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AMBIENTE

Mais extenso derramamento de petróleo ocorrido no país causa forte impacto na biodiversidade marinha

Conclusão é de estudo baseado em 21 artigos científicos e relatórios oficiais sobre evento que aconteceu no litoral nordestino há quatro anos

Peixe capturado pelo óleo na areia da praia em Icapuí, no Ceará, próximo à fronteira com o Rio Grande do Norte

Emanuelle Rabelo / Ufersa e Marcelo Soares / UFC

Em outubro de 2019, quando soube que manchas de petróleo haviam chegado à costa cearense, dois meses depois de aparecerem na Paraíba, a bióloga Emanuelle Rabelo telefonou para pescadores artesanais da cidade de Icapuí. Estavam desesperados: quando as redes de pesca eram puxadas, vinha junto óleo escuro e espesso, em bolhas viscosas ou cobrindo os peixes e lagostas. Até março de 2020, manchas de óleo se espalharam por cerca de 2.900 quilômetros (km) do litoral brasileiro atingindo 11 estados, do Maranhão ao Rio de Janeiro, no mais extenso derramamento de óleo já registrado em águas tropicais. Segundo nota da Polícia Federal (PF), de novembro de 2021, os indícios apontam para um navio petroleiro de bandeira grega como o responsável pelo vazamento de estimados 5 milhões a 12 milhões de litros de petróleo (ver box).

Quatro anos depois, Rabelo contribuiu para a compilação do que se sabe sobre os danos causados à biodiversidade marinha e costeira. “Mesmo em curto prazo, há impactos que ficam bem visíveis. Foram afetados de corais e esponjas-do-mar até peixes, aves e tartarugas”, observa a pesquisadora da Universidade Federal Rural do Semiárido (Ufersa), em Mossoró, no Rio Grande do Norte, que ajudou a reunir esses dados em um artigo de revisão publicado em maio na revista científica Marine Environmental Research. Os dados se baseiam em 21 artigos revisados por pares e relatórios oficiais do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais (Ibama) publicados entre 2019 e 2022.

Entrevista: Emanuelle Rabelo
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De acordo com o levantamento, as manchas invadiram os hábitats de ao menos 35 espécies ameaçadas, entre tartarugas, peixes, aves migratórias e corais. Segundo apontado na revisão, o Ibama registrou, até março de 2020, 159 animais encobertos pelo óleo, dos quais 112 morreram. Também provocou mudanças comportamentais e no tamanho de peixes, alterações na proporção entre machos e fêmeas de crustáceos, redução de populações, contaminação de outros frutos do mar por hidrocarbonetos (compostos químicos formados apenas por átomos de carbono e de hidrogênio presentes no petróleo), entre outros efeitos (ver infográfico).

No período foram recolhidas na costa brasileira 5.379 toneladas de petróleo que atingiram ao menos 57 Unidades de Conservação costeiras e marinhas como parques e áreas de proteção ambiental. Apesar da extensão alcançada, algo que chamou a atenção dos pesquisadores foi que quatro estados receberam cerca de 98% do petróleo: Pernambuco, Alagoas, Bahia e Sergipe. “A concentração ocorreu devido a uma combinação de fatores que incluem a direção das correntes oceânicas que desembocam naquela região, o sentido dos ventos e a movimentação das marés”, diz o biólogo Marcelo Soares, do Instituto de Ciências do Mar (Labomar) da Universidade Federal do Ceará (UFC), primeiro autor da revisão. Essa região nordestina também concentrou 88% dos estudos abordados na revisão.

Ecossistemas afetados
O levantamento indicou que embora as manchas de óleo tenham chegado a pelo menos 10 ecossistemas, em uma área de 6.048,92 quilômetros quadrados (km2), até agora os estudos mapeados detectaram impactos relacionados ao petróleo em apenas metade deles. “Essa é uma das lacunas que encontramos: não foram avaliadas as consequências do óleo em todos os lugares aonde ele chegou”, diz Rabelo.

