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Entrevista

Maria Amélia Veras: Olhar sensível às diferenças

Médica investiga as condições de vida das pessoas trans e homossexuais, além dos vírus, para conter a propagação de infecções sexualmente transmissíveis

Léo Ramos Chaves / Revista Pesquisa FAPESPDurante a pandemia de Covid-19, a médica pernambucana Maria Amélia de Sousa Mascena Veras, junto com seu grupo, saiu atrás de recursos. Não para fazer pesquisa, mas para comprar e entregar cestas básicas, água e máscaras faciais para participantes de suas pesquisas, mulheres trans e profissionais do sexo de São Paulo e de outras cidades. Ela sabia que, sem suporte, aquelas pessoas correriam mais risco de se contaminar com o coronavírus indo buscar na rua a sua sobrevivência.

Desde que trocou Recife por São Paulo, em 1990, Maria Amélia, como é mais conhecida, cultivou uma visão ampla sobre o comportamento, as condições de vida e as vulnerabilidades das pessoas trans – um grupo de cerca de 3 milhões de pessoas ou 2% da população adulta no Brasil (ver Pesquisa FAPESP no 312). Professora da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo (FCM-SCSP), ela coordena o Núcleo de Estudos em Direitos Humanos e Saúde da População LGBTQIA+ (Nudhes), criado há 10 anos. Dele, fazem parte antropólogos, nutricionistas, assistentes sociais, biólogos e psicólogos, além de médicos, que documentaram as consequências dos preconceitos e da discriminação: as taxas de ideação suicida e de suicídio entre travestis e mulheres trans, comparadas com as da população geral de São Paulo, são muito mais altas.

Especialidade
Epidemiologia de doenças sexualmente transmissíveis
Instituição
Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo
Formação
Graduação em medicina na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE, 1983), mestrado em medicina preventiva na Universidade de São Paulo (USP, 1996) e em saúde pública na Universidade da Califórnia em Berkeley (UCB, EUA, 2001), doutorado em medicina preventiva (USP, 2005)

Maria Amélia, de 66 anos, pôs em campo novas metodologias e práticas de pesquisa: os pesquisadores do Nudhes apresentam seus resultados primeiramente para as comunidades com que trabalharam. Divorciada, dois filhos, fez pesquisas com grupos mais afetados pelo HIV e continuou indo a campo para aprender sobre os contextos de vida das populações com as quais trabalha. Sua viagem mais recente foi para Itaituba, sudoeste do Pará. Com outros pesquisadores, ouviu muitas histórias e colheu amostras de sangue de quase 600 garimpeiros e prostitutas.

Conte-nos sobre sua viagem recente aos garimpos no interior do Pará.
O trabalho realizado lá é uma pesquisa do infectologista Paulo Abati, doutorando da Faculdade de Medicina da USP [Universidade de São Paulo] e médico da Unicamp [Universidade Estadual de Campinas]. Ele trabalhou por muitos anos no interior do Pará e sempre quis estudar as IST [infecções sexualmente transmissíveis] no garimpo. Sabendo da minha experiência com desenho de estudos para populações de difícil acesso, ele e seu orientador, Aluisio Segurado, me convidaram para fazer parte da equipe. O município é Itaituba, na região do rio Tapajós. É a maior área de extração de ouro do Brasil. Partindo de São Paulo, demoramos três dias para chegar lá. Em agosto de 2024, estive com Paulo, Márcia Couto, antropóloga da medicina da USP, uma pós-doc do Instituto de Medicina Tropical, Mariana Aschar, um estudante de medicina, Renan Viana, e Criss de Paulo, arquiteta e ilustradora, que foi de forma voluntária para documentar o estudo. Contamos com o apoio local dos agentes municipais de controle da malária, Cezar Castro, Jadielson Vilela e Adeuza Oliveira. Foi o lugar mais desolador que vi em toda a minha vida.

