O aumento das fronteiras no mundo da microeletrônica é constante. Trabalha-se muito em todo o mundo para o desenvolvimento de memórias eletrônicas cada vez mais potentes, capazes de armazenar e processar mais informações. No Brasil, não é diferente. Pesquisas recém-finalizadas mostram um novo método de obtenção de filme ferroelétrico, um componente que ganha espaço na produção de memórias de computadores e de capacitores – armazenadores de energia – de aparelhos eletrônicos.
A novidade parte de dois grupos de pesquisadores. Um liderado pelo professor José Arana Varela, do Laboratório Interdisciplinar de Eletroquímica e Cerâmica (LIEC) da Universidade Estadual Paulista (Unesp), em Araraquara, e o outro sob a coordenação do professor Elson Longo, do laboratório também chamado de LIEC, da Universidade Federal de São Carlos. Eles estão finalizando o projeto temático Desenvolvimento de Cerâmicas e Filmes Ferroelétricos através do Controle da Microestrutura.
A pesquisa recebeu financiamento da Fapesp, com valores de R$ 88,7 mil e US$ 438,4 mil que foram utilizados, principalmente, na compra de equipamentos importados, durante os quatro anos do projeto. Participaram dos estudos 40 pesquisadores, entre docentes e alunos de iniciação científica, mestrado, doutorado e pós-doutorado. Essa equipe obteve resultados que permitiram até agora, a produção de 45 artigos que foram publicados em revistas especializadas internacionais.
Ácido cítrico
Com resultados melhores que os esperados inicialmente, os trabalhos resultaram em um filme produzido, de forma inédita, com solução orgânica de ácido cítrico, presente em frutas como laranja e limão, sobre substratos (material de suporte) monocristalinos, compostos de silício ou safira, por exemplo. Esses filmes também poderão ser aplicados em guias de ondas, artefatos ainda estudados em laboratório, que conduzem energia elétrica sob a forma de ondas luminosas, de forma semelhante e mais eficiente que as fibras ópticas utilizadas em telefonia.
Entende-se por filme, aqui, qualquer película muito fina que separa duas fases de um sistema, ou forma a própria interface dessa separação. Eles originam-se entre dois líquidos, como acontece entre a água e o óleo, entre um líquido e um vapor ou na superfície dos sólidos. As pesquisas na área de filmes finos sólidos – com espessura menor que um micrometro (milionésima parte do metro) – crescem de forma significativa devido às vantagens desse material, principalmente, na miniaturização de equipamentos eletrônicos.
A confecção de filmes ferroelétricos mais eficientes e baratos ganha importância porque eles garantem maior capacidade de memória e são candidatos a substituir as atuais memórias dos computadores, formadas por materiais ferromagnéticos. “No futuro, as memórias ferroelétricas serão as mais utilizadas”, afirma o professor Varela. A ferroeletricidade é um fenômeno apresentado por alguns cristais, como o titanato de bário. Esses materiais possuem dois centros de cargas elétricas com sinais opostos – chamados dipolos – separados por uma pequena distância. Esses dipolos podem ser direcionados por meio de um campo elétrico aplicado ao material (processo chamado de polarização), permitindo o arquivo de sinais eletrônicos.
Bilhões de ciclos
As memórias ferroelétricas de acesso aleatório, as FeRAMs, têm características não voláteis, ou seja, uma vez removida a energia, a informação continua armazenada. O problema é que elas perdem a polarização com o tempo de uso (número de ciclos). Essa dificuldade, denominada fadiga ferroelétrica, é causada por vários fatores, incluindo a composição do filme e a reação deste com os eletrodos, material que cobre e faz as interconexões de um sistema.
Nesse sentido, os resultados obtidos no LIEC no processamento de filmes finos ferroelétricos de titanato de bário e de tantalato de bismuto e estrôncio são bastante animadores. Esses filmes, produzidos com soluções de ácido cítrico, depositados em substratos de silício recobertos com eletrodos de platina, apresentam fadiga ferroelétrica desprezível após 10 bilhões de ciclos, valor de referência mínima para testes de vida útil de memórias de computadores.
O salto qualitativo nas pesquisas realizadas pelas equipes dos professores Varela e Longo foi dado com a produção de filmes muito finos (de 0,4 a 1 micrometro) com a otimização de processos convencionais utilizando um ácido tão simples e barato como o ácido cítrico. Além de simplificar o processo, o ácido cítrico é facilmente dissolvido em água, solubilizando sais inorgânicos de baixo custo contendo características químicas necessárias para o processamento do material desejado. O processo, denominado de precursores poliméricos, substitui com vantagens o processo convencional, chamado de sol-gel, que requer sais caros e importados, além de necessitar de uma manipulação em laboratório mais complexa.
