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Entrevista

Marcio de Castro: Mais impulso à ousadia

Novo diretor científico expõe sua visão sobre a ciência e o futuro da FAPESP e conta da carreira como geneticista de plantas

Castro na frente da Fundação: ideias de como contribuir para o avanço da ciência no país

Léo Ramos Chaves/Revista Pesquisa FAPESP

O geneticista mineiro Marcio de Castro Silva Filho é usuário da FAPESP desde o começo da carreira científica, quando recebeu um convite para integrar o programa Jovens Talentos da Universidade de São Paulo (USP), em 1994. A iniciativa tinha endereço: atrair pesquisadores novos, com formação no exterior, para trabalhar na instituição. Com Castro, deu certo. Em poucos anos, construiu uma carreira científica na Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq-USP) com laboratório e projetos apoiados pela Fundação.

Quase 30 anos depois, Castro deixou de ser apenas cliente da FAPESP, tornando-se dirigente da agência. Em 27 de abril ele assumiu a Diretoria Científica em substituição ao neurocientista Luiz Eugênio Mello. Será uma oportunidade de melhorar processos que ele, como usuário, sentia que poderiam ser mais eficazes.

Marcio de Castro nasceu em Belo Horizonte e cursou engenharia agronômica na Escola Superior de Agricultura de Lavras, hoje Universidade Federal de Lavras (Ufla). No estágio que viria a fazer na Embrapa Milho e Sorgo, definiu como sua especialidade a genética de plantas, que aprofundou no doutorado na Bélgica e nas pesquisas realizadas na Esalq. Entre outros temas, trabalha com a interação planta-inseto da cana-de-açúcar. O pesquisador mostrou também, em colaboração com um grupo da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), que a informação biológica e a informação digital têm uma mesma estrutura matemática.

No início deste século, Castro começou a colaborar com a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) na avaliação dos programas de pós-graduação, tendo ocupado a posição de diretor da agência entre 2011 e 2016. Quando foi definido como diretor científico da FAPESP, era pró-reitor de Pós-graduação da USP. Na entrevista a seguir, concedida presencialmente na sede da Fundação, o novo diretor fala de seus trabalhos científicos mais relevantes e expõe algumas ideias de como pretende contribuir para o avanço da ciência no país.

Idade 62 anos
Especialidade
Genética de plantas, gestão de ciência e tecnologia
Instituição
Universidade de São Paulo (USP)
Formação
Graduação e mestrado na Ufla, doutorado na Universidade Católica de Louvain, Bélgica
Produção
80 artigos e 4 patentes

Você se formou como engenheiro-agrônomo e se tornou geneticista. Por que a mudança?
Vamos dar um passo atrás. Sou filho de um médico respeitado de Belo Horizonte, Marcio de Castro Silva [1931-2015], angiologista e cirurgião vascular. Minha intenção, desde criança, era fazer medicina. Mas, na época do vestibular, surgiu uma pergunta: “Será que eu vou ter espaço na área onde meu pai atua?”. Eu gostava muito da natureza, das fazendas, onde ia sempre nas férias da minha infância. Quando chegou a hora da inscrição no vestibular decidi pela agronomia. Fui conversar com a minha avó, mãe do meu pai, que dizia que ele era o orgulho da família. Ela me recebeu dizendo: “Então vamos ter mais um médico na família”. Contei que não, que iria fazer agronomia. A resposta foi: “Meu filho, não faz isso não, mexer com jardim todo mundo sabe”. O curioso é que, se eu tivesse feito medicina, acho que acabaria na pesquisa em genética, a área na qual me encontrei.

A agronomia é um curso amplo, não?
Eu até brinco com as pessoas: se você não sabe o que fazer, faz agronomia. Lá tem ciências humanas, da saúde, biológicas, agrárias, economia agrícola, economia rural, sociologia… Você vai achar alguma coisa, o seu caminho. Comigo foi assim. Fiz a graduação, mas não a iniciação científica. Recém-formado e muito jovem, sem saber direito por onde ir, consegui uma bolsa da Embrapa. Fui a Brasília para ver onde poderia trabalhar, porque eles têm centros no Brasil inteiro. Aí alguém me perguntou: “Você vai querer trabalhar com o quê?”. Eu não sabia o que escolher. A pessoa com quem eu estava falando, me olhou bem e disse: “Você tem cara de geneticista”.