Por quê?
Em 2023, Paulo, Márcia, Vilmar Gomes, um antropólogo de Santarém, e eu, guiados por Cezar, havíamos visitado seis garimpos na região. Conhecemos as pessoas, fizemos entrevistas, pensamos na logística e desenhamos um inquérito que aplicamos em 2024. Da primeira vez já ficamos preocupadas com a segurança. Em um momento Márcia olhou para mim e falou: “Se a gente desaparecer aqui, ninguém nunca vai achar nossos corpos”. Em 2023 não vimos a floresta queimando tão perto, mas dessa vez não houve um dia em que não tivesse fumaça. Perguntávamos: “Está muito ruim de respirar aqui, vocês não estão incomodados?”. “Estamos, mas não tem jeito, tem que queimar”, falavam. “Eu queria queimar só um pedaço, mas está tudo tão seco que o fogo foi até a beira da minha casa, quase queima tudo”, disse uma das pessoas de lá. Elas não têm uma dimensão completa do problema ambiental, as informações que chegam são parciais e ideologizadas. Nunca vi uma população em que o consumo de álcool seja tão grande.

O que vocês fizeram lá?
Entrevistamos e colhemos sangue de quase 600 pessoas, entre garimpeiros, prostitutas e outros poucos que fazem algum serviço vinculado ao garimpo. A ideia original era só trabalhar com os garimpeiros, mas em 2023 mudamos toda a estratégia de amostragem e incluímos todos. Foi a coisa mais acertada que fizemos. As mulheres são parte do sistema, são vitais para a existência do garimpo. Cerca de 90% delas são profissionais do sexo. Algumas se integram, fazendo outro serviço, como cozinhar para o garimpo, no baixão, a área em que exploram ouro. Uma mulher que cozinha para os garimpeiros pode ter sido uma prostituta e se envolver com algum garimpeiro, pegar xodó, como dizem, aí podem passar a viver juntos e ela fica meio exclusiva desse homem. Fizemos testes rápidos de IST em todo mundo.

Encontraram muita IST?
Esperávamos que as taxas fossem ainda mais altas. Cerca de um quarto das pessoas estava com sífilis ativa, o que não é um número muito maior do que entre profissionais do sexo ou travestis e trans que investigamos recentemente em cinco capitais brasileiras. O problema é que não tem uma unidade de saúde na maioria dos vilarejos, chamados de currutelas. Em um deles há um prédio para funcionar como um postinho, mas não conseguem profissionais da saúde que queiram ir lá. Para ir até o serviço médico mais próximo e tomar uma injeção custa R$ 400 de mototáxi. Como as pessoas não têm como pagar, não se tratam. Encontramos uma prevalência de HIV em média de 2,5%, bem mais alta que na população nacional, que é de 0,5%. Os últimos estudos nacionais indicavam uma prevalência próxima de 5% entre profissionais do sexo, mas lá só encontramos esse valor em uma localidade.

Nas escolas médicas, a transexualidade deveria ser abordada nas suas múltiplas dimensões, em todas as especialidades

Quem está mais infectado? Homens ou mulheres?
Os homens, o que sugere que não são elas que estão disseminando as IST ali. No garimpo também encontramos mulheres trans, que lá parecem não ser vítimas de violência. A líder de uma das currutelas é uma mulher trans. Outro fato interessante foi constatarmos muitas relações homossexuais entre as mulheres, algo que não imaginávamos. Se as relações com os homens são comerciais, provavelmente o prazer se dá em outro lugar, com outras pessoas. Todos têm uma carência muito grande de serem escutados. Ouvir as histórias e entender como chegaram até ali acaba resgatando nosso senso de humanidade. Algumas profissionais do sexo foram para lá porque no garimpo se paga muito mais do que fora, então todo ano passam uma temporada ali e fazem um pé de meia, enquanto os filhos ficam com parentes ou com outra pessoa na cidade. Elas vão voluntariamente, mas muitas caem em um esquema que as deixa aprisionadas, porque têm de pagar para viajar, para usar os quartos dos cabarés, para estarem bem produzidas, roupas, cabelos, unhas. Elas rapidamente acumulam uma dívida difícil de pagar, então o sonho delas é um garimpeiro pegar xodó ou pagar a dívida delas.

