Desde 2016, o levantamento Southern Photometric Local Universe Survey (S-Plus) se dedica a mapear metade do céu do hemisfério Sul. A tarefa está a cargo do T80S, um pequeno telescópio robótico brasileiro instalado no Observatório Interamericano de Cerro Tololo, nos Andes chilenos. O diâmetro de seu espelho principal é de apenas 83 centímetros. Nas noites com boas condições de observação, o T80S, que tem um campo de visão amplo, dedica-se a varrer o firmamento austral. Cerca de 80% da área a ser observada no âmbito do projeto S-Plus já foi mapeada. Foram obtidos registros de aproximadamente 111 milhões de corpos celestes, como galáxias, estrelas e asteroides. Em meio a uma quantidade tão grande de objetos, volta e meia surgem descobertas surpreendentes.
Esse é o caso de um artigo publicado em fevereiro deste ano na revista científica Astrophysical Journal Letters (ApJL), coordenado por um grupo de brasileiros. No estudo, são apresentados 10 novos sistemas binários, compostos por duas estrelas, classificados como variáveis cataclísmicas. Esses pares de estrelas desconhecidas foram identificados com o emprego de uma técnica alternativa, concebida pelos pesquisadores e que se baseou em características do T80S.
“Ao encontrar sistemas não identificados em mapeamentos anteriores, estamos potencializando a descoberta de variáveis cataclísmicas ditas exóticas”, comenta o astrofísico Raimundo Lopes de Oliveira, da Universidade Federal de Sergipe (UFS), autor principal do estudo. “Apenas alguns exemplares desses sistemas não típicos são conhecidos. Mas, segundo os modelos teóricos, eles devem representar a maioria dos sistemas.”
Para ter certeza de que se tratava de variáveis cataclísmicas e validar a nova metodologia, Lopes de Oliveira e seus colegas de artigo realizaram um projeto-piloto. Depois de terem identificado as 10 novas candidatas a variáveis cataclísmicas a partir de dados do S-Plus, confirmaram o status desses sistemas por meio de observações, feitas no telescópio Gemini Sul, também no Chile, e no telescópio espacial de raios X Swift, da Nasa, agência espacial norte-americana.

As variáveis cataclísmicas são sistemas constituídos por duas estrelas muito próximas entre si. A distância entre elas varia ao longo do tempo, mas tende a ser similar à da Terra em relação à Lua, de cerca de 380 mil quilômetros. Uma é sempre uma anã branca, classificação dada a uma estrela moribunda extremamente densa e compacta, que se encontra em seu estágio evolutivo final. A outra, a companheira, é geralmente uma estrela comum, similar ao Sol. A proximidade entre elas induz a companheira a perder matéria, que, posteriormente, é atraída pela anã branca. A troca de matéria causa emissão intensa de radiação e, às vezes, leva à formação de um disco de acreção ao redor da anã branca. Esses sistemas apresentam variações pronunciadas de brilho ao longo do tempo, com eventuais erupções intensas.
Não é possível descobrir esses objetos com apenas uma imagem do céu. As duas estrelas estão tão próximas entre si que não podem ser distinguidas. O brilho de uma se sobrepõe ao da outra. São vistas como se fossem apenas um só objeto em meio à escuridão celeste. Nada muito diferente das outras estrelas. Nem a esperada oscilação no brilho das variáveis cataclísmicas é uma pista muito fácil de ser obtida. Afinal, não se sabe em que ponto do céu esses sistemas binários se encontram, nem quando, com que intensidade e por quanto tempo seu brilho vai variar.
A abordagem mais tradicional adotada para encontrar esse tipo de sistema binário é baseada na detecção da flutuação do brilho, costumeiramente no óptico (luz visível), e na detecção de emissões de raios X. A técnica de espectroscopia, que decompõe a luz captada, é importante para esses estudos. Mas ela permite a observação de um ou poucos objetos por vez e apenas os mais brilhantes. Por isso, consome muito tempo e, por conseguinte, dinheiro.