Foi assim?
Desse jeito. E eu nem gostava de genética quando estudei na graduação, mas comecei a trabalhar nessa área e percebi que a pesquisa era o meu lugar. Fui para a Embrapa Milho e Sorgo, em Sete Lagoas, Minas, e conheci um pesquisador fantástico, o Ricardo Magnavacca. Eu o ouvia muito e, como ele contava da experiência de ter feito o doutorado nos Estados Unidos, achei que era isso que eu queria, estudar fora. O Ricardo me aconselhou a fazer mestrado no Brasil e o doutorado no exterior. Ele dizia que seria bom fazer o mestrado aqui para ganhar maturidade e ver se era isso mesmo que eu queria.

Você seguiu o conselho?
Segui, fiz o mestrado na Escola Superior de Agricultura de Lavras, hoje Universidade Federal de Lavras. Em seguida, fui da última geração que fez o doutorado pleno no exterior com bolsa do CNPq [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico]. Nos anos 1990 implementaram a modalidade sanduíche, em que o doutorado é feito no Brasil, com parte do estágio da pesquisa no exterior. Ficou muito mais barato. Em vez de mandar uma única pessoa para fora, mandavam quatro, cinco. Quando fui, quase todos que pediram bolsa para o CNPq nessa área conseguiram e fizeram o doutorado em alguma instituição de outro país.

Por que escolheu a Bélgica?
Eu queria fazer o doutorado com o belga Marc Van Montagu. Ele e o Jozef Schell [1935-2003] ganharam um prêmio importante no Japão pelas contribuições que deram, entre elas a descoberta do mecanismo de transferência horizontal de genes entre Agrobacterium tumefaciens e plantas. Mas o grupo dele estava lotado porque geneticistas de todo o mundo queriam ir para lá. Acabei em outro laboratório, na Universidade Católica de Louvain. Meu orientador, Marc Boutry, era também um cientista brilhante.

Eu nem gostava de genética na graduação, mas comecei a trabalhar nessa área e percebi que a pesquisa era o meu lugar

E como foi parar na Esalq?
No último ano de doutorado, vi um anúncio da USP na Nature. Era uma chamada feita pelo Erney Plessmann de Camargo [1935-2023], então pró-reitor de Pesquisa, que dizia mais ou menos assim: “Vocês que estão no exterior não querem trabalhar na USP?”. Ele havia criado um programa chamado Jovens Talentos. Eu sempre estudei em Minas, nunca em São Paulo. Naquela época, a USP era algo inalcançável para mim. Mandei meu currículo e, um dia, vi um fax em cima da minha bancada, assinado pelo diretor da Esalq à época, João Lúcio de Azevedo: “Este é um convite formal para você vir para a Universidade de São Paulo, para a Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz”. Eu saí pulando pelo corredor, de alegria. Corri para defender a tese e fui para Piracicaba, no Departamento de Genética. E foi lá que fiz a minha carreira.

Uma vez em São Paulo, você logo se tornou um dos usuários da FAPESP?
A Fundação foi fundamental para mim. Antes mesmo de eu chegar, já estava com um projeto em mente. Meu orientador me aconselhou: “Quando você voltar para o Brasil, evite assumir cargos administrativos e construa uma carreira científica. Isso vai deixar você invulnerável. Foco na carreira”. Voltei, apresentei o projeto que havia pensado e ele foi negado. Vim conversar com o Rogério Meneghini, que era da Coordenação Adjunta da Diretoria Científica. Defendi o projeto para ele e recorri da decisão. Acabou sendo aprovado. Três anos depois submeti um projeto temático, dessa vez aprovado sem problema. Já trabalhando na Esalq e tocando os projetos, eu precisava de gente para trabalhar comigo e de espaço físico. A bancada era grudada na minha mesa, tudo apertado. Foi uma dificuldade. Usei o programa de infraestrutura da FAPESP que existia na época e conseguimos estruturar o laboratório onde estou hoje, que depois foi ampliado. O espaço ficou incrível e permitiu avançar com todas as colaborações. Fiz carreira e comecei a ser chamado na Capes para auxiliar na avaliação da pós-graduação, no início dos anos 2000.