Desde quando você trabalha com doenças sexualmente transmissíveis?
Desde que saí da universidade, em 1983, com os primeiros casos de HIV/Aids no Recife, trabalhando na vigilância epidemiológica da Secretaria de Estado da Saúde. Éramos uma equipe pequena e, para cada caso, tínhamos de lidar com a pessoa infectada, com a família e os preconceitos, achar um hospital que atendesse e ligar pessoalmente para o médico. Resolvi vir para São Paulo fazer pós-graduação, entrei no mestrado na USP, fiz um concurso para a prefeitura e fui indicada para compor um grupo que ia estudar a possibilidade de trazer estudos com vacinas contra o HIV para o Brasil. Era um projeto coordenado por José da Rocha Carvalheiro, da USP de Ribeirão Preto, e Mary-Jane Spink, da PUC [Pontifícia Universidade Católica] de São Paulo. Acabei coordenando o trabalho de campo desse projeto, chamado Bela Vista. Foi meu primeiro contato real com o contexto da chamada cena gay, porque, em Pernambuco, meu contato era com as pessoas já infectadas. Eu não sabia nada do mundo gay.

Como foi entrar nesse mundo?
Precisei me despir dos preconceitos e enxergar as pessoas com empatia e respeito. As pessoas me testavam. Em uma apresentação do projeto Bela Vista para uma organização não governamental, um dos ativistas resolveu me provocar e perguntou o que eu faria se o meu filho dissesse que era gay. Falei que eu sabia que ele teria dificuldades na vida, mas que seria meu filho e teria todo o meu apoio, sempre. Eu levava meus filhos pequenos para as atividades do projeto e eles cresceram com uma relação muito naturalizada com os grupos com os quais eu trabalho até hoje. É um aprendizado grande. A pesquisa me levou a frequentar os espaços dos gays e trans. Apesar de ser uma pessoa cis e hétero, creio que sou aceita porque de alguma maneira as pessoas identificam minha postura de respeito, a empatia e o senso de justiça social, os mesmos valores humanitários que me fizeram querer ser médica.

Como fortalecer a convivência ou, como você disse, a relação naturalizada?
Aceitando as diferenças. Construímos uma ideia de que os diferentes nos ameaçam, pertencem a outra categoria de pessoas, são inferiores. As raízes desse preconceito são profundas. Em anos recentes o trabalho da antropóloga Sonia Corrêa, do Observatório de Sexualidade e Política, com o jurista Rogério Junqueira, mostra o papel da igreja católica e das evangélicas conservadoras na gestão da agora chamada ideologia de gênero. Dos Estados Unidos, a filósofa norte-americana Judith Butler, em um livro recente, Quem tem medo do gênero? [Boitempo, 2024], mostra como a questão de gênero se tornou uma bandeira da extrema-direita. O próprio sistema de saúde, que deve acolher, acaba sendo um espaço de discriminação e sofrimento.

Criss de PauloMaria Amélia, Paulo Abati (de camiseta branca) e dois garimpeiros da região de Itaituba (PA)Criss de Paulo

Por quê?
A formação médica não prepara para lidar com os corpos trans, com suas necessidades específicas, e os profissionais nos serviços de saúde têm dificuldade em falar com uma pessoa transexual. Isso se reflete na adesão aos cuidados e tratamentos. Se alguém que vive com HIV é discriminado em um serviço de saúde, não volta. Nas escolas médicas, a transexualidade deveria ser abordada nas suas múltiplas dimensões, em todas as especialidades, na saúde mental, endocrinologia, ginecologia, obstetrícia, otorrino, cirurgia. Na Santa Casa, temos aulas isoladas no primeiro ano, no segundo e no quinto, mas não é suficiente. Uma novidade promissora foi a criação, em 2024, da liga de saúde da população LGBT da Santa Casa, pelos próprios alunos, para aprofundar temas que não têm o espaço necessário no currículo. Os estudantes fazem encontros quinzenais ou mensais, nos horários livres, e levam hebiatras, psiquiatras, cirurgiões, ginecologistas, pessoas que trabalham com o atendimento especializado à população trans para falar com eles.