O primeiro passo do trabalho dos pesquisadores foi atingir a produção das cerâmicas com as características ferroelétricas. Elas têm a mesma composição dos filmes, porém possuem tamanhos bem maiores, tornando-se mais aptas aos experimentos que essas películas microscópicas. A rota do processo de obtenção dos filmes inicia-se com a produção de resinas contendo um metal, como titânio ou bário, que forma uma reação química com ácido cítrico e álcool, resultando em uma solução polimérica.
Essa solução pode ser utilizada tanto para produzir pó cerâmico como para obter filmes finos. Para atingir esse segundo objetivo, mergulha-se o substrato nessa solução, obtendo-se filmes precursores que, em seguida, passam por tratamento térmico – queima -, resultando num filme cristalino e denso com características ferroelétricas. A morfologia da superfície desses filmes deve ter características como homogeneidade e baixa rugosidade.
Dopagem metálica
Obter uma cerâmica ou filme padrão, no entanto, não resolve definitivamente as necessidades tecnológicas. É preciso que o material processado seja reprodutível, ou seja, que os lotes de materiais não apresentem discrepâncias em propriedades elétricas uns em relação aos outros, avalia Varela. Daí uma razão adicional para o controle rígido da microestrutura da cerâmica ou do filme. Esse controle é estratégico para se conseguir os resultados reprodutíveis, pois as propriedades elétricas desses materiais são dependentes do tamanho de grãos, distribuição de fases, etc. Quando necessário, para otimizar as propriedades elétricas, os físicos e químicos envolvidos nesse tipo de trabalho recorrem a estratégias de “dopagem”, com a adição de elementos químicos diferentes da composição da cerâmica.
Isolantes
Os materiais cerâmicos ferroelétricos contendo chumbo são, atualmente, os mais estudados. A razão disso, segundo Varela, é que esses compostos têm alta constante dielétrica. Dielétricos são substâncias incapazes de conduzir ou que conduzem muito mal uma corrente elétrica. Ao contrário do que acontece num condutor, onde a corrente elétrica flui com facilidade, num dielétrico não existem portadores de carga capazes de se deslocar sob ação de um campo elétrico externo. Os dielétricos são isolantes e só deixam passar carga elétrica sob a forma de uma descarga, quando sua rigidez dielétrica é superada. Esses materiais apresentam inúmeras aplicações na indústria eletrônica, especialmente na microeletrônica, como em capacitores, componentes constituídos por dois ou mais condutores separados por dielétricos.
Um dos desafios na construção de capacitores para memórias de acesso dinâmico (DRAM na abreviatura em inglês), para utilização em microeletrônica, é obter filmes extremamente finos – menores que 0,04 micrometro e com baixíssima corrente de fuga. As DRAMs armazenam informações em circuitos integrados que contêm capacitores. Segundo o professor Varela, nas pesquisas realizadas em Araraquara e São Carlos, em filmes constituídos com os metais bário, bismuto e tantálio, foi possível obter características elétricas que demonstraram a utilidade e o grande potencial desses componentes para uso como memória DRAM, e em memórias RAM, de computadores.
Mercado amplo
Uma dessas aplicações está ligada às memórias de acesso dinâmico. Na avaliação dos pesquisadores dos LIECs, praticamente todos os objetivos específicos da pesquisa foram atingidos nesses quatro anos de trabalho. Especialmente os relacionados à síntese das cerâmicas. Segundo o professor Varela, em todos os casos foi possível relacionar a microestrutura com as propriedades elétricas observadas. Todos os filmes considerados tiveram sua cristalização estudada, permitindo a maximização das propriedades desejadas. Além disso, as pesquisas envolveram ainda a determinação teórica da natureza de polarização dos materiais ferroelétricos por meio de cálculos quânticos.
As pesquisas permitiram ainda o estudo sistemático do processamento de cerâmicas ferroelétricas visando ao controle microestrutural desse material. Foi possível relacionar as propriedades elétricas com a microestrutura desenvolvida na cerâmica e filmes ferroelétricos depositados em substratos monocristalinos. As aplicações para filmes finos como os desenvolvidos pelo LIEC têm um mercado atual estimado em bilhões de dólares, avalia o professor Varela.
Embora ainda não tenha indústria produtora desse tipo de componente eletrônico, o Brasil desenvolve conhecimentos e prepara recursos humanos da mesma forma que muitos países que pesquisam tecnologias avançadas no campo da microeletrônica e da computação, como mostraram os estudos desse projeto temático.
Perfis
José Arana Varela graduou-se no Instituto de Física da USP. Fez mestrado no Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), em São José dos Campos, doutorado na Universidade de Washington e pós-doutorado na Universidade da Pensilvânia, ambas nos Estados Unidos. É professor do Instituto de Química da Unesp, em Araraquara.
Elson Longo é formado em Química pelo Instituto de Química de Araraquara (Unesp). Fez mestrado e doutorado no Instituto de Química (USP) de São Carlos. É professor do Departamento de Química da UFSCar.
Projeto
Desenvolvimento de Cerâmicas e Filmes Ferroelétricos através do Controle da Microestrutura
Investimento
R$ 88.700 mais US$ 438.437,50