Vamos voltar um pouco nos anos 1990. Como foram suas primeiras pesquisas na Esalq?
Eu queria entender como é que as proteínas dentro de uma célula são direcionadas para os respectivos endereços. A célula da planta, como outra célula eucarionte, é dividida em organelas: núcleo, mitocôndria, cloroplasto, retículo endoplasmático etc. Existe um tráfego de proteínas intenso dentro da célula, mas com direção certa. Uma proteína que vai para a mitocôndria não pode ir para o núcleo, por exemplo. As proteínas do núcleo não podem ficar no citosol [líquido que preenche o citoplasma], porque precisam exercer a função delas no local específico dentro das células. Quando cheguei na Esalq, tentei dar uma aplicação mais prática a partir desse conhecimento. Meu primeiro projeto foi introduzir uma proteína, a leg-hemoglobina, dentro de uma organela celular, o cloroplasto em plantas de tabaco e batata – no caso, a fim de favorecer a atividade carboxilase da enzima Rubisco, aumentando a fotossíntese. No doutorado eu já estudava uma sequência de direcionamento pouco usual e investi em uma colaboração com o professor Carlos Menck, da USP. Foi o primeiro trabalho mostrando que uma proteína podia ser direcionada simultaneamente para dois locais distintos dentro da célula, as mitocôndrias e os cloroplastos.

Quando começaram suas pesquisas sobre interação planta-inseto?
No final do doutorado um pós-doc canadense, meu amigo, sugeriu: “Você podia trabalhar com a interação planta-inseto, é algo mais aplicado”. Quando cheguei na Esalq, conheci o professor [José Roberto Postali] Parra, que tem um conhecimento grande nessa área. E tinha o professor Walter Terra, bioquímico do Instituto de Química da USP. Achei que esse era mesmo um bom caminho. Comecei a estudar a interação planta-inseto usando a cana-de-açúcar. Foi por aí que entrei no Bioen [Programa FAPESP de Pesquisa em Bioenergia], mais à frente. Me dediquei a entender como é que as plantas produzem os mecanismos de defesa para evitar que o inseto a utilize como alimento ou hospedeiro. Estudei vários mecanismos, inclusive como os insetos quebram essas barreiras e passam a utilizar aquela planta como hospedeira.

Logo em seguida vocês fizeram outras descobertas nessa complexa interação planta-inseto. Quais foram?
Em um trabalho iniciado há mais de 10 anos, estudamos a complexa interação envolvendo a cana, a sua principal praga, a broca da cana Diatraea saccharalis, e fungos tidos como oportunistas – que mostramos não ser o caso. Publicamos trabalhos salientando que o fungo controla a planta e o inseto, para se dispersar, a partir da produção de umas moléculas que chamamos de complexos voláteis. Quando a planta está infectada pelo fungo, ela produz compostos voláteis que atraem fêmeas de insetos não infectadas. As fêmeas pousam na planta, fazem a oviposição, as lagartinhas penetram na planta e se contaminam. Quando os insetos se tornam adultos, são atraídos por plantas sadias. Com isso, o fungo controla tanto a planta quanto o inseto.

Os pesquisadores da rede Onsa que construíram um fio condutor para a carreira tinham uma boa pergunta científica a seguir