Mas, graças a um diferencial da câmera instalada no T80S, Lopes de Oliveira e seus colegas do levantamento S-Plus conseguiram conceber um método para procurar por variáveis cataclísmicas a partir das observações feitas pelo telescópio brasileiro. Embora mapeie o céu austral majoritariamente na luz visível e em uma pequena parte do infravermelho e do ultravioleta, a câmera do T80S é dotada de 12 filtros ou bandas que podem ser entendidos como 12 olhares diferentes para cada região do céu observada.

Favio FaiferInstalado no Chile, o telescópio robótico brasileiro foi usado para descobrir as estrelasFavio Faifer
Cada filtro representa uma cor distinta. Assim, em vez de gerar somente um registro óptico, decorrente da contribuição da emissão de radiação em todas as frequências, o telescópio produz 12 imagens, uma de cada cor. Cada imagem indica a quantidade de luz emitida dentro de uma faixa específica de comprimentos de onda. “O S-Plus, com suas observações em diferentes regiões do espectro eletromagnético, nos oferece uma alternativa à espectroscopia”, diz Lopes de Oliveira.
“Ele é o único mapeamento do hemisfério Sul que conta com uma câmera com esse sistema de bandas”, diz a astrofísica Cláudia Mendes de Oliveira, do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo (IAG-USP), uma das coautoras do artigo na ApJL. Além de coordenar o levantamento S-Plus, a pesquisadora foi a principal responsável pela concepção e instalação do T80S no Chile, um projeto financiado pela FAPESP.
As imagens multicoloridas do S-Plus possibilitam a criação de um gráfico que indica a intensidade da luz de cada região espectral observada pelo T80S. Com base em estudos anteriores sobre variáveis cataclísmicas, os pesquisadores constataram que, nos dados produzidos pelo levantamento, esse tipo de sistema binário tende a gerar um gráfico com uma figura em V. Há um excesso de emissão nas cores mais azuladas, uma baixa nas de comprimentos de onda maiores e outro exagero nas regiões mais avermelhadas.
“Conseguimos ver a manifestação da luz azulada, que vem da anã branca e de linhas espectrais provenientes da matéria que ela está capturando, e também da emissão mais avermelhada, oriunda da estrela companheira, mais fria”, comenta a astrofísica Amanda de Araújo, que faz doutorado na UFS, sob orientação de Lopes de Oliveira, e assina o novo estudo.
Para a astrofísica brasileira Ingrid Pelisoli, da Universidade de Warwick, no Reino Unido, a técnica proposta para encontrar variáveis cataclísmicas a partir dos dados do levantamento S-Plus é muito interessante. “O método proposto é bem astuto”, comenta Pelisoli, que também estuda esses sistemas binários, mas não participou do trabalho com dados do S-Plus. “É uma abordagem intermediária entre a espectroscopia e a fotometria que se usa normalmente para fazer a caracterização inicial de estrelas.” Em mapeamentos fotométricos clássicos, a luz de um objeto é captada por um ou poucos filtros, mas não com as 12 bandas do S-Plus.
A partir das assinaturas espectrais típicas das variáveis cataclísmicas, os pesquisadores do S-Plus esperam criar um processo automatizado, talvez com auxílio de inteligência artificial, que procure sozinho por esse tipo de sistema binário dentro dos milhões de objetos celestes cobertos pelo levantamento. Se tudo correr como esperado, o mapeamento brasileiro deverá continuar a descobrir novos pares de estrelas explosivas.
A reportagem acima foi publicada com o título “Banquete estelar” na edição impressa nº 349 de fevereiro de 2025.
Projeto
Identificação de Emissores Halpha usando o S-PLUS (nº 20/00457-4); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Pesquisador Visitante – Brasil; Pesquisador responsável Claudia Mendes de Oliveira (USP); Beneficiário: Raimundo Lopes de Oliveira (UFS); Investimento R$ 39.187,38
Artigo científico
OLIVEIRA, R. L. et al. The S-PLUS 12-band Photometry as a Powerful Tool for Discovery and Classification: Ten Cataclysmic Variables in a Proof-of-concept Study. The Astrophysical Journal Letters. 21 fev. 2025