O Brasil pode aumentar em 3% a produção nacional de energia elétrica, sem grandes obras de engenharia ou problemas para o meio ambiente, como o alagamento dos vales de rios. Parece pouco? Esses 3% correspondem à produção média de uma usina de 2 mil megawatts, mais do que gera a usina de Porto Primavera, inaugurada em fevereiro no Rio Paraná. Ou ao consumo de 7,3 milhões de consumidores residenciais de classe média. Pois saiba: esse aumento muito necessário de produção pode vir de uma simples mudança de conceito. Trabalhando num projeto temático financiado pela FAPESP, uma equipe coordenada pelo professor Secundino Soares Filho, da Faculdade de Engenharia Elétrica e de Computação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), desenvolveu um programa de computador que promete esse aumento de produção e ainda mais.
Ainda não se fez, por exemplo, um cálculo preciso das economias resultantes da aplicação do projeto. Mas elas podem ser significativas. A base do projeto está numa mudança de conceito. O Brasil tira 95% da energia elétrica que consome das usinas hidrelétricas. Mas a quantidade de água existente nas represas que alimentam essas usinas segue o curso da Natureza, aumentando ou diminuindo de volume conforme as chuvas e o fluxo dos afluentes dos grandes rios. O que a equipe do professor Soares sugere é a coordenação dessas águas. As represas perto das cabeceiras dos rios controlariam o fluxo da água de maneira que as situadas mais adiante, perto da foz, ficariam sempre cheias. Com reservatórios mais cheios, essas usinas poderiam produzir mais energia. Ou seja, trata-se de uma questão de gerenciamento.
Há ainda um fator estratégico. “O gerenciamento mais cuidadoso dos reservatórios contribuiria para reduzir o risco de racionamento de energia, previsto para os próximos anos, se os investimentos no setor continuarem a ser postergados”, lembra o pesquisador. Para atender a um crescimento médio no consumo de 5% ao ano, serão necessários investimentos de US$ 8 bilhões por ano, até 2007. A proposta da equipe da Unicamp levaria a um aumento de produção equivalente a investimentos de US$ 3,6 bilhões em novas usinas e linhas de transmissão, reduzindo a necessidade de novas obras.
Tecnologia própria
A tecnologia nesse campo tem, quase que obrigatoriamente, de ser desenvolvida no Brasil. “Não é uma área em que se possa basear exclusivamente em tecnologia externa”, afirma o professor Soares. O país, dependente em 95% da energia hidrelétrica, é um caso raro no mundo. Em quase todos os lugares, a eletricidade vem principalmente de usinas termelétricas, funcionando a petróleo, gás ou carvão e, em alguns casos, como na França, de usinas atômicas. Numa usina termelétrica, é relativamente fácil relacionar o combustível e a geração de energia. Calcula-se quanto a usina vai consumir, encomenda-se o combustível necessário e o problema está resolvido. Não é o que acontece com a energia hidrelétrica.
O volume de água que chega à usina varia bastante ao longo do ano e pode oscilar muito, inclusive de um ano para outro. Isso faz com que os responsáveis pelas usinas sejam extremamente cautelosos. Se a usina gastar toda a água que tem agora para produzir o máximo de energia, pode vir uma seca daqui a pouco e a represa não terá água para atender ao consumo. “Se, por outro lado”, comenta o pesquisador, “se guardar a água e vier uma cheia, a energia hidráulica que poderia ter sido usada para gerar eletricidade será desperdiçada.”
Atualmente, o planejamento do uso da água é feito a longo, médio e curto prazos pela Centrais Elétricas Brasileiras S. A. – Eletrobrás, a holding do governo federal que cuida do setor. A Eletrobrás controla as empresas federais de geração de energia, como a Furnas Centrais Elétricas, a Companhia Hidro-Elétrica do São Francisco (CHESF) e a Centrais Elétricas do Norte do Brasil (Eletronorte). Além disso, tem participações acionárias nas empresas estaduais de geração de energia elétrica, como a CESP, em São Paulo, e a Copel, no Paraná.