No final dos anos 1990, você fez parte da formação da rede Onsa (Organização para Sequenciamento e Análise de Nucleotídeos), consórcio de laboratórios que sequenciou o genoma da bactéria Xylella fastidiosa e depois vários outros organismos. Como foi sua participação?
José Fernando Perez, então diretor científico da FAPESP, e Fernando Reinach, um dos coordenadores da rede, me chamaram logo no início porque sabiam que eu tinha vindo do laboratório do André Goffeau [1935-2018], da Universidade Católica de Louvain, chefe do grupo que realizou o primeiro sequenciamento de um organismo eucariótico inteiro, a levedura Saccharomyces cerevisiae. Também chamaram o Marcos Machado, do Instituto Agronômico, o João Carlos Setúbal, da USP, e o João Meidanis, da Unicamp, para a parte de bioinformática, o Paulo Arruda, também da Unicamp. Participei de várias reuniões. Me perguntam por que eu não coordenei um dos grupos da Xylella. Eu estava propenso a entrar porque havia aberto o edital para os laboratórios, com a perspectiva de um financiamento grande. Mas na mesma época foi aprovado o meu primeiro projeto temático. Me aconselhei com o Walter Terra, e ele disse: “Marcio, cuida do seu temático. É mais importante você construir a sua linha de pesquisa. Você vai se tornar uma referência nisso”. Optei por seguir com o temático, com dor no coração, porque achei que não conseguiria levar as duas coisas.

Continua achando certa a decisão?
Teria sido mais fácil se eu tivesse entrado no Programa Genoma. Houve financiamento que permitiu a montagem de laboratórios em grande escala como nunca antes, mas acho que fiz a escolha certa. A formação da rede Onsa foi uma iniciativa muito ousada e de risco, que fluiu muito bem e gerou grandes resultados. Construir uma metodologia capaz de entregar uma sequência foi importantíssimo e formou muita gente nessa área. Hoje, é possível sequenciar dezenas de bactérias em um dia e o desafio é gerar perguntas científicas a partir dessa informação, construir hipóteses, desenhar experimentos que expliquem fenômeno da natureza, que transformem isso em conhecimento que possa ter aplicação. Avalio que havia muitas perguntas científicas importantes a fazer, mas não foram todos os grupos que souberam explorar isso. Os pesquisadores que acabaram se destacando e construíram um fio condutor para a carreira foram os que tinham uma boa pergunta científica para seguir, como o Parra, Menck ou o Terra, para citar alguns exemplos.

Durante sua carreira de gestor, optou por não deixar o laboratório. Vai continuar assim?
Na entrevista para Diretor Científico, perguntaram: “Isso aqui vai tomar seu tempo, como é que vai fazer? E a carreira?”. Eu não queria falar muito, mas não abro mão disso. Fui para Capes em 2011, depois para a pró-reitoria da USP e tenho cinco alunos de doutorado, uma pós-doc e uma aluna de iniciação científica. Vou ao laboratório com alguma regularidade e converso com eles: “Como é que está? O que está acontecendo? Me conta”. Mudei um pouco aquela postura de “tem que estar do lado do aluno todos os dias”. Sabemos o que precisa ser feito, temos reuniões regulares. Quase todos eles estão fazendo estágio também no exterior, vão e voltam. Sou pesquisador 1A do CNPq e não perdi minha bolsa, com trabalhos de qualidade saindo agora em importantes revistas. Uma curiosidade, não tenho estudantes da Esalq, só uma aluna de iniciação científica. Todos são de outras instituições, que acompanham, veem nossos trabalhos em congresso, publicações e me procuram. O grupo é muito bom e consigo acompanhar de longe. Eles próprios, vendo as possibilidades, têm interesse em que tudo avance e querem fazer mais, querem descobrir mais coisas.

Como avalia a importância de colocar pesquisadores com formações diferentes para trabalhar juntos?
A pesquisa interdisciplinar é crucial para o avanço do conhecimento, para que a ciência saia de um patamar apenas incremental. Os grandes saltos vêm e virão de ações interdisciplinares. No mundo inteiro, a estrutura organizacional em departamentos fechados e monotemáticos está ficando para trás. Quando estava pesquisando transporte de proteínas, fui procurado por duas doutorandas que trabalhavam com o Reginaldo Palazzo Jr., da engenharia elétrica da Unicamp. Elas já tinham batido na porta de vários pesquisadores, mas nenhum se interessou em colaborar com elas. Fui conversar com o Palazzo, um pesquisador brilhante, e nos reunimos para explicar matematicamente fenômenos biológicos. Encurtando uma longa história, mostramos que toda sequência de DNA tem uma estrutura matemática por trás, a partir dos códigos corretores de erros, que são semelhantes aos códigos usados em comunicação digital. A informação biológica e a informação digital têm uma mesma estrutura matemática. Tínhamos expectativas de ter uma grande repercussão com esse trabalho, mas havia muita matemática no paper e acabou saindo em uma revista de engenharia elétrica. Só foi possível a gente chegar aonde chegou estimulando o diálogo entre áreas diferentes, com um grupo da engenharia elétrica conversando com um geneticista.

