deram prova de não serem restritos ao Mato Grosso do Sul. Durante trabalho de campo no Parque Estadual Turístico do Alto Ribeira (Petar), no sul do estado de São Paulo, o ecólogo João Godoy, agora professor na Faculdade de Engenharia São Paulo, foi guiado por seu mateiro até um fungo luminoso. Surpreso, avisou o amigo químico, que assim pôde concentrar suas atividades de campo no Petar, mais perto de seu laboratório.

Algumas dessas espécies estão ajudando a desvendar as minúcias da bioluminescência de fungos, e para isso Stevani conta com a ajuda de três doutorandos financiados pela FAPESP. Por meio de exaustivos ensaios químicos, o doutorando Anderson Oliveira analisou três espécies da Mata Atlântica do Petar – Gerronema viridilucens, Mycena lucentipes e Mycena luxaeterna –, além do fungo “Pleurotus” gardneri, encontrado numa região de Cerrado no município piauiense de Gilbués. Os resultados mostram, em artigo publicado em 2009 na Photochemical & Photobiological Sciences, que o mecanismo de produção de luz é semelhante ao que se observa nos vagalumes e nas bactérias bioluminescentes: enzimas chamadas luciferases oxidam uma substância – ou substrato, como os químicos preferem chamar – conhecida como luciferina, liberando energia na forma de luz.

Oliveira usou o que há de mais moderno nos laboratórios de química, mas a base do ensaio para caracterizar a rea-ção enzimática foi descoberta há mais de um século. Em 1885, o fisiologista francês Raphaël Dubois esmagou os órgãos luminosos do vagalume Pyrophorus e misturou com água fria. A solução emitiu um brilho verde, que aos poucos se evanesceu. Era a luciferina sendo consumida pela reação química, ele concluiu. Em seguida, Dubois aqueceu uma solução semelhante, desintegrando as enzimas presentes, sensíveis ao calor. Ao misturar as duas soluções – a fria, onde sobravam as enzimas já sem luciferina, e a quente, que continha só a luciferina –, ele viu a mistura emitir luz. Essa história está no livro Bioluminescence, publicado em 2006 pelo farmacêutico japonês Osamu Shimomura, pesquisador do Laboratório Biológico Marinho em Woods Hole, nos Estados Unidos.

Shimomura ganhou o Prêmio Nobel de Química em 2008 justamente por seus estudos com bioluminescência: ele isolou em águas-vivas a proteína fluorescente verde (GFP), que acusa a atividade de genes específicos quando acoplada ao DNA de um organismo estudado em laboratório. A proteína luminosa se tornou essencial em muitos laboratórios de genética, aspiração que não está longe da mente de Stevani, visto que os mecanismos de bioluminescência são semelhantes, mesmo entre organismos muito diferentes.

Isso não quer dizer, porém, que a composição química da luciferina e a da luciferase seja semelhantes em insetos e fungos. “Luciferina é o nome que damos a qualquer substrato que dê origem à bioluminescência, mas as luciferinas de organismos distintos podem ser moléculas completamente diferentes”, explica Stevani. Todos os fungos já estudados por seu grupo, porém, brilham por meio dos mesmos substratos e das mesmas enzimas, sugerindo uma origem comum para todos. Mas nem todos os fungos bioluminescentes são parentes próximos, alerta Desjardin. “Hoje sabemos que há quatro linhagens de fungos com espécies bioluminescentes, mas elas nem sempre têm parentesco próximo entre si”, conta. “Algumas espécies brilhantes de Mycena são mais aparentadas a espécies sem brilho do que com outras brilhantes do mesmo gênero.”

O grupo da USP está agora à caça da estrutura da molécula que faz com que minúsculos cogumelos, às vezes com 0,5 centímetro de circunferência, se assemelhem a adesivos star fix colados ao tronco de uma árvore ou como que semeados em meio ao folhedo que recobre o chão da floresta. Ao contrário dos fungos, que produzem a própria luz, star fix são adesivos fosforescentes que armazenam a luz ambiente e por isso brilham à noite, criando constelações nos quartos de crianças de todas as idades. Por enquanto, Oliveira conseguiu separar do extrato de fungo uma solução contendo a luciferina – ela brilha quando misturada a uma solução enzimática. Mas a substância deve estar em concentração muito baixa, porque o químico Antonio Gilberto Ferreira, da Universidade Federal de São Carlos (Ufscar), não conseguiu detectá-la por ressonância magnética nuclear de prótons. “É preciso extrair uma quantidade maior ou empregar um equipamento mais sensível”, planeja Stevani.

O químico da USP embarcou nessa empreitada por pura curiosidade científica, mas considera essencial encontrar usos práticos que tragam benefícios para outros pesquisadores e para a sociedade. Parece estar no caminho certo: o brilho dos fungos Gerronema viridilucens pode ajudar a detectar altos níveis de contaminação no solo por metais de vários tipos, como mostrou Luiz Fernando Mendes, outro doutorando de Stevani, em artigo no prelo na Environmental Toxicology and Chemistry.