Se pudesse dar uma ou duas sugestões para alguém que vai atender essa população, o que diria?
A primeira, eu diria para se colocar no lugar do outro, com empatia, que é uma habilidade necessária e importante da competência de qualquer médico. Se você tem empatia e faz perguntas de como proceder, imediatamente se quebra uma primeira barreira. Não é incomum que nas consultas essas pessoas jamais sejam examinadas com atenção. Os médicos não pedem para tirar a roupa e só fazem perguntas, mal olhando nos olhos. As pessoas trans já chegam nos serviços de saúde com uma história de discriminação. Seria esperado que encontrassem profissionais capazes de olhá-las nos olhos, de respeitá-las e perguntar como elas querem ser chamadas. Sempre digo para os estudantes e para os colegas médicos que existe algo chamado profissionalismo, que é como você mantém os seus valores e consegue cuidar de outras pessoas de acordo com a ética exigida por sua profissão. O segundo conselho que eu daria é que temos de dar mais atenção à educação em todos os níveis. Deveríamos estar falando sobre saúde sexual para crianças e adolescentes em todas as escolas, mas isso está virando tabu, fala-se quase sempre somente sobre o sistema reprodutivo. Os estudantes querem saber sobre sexo de modo mais abrangente e, como não têm informação na escola, estão se formando pelo que consomem nas redes sociais.

Quais são os principais problemas de saúde das pessoas trans que o sistema público de saúde precisaria atender?
Há problemas gerais, como os que afetam quaisquer pessoas, e outros mais específicos, relacionados com a afirmação de gênero. No caso dos problemas gerais, as pessoas precisam ser tratadas na sua integralidade, da pressão arterial à dieta. Os problemas específicos incluem um ciclo complexo. Várias pesquisas, incluindo as de nosso grupo, mostram que a maioria das pessoas trans, para realizar as transformações corporais que vão se adequar melhor às suas necessidades de identidade de gênero, usam hormônios por conta própria, o que pode resultar em vários riscos. Elas tendem a imaginar que uma dose mais alta poderia acelerar o processo de transição, mas na verdade pode aumentar o risco de acidentes vasculares cerebrais. Outro problema é o acesso limitado aos procedimentos cirúrgicos. Se a cirurgia for genital, a espera é de anos, muitos anos, e a espera só aumenta o sofrimento mental. Agora, olhando o lado bom, temos cada vez mais vozes no Parlamento, pessoas trans bastante poderosas, falando sobre essas questões. Temos a Érica Malunguinho, a primeira mulher transgênero da Assembleia Legislativa de São Paulo [deputada estadual de 2019 a 2023], Erika Hilton [deputada federal por São Paulo desde 2023] e Duda Salabert [deputada federal por Minas Gerais desde 2023] no Congresso Nacional. São parlamentares trans com muita força e inspiram muito as populações que elas representam.

Homossexuais e trans respondem por 2% da população brasileira. Está correto?
É uma estimativa que serve para mostrar a necessidade de incluir no censo questões capazes de identificar com precisão quantas pessoas são transexuais. As necessidades de uma pessoa trans ou de uma pessoa não binária são específicas e precisam ser observadas no desenho das políticas públicas. Há estudos, incluindo o de um ex-aluno de doutorado, José Luis Gomez, sobre a experiência dessas pessoas na escola durante a adolescência. O termo mais apropriado não seria nem evasão escolar, mas expulsão. Elas são expulsas da escola, porque sofrem bullying e assédio dos colegas. Muitas vezes as próprias instituições não querem essas crianças lá. A segregação resulta em menos oportunidades para ocupar espaços profissionais mais qualificados. O município de São Paulo tem há alguns anos o que eu considero a política pública mais interessante desse ponto de vista, que é um programa chamado Transcidadania. O programa dá bolsas de estudo durante dois anos para pessoas trans complementarem o ciclo educacional e prepara essa pessoa para o mercado de trabalho. Grandes empresas têm aberto espaço para a contratação de pessoas trans. A discussão é em que medida essas empresas, de fato, estão comprometidas com a permanência das pessoas, porque uma parte das empresas contrata, apresenta-se ampliando a diversidade, ganha créditos no mundo corporativo, mas depois não cria condições de permanência. Já tivemos vários depoimentos de pessoas contratadas por corporações que, quando começam a trabalhar, não têm uniforme do tamanho delas e nenhuma solução à vista.