Os dois locais mais refratários a mudanças são os cemitérios e as universidades, por livre opção dos ali residentes

Como estimular a interdisciplinaridade?
Antes de responder, vocês sabem que os dois locais mais refratários a mudanças são os cemitérios e as universidades, por livre opção dos ali residentes, não é? É muito difícil estimular a interdisciplinaridade em um ambiente em que as pessoas estão confortavelmente instaladas dentro de suas áreas de atuação. Uma das ideias é financiar de forma robusta temas que são transversais, que exigem expertises diferentes para gerar respostas. Se olharmos o financiamento da National Science Foundation, veremos que é dirigido para temas transversais. Em uma pesquisa sobre aprendizagem, é preciso ter o pedagogo e o educador, mas também o engenheiro eletricista, o pessoal que estuda linguagem. Se colocarmos juntas pessoas que trabalham com cérebro, memória, computação, será possível avançar para além do incremental na compreensão de como uma pessoa aprende. Há dois anos eu estava em Londres, em um evento do conselho britânico e dois colegas me convidaram para jantar no restaurante da academia de ciências. O jantar custava £ 80, £ 100, mas quem se sentasse em uma mesa bem na entrada, em que cabiam umas 12 pessoas, pagava só £ 10. Era para estimular acadêmicos de diferentes áreas a sentar um do lado do outro e conversar. As humanidades e as ciências sociais aplicadas também precisam estar presentes. O isolamento não leva a lugar nenhum. Parte das respostas virá dessa convivência.

Você conseguiu, durante esse período na USP, fazer algo nessa linha?
Começamos um programa de formação complementar, entendendo que hoje na pós-graduação precisamos de menos conteúdo e mais formação e investimento em novas habilidades. Na plataforma QS, a Quacquarelli Symonds, a USP foi uma das fundadoras de um consórcio que tem cinco universidades – agora está entrando o sistema da Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos, e o Imperial College, de Londres. Problemas ligados aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, os ODS, são apresentados à QS por grandes empresas, governos, prefeituras e abordados por equipes de estudantes. Formamos times com 30 alunos de doutorado da USP, 30 da universidade de Hong Kong, 30 da França. Eles têm tutores. Tem um especialista em física, outro em biologia, em agronomia, todos conversando sobre como lidar com aquele assunto, mesmo que ele não tenha nenhuma relação com a pesquisa de cada um. Isso é formar jovens, torná-los mais preparados, estimulando o trabalho interdisciplinar e em equipe.

Há uma perda de interesse na pós-graduação. Como enfrentar o problema?
O valor da bolsa é uma das variáveis importantes, mas não só ela. O interesse é menor porque a nossa pós-graduação é da segunda metade do século passado. O aluno não se sente estimulado a ficar na pesquisa. Quase não há mais médico fazendo pós-graduação. Na USP e em várias outras universidades, os alunos estão entrando no doutorado com 33 anos. Terminam com 37, 38 e vão começar a trabalhar com quase 40 anos. Na Europa, nos Estados Unidos, no Canadá, terminam com 27, 28 anos. Em vez de gastar tempo contando disciplina, eles têm de interagir, criar habilidades, ganhar experiência internacional – na USP, 15% dos doutorandos têm estágio no exterior. Isso é fantástico. Mas o problema tem outras variáveis e não ocorre só no Brasil. Houve um editorial da Nature que tratou a crise na pós-graduação como um fenômeno mundial. Conversei em um evento no Egito ano passado com o pró-reitor da Universidade Técnica de Munique e ele contou que 90% dos doutores formados lá não vão mais para a área acadêmica, mas para empresas, órgãos do governo, ONG ou montam seu próprio negócio. Na USP, criamos uma disciplina na pós-graduação, vinculada à pró-reitoria, chamada Cientista Empreendedor. Oferece noções básicas e no final tem uma oficina em que os alunos têm de resolver de forma interdisciplinar um problema da sociedade.