Cassius Stevani/USPGalhos recobertos por hifas invisíveis à luz do diaCassius Stevani/USP

Sensores biológicos
Mendes cultiva o fungo em placas de vidro com 35 milímetros de diâmetro, sobre uma gelatina à base de algas conhecida como ágar, o meio de cultura mais comum em laboratórios biológicos. Depois de crescer 10 dias, os fungos ainda não chegaram à forma de cogumelo. Nessa fase eles são compostos por filamentos microscópicos, as hifas, que representam a maior parte do ciclo de vida de qualquer fungo e, em algumas espécies, também produzem o brilho verde. O pesquisador mede a luminosidade emitida por cada uma dessas placas e deposita ali uma pequena amostra de extrato de solo a ser analisado. Depois de 24 horas numa câmara climática, o fungo passa a emitir menos luz caso a amostra esteja contaminada, o que os químicos interpretam como uma forma de dano ao organismo.

Mendes obteve gráficos que representam a intensidade da luz emitida na presença de diferentes concentrações de 11 metais diferentes – cálcio, sódio, magnésio, cádmio, cobalto, manganês, potássio, lítio, zinco, cobre e níquel – e indicam a toxicidade da amostra analisada. O trabalho já rendeu uma patente registrada no Brasil sobre o uso dos fungos em ensaios de toxicidade ambiental. Basta medir a intensidade de luz que emana do fungo para estimar quanto desses metais está numa forma que pode ser absorvida e utilizada pelos seres vivos. “Não se trata de medir a concentração total das substâncias químicas, isso não teria significado biológico nem utilidade prática”, ressalta Stevani. O problema é que Gerronema viridilucens é pouco sensível, talvez exatamente porque vive no solo e está adaptado mesmo a condições adversas. “O que importa é que o bioensaio funciona, agora é preciso encontrar espécies mais sensíveis que possam ser testadas da mesma maneira”, afirma o químico.

Estratégias
Por consumir oxigênio em suas reações químicas, a bioluminescência poderia desempenhar um papel antioxidante que protegeria os fungos e outros organismos, até mesmo os vagalumes, de espécies reativas produzidas a partir do oxigênio consumido na respiração. Essa proteção do organismo é uma possibilidade para explicar os benefícios de se brilhar em meio à mata. Mas quando é preciso pegar em armas contra um estresse oxidativo intenso, o grupo de Stevani mostrou que o organismo dos fungos privilegia reações mais especializadas em cumprir essa função e desliga a luminescência. É o que indica o trabalho ainda não publicado de Olívia Domingues, também aluna de doutorado de Stevani. Ela verificou que na presença de metais em concentrações elevadas as células dão preferência a usar a coenzima NADPH para produção de glutationa reduzida, que evita a ação deletéria dos metais. Como a glutationa reduzida compete por recursos com as enzimas que produzem a luminescência, o fungo aos poucos se apaga. É por isso que os fungos do bioensaio de Mendes perdem a luminosidade em solo contaminado por metais.

Os resultados de Olívia ajudam a explicar por que os fungos bioluminescentes servem como bioensaio de toxicidade, mas não elucidam qual seria o benefício para o fungo de emitir o brilho esverdeado. Stevani aposta em hipóteses ecológicas, mostrando fotografias de moscas pousadas em cogumelos. Como uma lâmpada em torno da qual voejam insetos diversos, o brilho verde talvez ajude a atrair insetos. Pode parecer que não é vantagem anunciar sua presença aos famintos de plantão, mas a função dos cogumelos no ciclo de vida dos fungos é efêmera, como os frutos das árvores: quando um animal come parte do cogumelo, leva junto esporos, as estruturas microscópicas que vão gerar novos fungos se forem depositados em locais propícios. Ou talvez a luz seja um aviso de perigo, no caso de cogumelos tóxicos, como acontece com animais venenosos de cores vibrantes. “O que não é provável é que a bioluminescência de fungos tenha evoluído para iluminar formigueiros ou servir como sinalização de voo, como em Vida de inseto”, brinca.

As descobertas do químico deixam claro que muitos mistérios continuarão perdidos entre as folhagens enquanto mais biólogos e químicos não resolverem apagar as lanternas e contemplar a escuridão da floresta, por vezes salpicada de verde.

Os projetos
1. Estudo da bioluminescência de fungos e suas aplicações em química ambiental (nº 2006/53628-3); Modalidade Auxílio Regular a Projeto de Pesquisa; Coordenador Cassius Stevani – IQ/USP; Investimento R$ 328.413,09.
2. Bioluminescência e atividade farmacológica de cogumelos (nº 2001/04753-6); Modalidade Jovem Pesquisador; Coordenador Cassius Stevani – IQ/USP; Investimento R$ 457.741,18

Artigos científicos
DESJARDIN, D. et al. Luminescent Mycena: new and noteworthy species. Mycologia. no prelo.
MENDES, L.F. STEVANI, C.V. Evaluation of metal toxicity by a modified method based on the fungus Gerronema viridilucens bioluminescence in agar medium. Environmental Toxicology and Chemistry. v. 29, p. 320-26. 2010.
OLIVEIRA, A.G. e STEVANI, C.V. The enzymatic nature of fungal bioluminescence. Photochemical & Photobiological Sciences. v. 8, p. 1.416-21. Out. 2009.

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