Deveríamos falar sobre saúde sexual, não só sobre o sistema reprodutivo, para crianças e adolescentes em todas as escolas

Em 2014, você criou o Nudhes. Qual foi sua motivação?
Foi trabalhar de uma maneira orgânica com HIV e com as populações mais atingidas. É um problema complexo, em razão não só das questões biológicas relacionadas a essa infecção, mas das questões sociais. O HIV/Aids surge associado ao estigma contra as populações mais afetadas. A epidemiologia busca identificar as causas dos problemas, os chamados determinantes, e no caso do HIV os determinantes sociais assumem um papel importante. É um problema que exige olhares de muitas disciplinas científicas e abordagens multi e interdisciplinares. Fomos constituindo um grupo de pessoas com formações distintas, antropólogos, psicólogos sociais e outros profissionais da saúde. Já trabalhávamos juntos desde pelo menos 2012. Há outros grupos multidisciplinares no Brasil, mas em geral tendo por base a formação acadêmica. Uma característica do Nudhes, desde o início, é sua diversidade, representada pelo envolvimento de pessoas pertencentes às populações que estudamos. É um grupo majoritariamente formado por jovens gays, lésbicas, pessoas trans, mulheres negras. Nem todos possuem ou visam a uma titulação acadêmica, mas são pesquisadores e trazem um saber inestimável para os estudos. Há um debate em várias áreas da ciência sobre as questões identitárias, questionando se as pessoas pertencentes aos grupos estudados teriam isenção para estudá-los. É uma perspectiva que indica um entendimento da ciência como algo neutro, e todos sabemos que não é. Creio que deveríamos estar nos perguntando como incorporar os saberes dessas comunidades nos estudos que forem realizados a respeito delas mesmas.

Como lidar com essa situação?
Nossa abordagem tem sido continuar a produzir conhecimento que possa ser legitimado dentro dos marcos que a ciência exige. Mas a perspectiva das pessoas é um dos componentes mais importantes nessa produção de conhecimento. Como mulher hétero, cis e branca, não tenho como traduzir a experiência subjetiva de pessoas homossexuais ou transexuais. Posso descrever e documentar, utilizando qualquer abordagem científica cabível, mas não tenho como sentir. Não tenho como dizer “sei como é”. Na verdade, não sei como é. É difícil essa separação completa de pessoas, indivíduos e pesquisadores em qualquer área. O que nos protege é termos estudos, que submetemos às agências e a revisões de pares, como qualquer cientista. Mas procuramos inserir as visões das populações estudadas e estamos muito atentos para não fazer ou dizer nada que possa violentar os corpos, as pessoas e as identidades.

Entre as pesquisas, o que destacaria?
O primeiro grande projeto do Nudhes, por sinal financiado pela FAPESP, em 2012, foi o SampaCentro. Até então não tínhamos dados atualizados sobre como estava a epidemia de HIV entre gays e outros homens que fazem sexo com homens. Usamos uma metodologia bastante inovadora para aquele período, chamada TLS, Time Location Sampling [amostragem de tempo e localização], para estudar os espaços de sociabilidade, a chamada cena gay, nas regiões da República e da Consolação, no centro de São Paulo. Mapeamos fisicamente todas as ruas e olhamos quais eram os espaços de sociabilidade gay e as barreiras de circulação. Além do mapeamento, realizado em parceria com as antropólogas Regina Fachini e Isadora Lins, da Unicamp, realizamos uma amostra aleatória dos frequentadores, que responderam a um questionário e fizeram teste de HIV. Conhecer a prevalência de HIV no grupo denominado homens que fazem sexo com homens foi uma das grandes contribuições do Nudhes. Nos últimos anos fizemos vários estudos com a população trans. Documentamos a dimensão, as formas e as consequências da violência e da discriminação que essas pessoas são vítimas. Um dos nossos estudos revelou que as taxas de ideação suicida e de suicídio entre travestis e mulheres trans são assustadoramente mais altas do que as da população geral de São Paulo. Inauguramos a prática de apresentar os resultados das pesquisas primeiro para as próprias comunidades que estudamos. Também trouxemos alguns conceitos inovadores. Por exemplo, a navegação de pares, um termo que tem sido bastante utilizado nos Estados Unidos.