Alexandre Affonso/Revista Pesquisa FAPESP

Apesar de terem concentrado a maioria dos estudos, os recifes de coral somam apenas 55,64 km2 ou 0,9% da área total de ecossistemas atingidos pelo derramamento. Não é possível afirmar se eles e os manguezais de fato sofreram maior impacto ou se simplesmente foram os mais estudados.

Alguns fatores podem ajudar a explicar a concentração de análises nesses locais. Recifes e manguezais estão entre os ecossistemas marinhos mais ricos em biodiversidade, e mesmo uma quantidade pequena de óleo pode afetar a vida presente neles. “Some-se isso ao fato de que é difícil remover petróleo desses ambientes”, explica Soares. “Nos recifes, o óleo fica impregnado nas rochas; nas florestas de mangue, ele se deposita sobre a lama e se mistura ao sedimento, agindo por mais tempo. Pode ser que os animais que vivem ali estejam mais expostos.”

Populações
Foi nos recifes que um dos exemplos de modificação de populações apareceu (ver mais exemplos no infográfico acima). No grupo de animais mais estudado, os crustáceos (47,4%), uma das pesquisas mapeadas na revisão apontou a diminuição na proporção de fêmeas em populações do caranguejo Pachygrapsus transversus, que vivem em recifes de coral das praias de Gaibu e Carneiros, em Pernambuco, e de Pontal do Coruripe, em Alagoas, depois do vazamento.

Como as tocas foram encontradas bloqueadas pelo óleo, as principais hipóteses para explicar a redução é que elas podem ter ficado presas e morreram asfixiadas – geralmente as fêmeas dessa espécie passam mais tempo nos buracos do que os machos. Ou, ainda, não puderam voltar para seus abrigos entupidos de petróleo e acabaram expostas a predadores, ou fugiram para outras áreas.

Já nos recifes da praia pernambucana do Paiva, um dos mais bem preservados da costa brasileira, o óleo provocou a diminuição da população local de poliquetas, minhocas marinhas que vivem em simbiose com esponjas do gênero Cinachyrella e ajudam no fluxo de sedimentos marinhos. As esponjas tinham óleo em sua superfície e gotículas do material entre os grãos de areia acumulados dentro de seus canais; nos poliquetas Branchiosyllis foram registradas gotículas de óleo em sua superfície e faringes.

Contaminações
Em Salvador, na Bahia, um índice considerável de anomalias no desenvolvimento embrionário de larvas e ovos de peixes de 34 espécies foi observado em áreas afetadas pelo petróleo. Se antes as larvas tinham 5 milímetros (mm) em média, cerca de um ano depois do acidente estavam entre 1 e 3 mm. As larvas tinham deformidades na coluna e edemas na bolsa de nutrientes que auxilia na alimentação do embrião, o saco vitelínico, indicando intoxicação por hidrocarbonetos.

Entre os moluscos, o segundo grupo mais pesquisado (31,6%) no mapeamento, foram detectadas contaminações relativamente altas em 45 amostras de frutos do mar pescados na região afetada pelo óleo, especialmente para a ostra-japonesa (Crassostrea gigas) e o mexilhão-castanho (Perna perna), além de peixes, lagostas e polvos, principalmente por substâncias como benzoantraceno, benzopireno e benzofluoranteno, compostos químicos pertencentes à classe dos hidrocarbonetos policíclicos aromáticos (HPAs). Apesar de consideradas elevadas, as concentrações estavam abaixo dos níveis de preocupação estabelecidos pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), pelo Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa) e pela União Europeia.