O planejamento de longo prazo traçado pela Eletrobrás tem caráter estratégico e trabalha com estimativas de produção para os cinco anos seguintes. A análise de médio prazo, com uma abordagem tática, enfoca o comportamento do sistema cinco semanas à frente. Já o estudo de curto prazo, essencialmente operacional, estabelece o modo de operação das usinas na semana ou mesmo no dia seguinte. “O Brasil não está atrasado nessa área, mas nem sempre as questões técnicas prevalecem”, observa o pesquisador da Unicamp. As usinas brasileiras, lembra ele, funcionam de modo homogêneo, de acordo com a regra de operação “paralela”, como um único e imenso pulmão. Todas se esvaziam juntas na época de menos chuva, geralmente entre maio e outubro, no Sudeste, e se enchem juntas na época da cheia, entre novembro e abril.
Apoio da Fapesp
A idéia do professor Soares é romper com essa uniformidade no tratamento das usinas e criar novos métodos para otimizar o aproveitamento da água. Essa é a base do projeto temático, Planejamento da Operação de Sistemas de Energia Elétrica Predominantemente Hidrelétricos , que ele coordenou. Esse trabalho, de quatro anos, contou com um apoio financeiro da FAPESP no valor de R$ 250 mil para cada um dos dois períodos em que foi dividido, empregados sobretudo na aquisição de estações de trabalho, microcomputadores e outros equipamentos de informática. O laboratório com os equipamentos encontra-se na Faculdade de Engenharia Elétrica da Unicamp, mas a pesquisa também teve a colaboração de pesquisadores da Faculdade de Engenharia Civil da Unicamp e da Escola de Engenharia e do Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação da Universidade de São Paulo (USP) em São Carlos.
Em conjunto, os especialistas criaram, testaram e aprimoraram o chamado Sistema de Apoio ao Planejamento Estratégico (Sape), um programa que permite planejar aoperação das usinas a longo, médio e curto prazos. Ele está em uso já há dois anos, pelos pesquisadores e por engenheiros de empresas do setor elétrico que passam por cursos de aperfeiçoamento no laboratório da Unicamp. O Sape trata cada hidrelétrica individualmente, de acordo com uma regra de operação não paralela, e não de modo homogêneo, como nos programas adotados pela Eletrobrás.
Assim, em épocas de seca ou de cheia, as usinas em cascata, ou situadas no mesmo rio, não enchem e esvaziam seus reservatórios ao mesmo tempo, mas da melhor maneira possível para o conjunto.As implicações são mais diretas para as chamadas usinas de montante, situadas mais próximas das nascentes dos rios, como Emborcação, no Rio Paranaíba, na divisa dos Estados de Minas Gerais e de Goiás, ou Furnas, no Rio Grande, perto da fronteira entre São Paulo e Minas. No projeto, seus reservatórios trabalham mais do que os das usinas de jusante, mais próximas da foz,para regular a vazão do rio.
Continuam a produzir energia, mas ao longo do ano permanecem com o reservatório menos cheio do que as outras. Como controlam a vazão da água, mantêm cheios os reservatórios das usinas de jusante, que podem assim produzir energia elétrica com mais eficiência. Vale lembrar: quanto mais cheio o reservatório, maior a energia produzida para um mesmo volume de água que passa pelas turbinas, pois, quanto maior a queda da usina, maior a pressão da coluna de água sobre as turbinas.
Montante e jusante
A equipe da Unicamp sabe que não será fácil transformar a idéia em realidade. “A melhor solução para o conjunto nem sempre é melhor para as partes, pois pode favorecer uma usina e prejudicar outra”, diz ele. A Furnas Centrais Elétricas, por exemplo, que possui mais usinas de montante, de acordo com as regras da Unicamp produziria menos, para beneficiar as usinas da Cesp, predominantemente de jusante. Mas, como diz o professor Soares, “com o modelo em vigor, as usinas de montante, as de jusante e o próprio país estão perdendo”. Ele acredita que as novas idéias possam ser mais bem recebidas conforme for avançando o processo de privatização das empresas de geração de energia elétrica, já em andamento.