Olhando o lado bom, temos cada vez mais vozes no Parlamento, pessoas trans bastante poderosas, falando sobre essas questões

O que é a navegação de pares?
São membros da comunidade que ajudam outras pessoas da mesma comunidade a navegar o sistema de saúde. Eles acompanham, desde a recepção ao médico. Testamos esse conceito primeiro com mulheres vivendo com HIV, para avaliar se a navegação de pares ajudaria na adesão ao tratamento, em um projeto chamado Transamigas, com financiamento dos NIH [Institutos Nacionais de Saúde dos Estados Unidos]. Fizemos um ensaio rigoroso. Mulheres eram aleatoriamente alocadas para receberem ou não navegadoras de pares. As Navegadoras de Pares (NP) poderiam, por exemplo, acompanhar uma pessoa não aderente ao tratamento e que tinha resistência a voltar para o serviço médico: “Você vai voltar lá, eu vou com você, e vamos enfrentar o médico que a expulsou da sala”. As NP recebiam suporte de uma equipe para dar apoio às participantes sob sua responsabilidade. Fazemos toda uma formação não somente tratando de questões de saúde, da importância de manter o tratamento, mas também sobre questões de direitos, comunicação, entre outras. Mostramos que essa estratégia contribuía com pessoas vivendo com HIV e agora testamos com outro grupo de pessoas sem HIV para ver se melhora a adesão à prevenção. Ao documentar essas possibilidades de ação, vamos revelando esses mecanismos e chamando a atenção dos formuladores de políticas públicas para tentar, quem sabe, incorporar o que funciona, corrigir o que é barreira de acesso

Conseguiu mudar algo?
Documentamos muitas situações difíceis, mas também observamos uma progressiva mudança. Alguns serviços públicos incorporaram pessoas trans na recepção, como profissionais da saúde. Já temos médicas, médicos, enfermeiras trans trabalhando no sistema de saúde. A mudança não é só fruto do trabalho do Nudhes, claro, é fruto de muitas lutas, de uma mudança social. Desde 2018, o Brasil tem profilaxia pré-exposição para HIV, com um protocolo que inclui os testes de outras IST, clamídia, gonorreia, sífilis a cada três, quatro meses. Isso é uma coisa boa, porque melhora o diagnóstico das outras, que são mais negligenciadas.

Quais os planos?
Em 2023, fundamos um Nudhes como organização da sociedade civil, uma OSC, para abrir espaço não só de outras possibilidades de financiamento, mas fundamentalmente de atuação. Não deixaremos de ser um grupo acadêmico, mas a natureza do que o Nudhes vem fazendo dialoga muito com a de uma organização social. Na pandemia, angariamos dinheiro e distribuímos cesta básica, água, roupa e máscaras para umas mil pessoas com as quais trabalhamos. Entre as profissionais do sexo, quem tinha algum suporte não foi para a rua durante a pandemia fazer sexo sem máscara. Quem não tinha como sobreviver foi. Não conseguimos realizar esse tipo de intervenção apenas com os recursos dos projetos, precisamos buscar outras fontes de financiamento. Nessa nova conformação, somos 12. Pessoalmente, minha prioridade agora é viajar para Barcelona, na Espanha, e acompanhar o nascimento da minha segunda neta, Eva, filha da minha filha, prevista para nascer em janeiro. A primeira, filha do meu filho, se chama Olívia e tem 2 anos.

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