Essas substâncias, no entanto, sofrem processos químicos ao se dispersarem das bolhas de óleo e levam anos para chegar ao fundo do oceano e contaminar os sedimentos onde os moluscos vivem. Por isso, Rabelo destaca que os impactos precisam continuar a ser medidos por um bom tempo. “A borra preta do petróleo – o que é visível – é só uma parte do problema. As substâncias solúveis que o produto libera ao longo do tempo, que se dispersam na água, são ainda mais perigosas. Seus efeitos podem se estender por décadas”, observa ela. “Para entender o que pode ocorrer com comunidades e ecossistemas por conta dessas contaminações, precisamos de estudos de longo prazo.” A pesquisadora lembra que essas substâncias, ao serem ingeridas ou absorvidas pelos animais, podem ter efeitos cumulativos. Soares alerta que é preciso também investir em estudos de saúde pública que observem os efeitos do consumo de pescados sobre as pessoas nas áreas afetadas.

A falta de monitoramentos anteriores à chegada do óleo nas praias brasileiras é uma das limitações que as pesquisas sobre os impactos do derramamento enfrentam hoje, segundo Soares. “Há muitas localidades em que o óleo chegou, mas não é possível fazer comparações, pois não há dados coletados anteriormente para afirmar quais alterações ocorreram. É o caso de colegas que estudam a costa do Rio Grande do Norte”, diz. Ele mesmo, que coordena um Programa de Pesquisas Ecológicas de Longa Duração (Peld) da Costa Semiárida do país, começou a monitorar uma área de cerca de 20 km da costa da Região Metropolitana de Fortaleza há apenas quatro anos. “Precisamos de mais programas dessa natureza, com investimentos que permitam pesquisas de longo prazo.”

Aspectos socioeconômicos
“É importante ter uma compilação de dados como essa, porque nos ajuda a construir a colcha de retalhos formada pelas consequências desse crime”, observa a oceanógrafa Maria Gasalla, do Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo (IO-USP), que não participou do levantamento. Ela ressalta que esses impactos não ocorrem de maneira uniforme ao longo da costa e são averiguados por estudos diversos, em locais específicos.

A pesquisadora argumenta que suas consequências, porém, vão além da vida dentro da água – é preciso levar em conta a dimensão social quando se pensa nas consequências do acidente. Em parceria com pesquisadores de Pernambuco, ela conduz um projeto apoiado pela FAPESP que procura entender os efeitos socioeconômicos sobre comunidades de pescadores artesanais do estado. “Esse impacto durou muito tempo, pois durante meses ninguém queria comprar o pescado, independentemente do grau de contaminação ou procedência de áreas afetadas pelo óleo”, relata. Segundo Gasalla, o estado tem hoje cerca de 9 mil pescadores cadastrados no Registro Geral da Pesca – 60% são mulheres. Além dessas famílias, o impacto afetou todos os elos da cadeia produtiva do pescado. “Essas pessoas foram fundamentais para a limpeza da costa, e deram um verdadeiro exemplo de organização comunitária.”

Seu projeto foi contemplado em uma chamada aberta em novembro de 2019 pela FAPESP em parceria com a Fundação de Amparo à Ciência e Tecnologia de Pernambuco (Facepe), com foco em pesquisa sobre prevenção e remediação de acidentes petrolíferos. Gasalla planeja finalizar a análise dos resultados no segundo semestre deste ano, esperando ampliar o escopo para uma discussão sobre o futuro das comunidades pesqueiras.

O mistério da origem

Assim que soube da chegada das manchas de petróleo à costa brasileira, em 2019, Marcelo Soares criou um grupo no WhatsApp com os colegas da UFC Rivelino Cavalcante, Carlos Teixeira e Luis Bezerra, batizado como “O mistério do óleo”. Até hoje eles trocam mensagens, informações e se articulam para fazer análises em busca de vestígios da origem do material. Para ele e seus colegas, o caso não parece estar encerrado, ainda que as investigações tenham apontado para um navio petroleiro de bandeira grega como o responsável pelo derramamento de petróleo, segundo nota oficial publicada pela Polícia Federal (PF) em novembro de 2021. A PF também estimou em R$ 188 milhões apenas os custos dos poderes públicos federal, estadual e municipal para a limpeza de praias e do oceano. Segundo a nota, o inquérito policial seguiu “para o Poder Judiciário Federal do Rio Grande do Norte e Ministério Público Federal naquela unidade federativa, para análise e adoção das medidas cabíveis”. Procurada por Pesquisa FAPESP, a PF não informou se há novidades sobre condenações da empresa responsável, nem forneceu mais detalhes.