Como uma agência como FAPESP pode induzir ou ajudar a promover esse tipo de mudança?
Uma possibilidade é a bolsa de pós-graduação passar a incluir a contribuição com a previdência, por exemplo. Eu voltei do doutorado com 33 anos e meu pai me deu uma boa notícia. Contou que pagou minha contribuição para o INSS durante o meu doutorado. Posso usar esse tempo para contagem da aposentadoria. Se esses alunos se formarem aos 38 anos e só então começarem a contribuir, terão uma vida profissional muito diferente da que teriam em outras carreiras. Também podemos ter modelos diferentes de pós-graduação. O mestrado virou um programa profissional. Só um terço dos mestres vai para o doutorado. Mas continuamos insistindo em exigir o mestrado na formação de um pesquisador. Não seria melhor reforçar o doutorado e o pós-doutorado? Enquanto a procura pela pós-graduação stricto sensu está caindo, as matrículas em programas de MBA, mais antenados com o que a sociedade está pedindo, explodem. Precisamos criar um ambiente de interação com a sociedade em que o doutor seja treinado para resolver problemas, participar de projetos interdisciplinares, saiba trabalhar em equipe, tenha contato com diversidade. Sem estimular isso, não vai ter emprego para essa turma.

Sempre fui adepto a dar autonomia com responsabilidade porque, no final, as pessoas serão avaliadas

Em comparação com países desenvolvidos, o Brasil tem proporcionalmente menos pesquisadores e bem menos pesquisadores trabalhando em empresas. Qual é a sua percepção?
Acho que o ambiente não é muito favorável à interação com as empresas. Há certas iniciativas que têm tido sucesso. O caso da Embrapii é uma delas. Combina apoio das universidades, financiamento federal e recursos das empresas, e as empresas definem o que elas querem. Tem muitos projetos bacanas trazendo conhecimento novo para dentro da empresa. Na FAPESP, temos os Centros de Pesquisa em Engenharia/Centros de Pesquisa Aplicada [CPE/CPA], mas envolvem parcerias entre universidades e um grupo ainda restrito de empresas. Não faz parte de uma política de desenvolvimento, que é necessária para o país. Havia gente que dizia que isso não tinha importância e que era mais fácil importar tudo da China. Veio uma pandemia e ficamos sem chips para carros, sem seringas e com os fármacos quase todos vindos da Índia.

A sua experiência como pesquisador financiado pela FAPESP traz impressões sobre o que fazer como diretor científico?
Claro, sou um grande usuário. Tenho um auxílio em andamento e duas propostas encaminhadas antes de eu estar aqui. Acho, por exemplo, que podemos simplificar processos porque ainda nos perdemos no regramento. Não apenas na FAPESP, na pós-graduação também, mantendo estruturas que foram estabelecidas há muito tempo e nunca paramos para pensar se ainda fazem sentido. Queremos dar mais autonomia aos pesquisadores e diminuir a burocracia.

Poderia dar um exemplo?
Vou falar do meu caso. O meu temático foi para cinco assessores. Nenhum lugar do mundo faz isso. Três aprovaram do jeito que está, um pediu para esclarecer mais a metodologia e o outro falou para reduzir 10% do orçamento. Qual o parecer que recebi? Negado. Aí eu tive que entrar com uma reconsideração, pedir para todo o grupo entrar e reconfirmar o interesse, carregar um grande número de formulários de novo. Poderiam pedir mais informação do material e métodos e para cortar o orçamento. Então a FAPESP veria se atendeu ou não e encaminharia para uma análise comparativa. A FAPESP tem um firewall grande para entrar e pequeno para sair. O que você fez é incremental ou disruptivo? Criou política pública, uma lei, mudou o entendimento, abriu um novo ramo do conhecimento? Isso é o que queremos saber.