Um dos marcos das transformações institucionais do setor elétrico ocorreu em março, duas semanas antes do apagão que deixou às escuras mais da metade do país, quando a Eletrobrás transferiu a coordenação nacional do setor para uma empresa privada, a Operadora Nacional do Sistema (ONS), formada pelas companhias estatais e particulares do setor elétrico. A essa coordenação nacional, que estabelece as diretrizes sobre as formas de operação das usinas, com ênfase na eficiência do aproveitamento dos recursos hídricos e energéticos, caberia também compartilhar os ga-nhos gerados com a nova regra da Unicamp, equilibrando os ganhos e as perdas das usinas de modo a compensar o prejuízo de operadoras isoladas que proporcionaram o benefício coletivo.
Perfil
O professor Secundino Soares Filho, 49 anos, é engenheiro mecânico, graduado pelo Instituto Tecnológico da Aeronáutica em 1972. Fez mestrado e doutoramento na área de Engenharia Elétrica na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e pós-doutoramento em sistemas de potência na Universidade McGill, no Canadá, em 1989 e 1990. É professor titular e chefe do departamento de Engenharia de Sistemas da Faculdade de Engenharia Elétrica e de Computação da Unicamp.
Otimização na tela
Uma das telas iniciais do Sape mostra um esquema com o conjunto das usinas hidrelétricas brasileiras em seus respectivos rios. Fica claro, assim, que no Rio Grande, por exemplo, há dez usinas seguidas. Cada uma interfere uma no comportamento da outra. Cada usina possui uma base de dados, que incluem suas características físicas, o potencial de produção de energia e o histórico das vazões mensais desde 1930. É possível selecionar uma, duas ou até mesmo todas as usinas mostradas no esquema inicial e a seguir solicitar ao programa a forma ótima de operação de cada uma delas.
Essas informações abastecem o módulo de otimização do Sape, que elabora elaboração de uma nova versão de um simulador, que ele pretende concluir em dois anos, capaz de comparar os diversos modelos propostos para o sistema brasileiro. Por enquanto, os programas da Eletrobrás e os da Unicamp não conversam entre si. “Aí, sim, vamos poder confirmar o quanto a nossa política de operação é a melhor”, diz Cicogna.
Aplicações imediatas
A pesquisa desenvolvida na Unicamp já ofereceu aplicações imediatas. O engenheiro elétrico Clóvis Tadeu Salmazo, que fez um curso de especialização no laboratório do professor Soares, aplicou os conhecimentos adquiridos no projeto na otimização da operação das turbinas das usinas da Copel, a empresa estadual de geração de eletricidade do Paraná, onde trabalha. Como parte da sua tese de mestrado, que concluiu em 1996, Salmazo analisou um dia de operação do sistema hidrelétrico paranaense, formado por três usinas hidrelétricas e 63 linhas de transmissão. Em seguida, refez a programação do funcionamento das turbinas, procurando reduzir as perdas de produção e de transmissão de energia.
Comparou os resultados obtidos na prática, de acordo com as metodologias convencionais da empresa, e verificou que seria possível obter um ganho de 2,5% no rendimento das turbinas. “Na prática, as expectativas de ganho de rendimento das turbinas se confirmaram”, diz Salmazo. O modelo, em uso há dois anos na Copel, teve outra vantagem, a redução dos gastos com manutenção das máquinas, segundo ele. A pesquisa de otimização das turbinas, premiada em 1995 no 13º Seminário Nacional de Produção e Transmissão de Energia Elétrica, realizado em Camboriú, no Estado de Santa Catarina, provoca um comentário do professor Soares. “As perdas no sistemas hidrelétricos são muito maiores na produção do que na transmissão da energia, mas o setor elétrico ainda não se deu conta disso”, afirma.
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