“Até onde se sabe, não foi feita a comparação do óleo coletado das embarcações suspeitas com o que foi encontrado na costa brasileira. Essa é a maneira mais precisa usada pela geoquímica forense para encontrar, de fato, a origem da substância”, afirma Soares. Ao lado de outros pesquisadores da UFC e de instituições norte-americanas, como os institutos Oceanográfico de Woods Hole e de Tecnologia de Massachusetts (MIT), ele publicou um artigo na revista Energy & Fuels em julho de 2022 que foi capa da revista e ainda se refere ao incidente como “um vazamento de óleo misterioso”.

Alexandre Affonso/Revista Pesquisa FAPESP

Nele, os pesquisadores analisaram 12 amostras coletadas na costa cearense de setembro a outubro de 2019, por meio de cromatografia, técnica que identifica e separa os componentes da substância, além de caracterização detalhada em nível molecular. Depois, compararam os resultados com os de estudos anteriores feitos com óleo coletado em localidades diferentes ao longo da costa. Soares e os colegas concluem que todas as amostras – suas e dos outros trabalhos – apontam para a mesma origem, reforçando a ideia de que vieram de uma mesma fonte. Também indicam que as amostras analisadas pelo grupo tinham características químicas (de densidade e massa) que revelam uma mistura de dois tipos de petróleo que se assemelham ao óleo combustível marítimo, pois passaram por refinamento. “Isso invalida a ideia inicial que se falou muito no começo que o vazamento era de óleo cru”, afirma Marcelo Soares. O produto tanto poderia ter como finalidade o uso como combustível para a própria embarcação como estar sendo apenas transportado.

Ainda segundo o artigo, os resultados não descartam que o óleo tenha vindo de um naufrágio ocorrido há cerca de oito décadas, na Segunda Guerra Mundial, em consequência da corrosão do casco ou salvamento não autorizado da sua carga de metais nobres. Eles ressaltam que mais de 500 naufrágios já foram mapeados no Atlântico Sul e têm potencial para poluir o oceano e a costa brasileira com vazamentos.

Até o momento, foram estimados entre 5 milhões e 12,5 milhões de litros de petróleo disseminados ao longo de quase 3 mil km da costa brasileira por esse derramamento, segundo estudo publicado por pesquisadores do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas (IAG) da USP em abril de 2021 na revista Marine Pollution Bulletin. “Talvez nunca consigamos saber, de fato, de onde esse petróleo veio, pois os órgãos brasileiros não coletaram óleo dos naufrágios ou dos navios suspeitos”, diz Marcelo Soares.

Projeto
Os vazamentos de petróleo e suas consequências nas dinâmicas socioambientais e econômicas das comunidades pesqueiras do litoral de Pernambuco (nº 20/02283-3); Modalidade Auxílio à Pesquisa ‒ Regular; Pesquisadora responsável Maria de los Angeles Gasalla; Investimento R$ 161.280,66.

Artigos científicos
SOARES, M. O. e RABELO, E. F. Severe ecological impacts caused by one of the worst orphan oil spills worldwide. Marine Environmental Research. v. 187, 105936. mai. 2023.
REDDY, M. C. et al. Synergy of analytical approaches enables a robust assessment of the Brazil mystery oil spill. Energy & Fuels Energy Fuels. v. 36, n. 22. jul. 2022.
ZACHARIAS, D. C. et. al. Mysterious oil spill on Brazilian coast: Analysis and estimates. Marine Pollution Bulletin. v. 165, 112125. abr. 2021.

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