A perspectiva então é não exercer um papel de microgerenciamento, de acompanhamento do dia a dia da pesquisa, mas dar espaço e confiar na capacidade de a comunidade, dentro de certos limites, fazer o que considera ser melhor para o desenvolvimento daquela pesquisa. E a contrapartida é exigir mais nos resultados.
Isso. Ao final, eu posso falar que o resultado foi disruptivo, mas quem vai avaliar pode dizer: “Não, isso aqui que você fez não mudou nada. Descreveu uma coisa que já tinha sido descoberta por A, B e C. Quando apresentar o próximo pedido, nós vamos comparar”. Claro que tem uma parte de risco. Nem sempre quem ousa consegue fazer o que tinha em mente, mas precisamos estimular as pessoas a se tornarem mais arrojadas. Essa ousadia pode se refletir lá na frente, no final desse projeto e quando ele apresentar um próximo. Sempre fui adepto de dar autonomia com responsabilidade porque, no final, as pessoas serão avaliadas. Se você dá autonomia, mas não avalia, aí tem um risco. Mas autonomia com acompanhamento, sobretudo de resultado, sim. Precisamos desconstruir um pouco o sistema que se ajustou no Brasil, onde a atividade meio está ganhando mais relevância do que a atividade fim. Não pode, nunca. A atividade fim é que tem que dizer onde quero chegar. A atividade meio tem de servir à atividade fim, e não o contrário.

O que você fez é incremental ou disruptivo? Criou política pública? Abriu um ramo do conhecimento? É o que queremos saber

Pensando nos programas especiais da FAPESP, como Biota, Mudanças Climáticas. Haverá espaço para novos programas?
Esse papel a FAPESP não pode deixar de ter. A partir do entendimento de como está o conhecimento em determinadas áreas, deve sinalizar quais desafios são mais importantes. Mas não dá para trabalhar sozinha. A Fundação precisa aumentar um pouco mais a interação com outros órgãos. Ela trabalha muito com CPF, o grande cliente da FAPESP não é CNPJ. Tem espaço para a FAPESP avançar em cooperação com cientistas de outros estados, de outros países. Ela já vem fazendo isso muito bem no exterior. Precisa olhar do Oiapoque ao Chuí, pois há espaço para a gente avançar em parcerias com outras fundações de amparo à pesquisa.

Como seria o avanço em direção aos CNPJ?
É preciso conversar com as universidades, empresas e determinados segmentos para trabalhar juntos e de uma forma mais harmônica, para o conhecimento avançar. Acho que podemos ousar um pouquinho e propor coisas um pouco diferentes, estimular as pessoas a se organizarem de uma forma mais interdisciplinar para poder explorar e responder às questões que se colocam.

Como vê o futuro do programa Cepid?
O Cepid [Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão] é uma marca da FAPESP, que ousou ao financiar projetos de longo prazo. Esse desenho, dentro da estrutura atual, é interessante, porque estimulou ações um pouco mais interdisciplinares do que na instância inferior, dos projetos temáticos, que ainda são mais focados em uma área específica. Nos melhores Cepid há um pouco mais de complexidade e se consegue ter ações mais abrangentes. Estou chegando agora, mas acho que é um aspecto que deve ser pensado, de avaliar como era antes desse investimento de longo prazo e que mudanças ele provocou no conhecimento daquela área. Essa avaliação é muito importante e precisa ser feita. A estrutura dos Cepid deveria estimular a interdisciplinaridade com problemas mais transversais porque há quase uma perenidade para que se possa, inclusive, ousar.

No seu discurso de posse você falou, entre vários assuntos, em integridade científica e boas práticas de pesquisa. Há alguma orientação nova?
A FAPESP foi a primeira no Brasil que criou um regramento, uma orientação, uma diretriz para o sistema. As universidades – umas mais, outras menos – acompanharam. É uma área que está bem estruturada aqui. Mas, agora, há o desafio da inteligência artificial, que não existia há dois anos. Vamos ter que nos adaptar a isso, é o mundo de hoje. Se quiser preparar um projeto sobre qualquer área hoje, basta perguntar para o ChatGPT e ele escreve. Vamos ter de pensar um pouco sobre a dinâmica da inteligência artificial, como lidar com ela.

Íntegra do texto publicado em versão reduzida na edição impressa, representada no pdf.

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