Maria Paula Curado logo percebeu que operar tumores de cabeça e pescoço não era a melhor forma de empreender um combate amplo ao câncer. Trocou a cirurgia pela epidemiologia e reuniu instituições de pesquisa no projeto Headspace, um consórcio internacional que investiga as características genéticas e epidemiológicas dos cânceres de cabeça e pescoço e contou com financiamento europeu e da FAPESP. Sua trajetória abrangente e decidida lhe rendeu, em agosto, aos 73 anos, a homenagem como Personalidade de Destaque no Prêmio Octavio Frias de Oliveira, patrocinado pelo Instituto do Câncer do Estado de São Paulo (Icesp) e pelo jornal Folha de S.Paulo.
Formada pela Universidade Federal de Goiás (UFG), ela realizou especialização no A.C.Camargo Cancer Center, criado em São Paulo nos anos 1950 (ver reportagem), onde depois concluiu o doutorado e agora chefia o Grupo de Epidemiologia e Estatística em Câncer (Geecan), no Centro Internacional de Pesquisa (Cipe). Seu olhar populacional sobre a doença começou nos anos 1980, quando propôs fazer o registro de todos os casos de câncer em Goiânia, onde iniciou a carreira.
Epidemiologia do câncer
Instituição
A.C.Camargo Cancer Center e Fundação Antônio Prudente (FAP)
Formação
Graduação em medicina pela Universidade Federal de Goiás (UFG), mestrado em cirurgia de cabeça e pescoço no Hospital Heliópolis e doutorado em oncologia na FAP
Curado foi a primeira mulher presidente da Sociedade Brasileira de Cirurgia de Cabeça e Pescoço (SBCCP). Após tornar-se referência na área no país, viveu na França por 10 anos, primeiro como chefe do departamento de Epidemiologia Descritiva da Agência Internacional de Pesquisa em Câncer (Iarc) da Organização Mundial da Saúde (OMS) e depois como pesquisadora no Instituto Internacional de Pesquisa e Prevenção (Ipri).
Ela vem de uma família de médicos destacados do município de Goiás Velho e vive atualmente com o filho de 30 anos. Em meados de agosto, conversou com Pesquisa FAPESP no Cipe sobre incidência de câncer de cabeça e pescoço, tratamentos e cura funcional. Leia os principais trechos da entrevista.
O Brasil se destaca na incidência de cânceres de cabeça e pescoço?
O país com maior incidência de cânceres de cabeça e pescoço é a Índia. Lá ocorrem 50% dos casos, porque eles mastigam muito a folha de betel, uma trepadeira, com noz de areca, uma palmeira. Nós temos uma taxa alta, que varia de acordo com a região e a faixa etária. Aqui, a incidência cresce muito a partir dos 45 anos. O câncer de cavidade oral é mais comum em idosos, enquanto o de orofaringe ligado ao HPV [papilomavírus humano] afeta mais as pessoas na faixa dos 50 aos 59 anos.
Em quais regiões é mais frequente?
O Espírito Santo tem uma taxa alta, tanto dos tumores de cavidade oral quanto de orofaringe. Minas Gerais também.
Tem a ver com a alimentação?
Principalmente com o consumo de tabaco, de vape, de álcool e da transmissão do HPV por sexo oral. Em estudos que fizemos, vimos que o ex-fumante precisa esperar pelo menos 10 anos para que o risco de desenvolver câncer diminua. Se consumir álcool, demora mais ainda.
Antes os cânceres de cabeça e pescoço eram mais comuns a partir de 50 anos e, mais recentemente, começaram a aumentar em quem tem menos de 50, no Brasil, certo?
Isso aconteceu nos casos decorrentes da infecção pelo HPV. A proporção de mulheres com câncer de cabeça e pescoço também aumentou, com o problema aparecendo em uma idade um pouco mais jovem. Antes, a proporção era de quatro homens para uma mulher. Agora chegou a dois para um. A mulher saiu de casa, fuma e bebe. Tem uma vida mais parecida com a do homem.
A quais órgãos se refere quando fala em cabeça e pescoço?
À cavidade oral, formada por lábios, língua, gengivas e palato duro [céu da boca]; à orofaringe, que inclui o palato mole, a úvula, as tonsilas e a parede posterior da boca; ao nariz e aos seios paranasais; às glândulas salivares e à tireoide. Hoje há uma avalanche de diagnósticos de tumores na tireoide, porque toda mulher que vai a uma consulta ginecológica pede ultrassom. E qualquer nódulo vai para a análise patológica e a definição do diagnóstico.
Por que isso é um problema?
O câncer de tireoide é o mais frequente no mundo, mas, na maioria das vezes, é inativo. O nódulo não vira câncer. Para evitar a extração da glândula, que pode causar problemas, desenvolveram a técnica de queimar os nódulos. Efeito similar aconteceu com o câncer de próstata. Quando se criou o teste de detecção do PSA [proteína liberada pela próstata], todos os homens foram fazer, porque dispensava o exame de toque retal. A detecção de estágios muito iniciais levou a mais cirurgias desnecessárias, e o que aconteceu? A mortalidade aumentou. Em países como o Japão, no qual não se fazem exames de PSA, não houve aumento de mortalidade.
Em termos de tumores de cabeça e pescoço, a quais sintomas as pessoas deveriam ficar atentas?
O câncer de boca merece mais atenção, por ser de evolução rápida. As pessoas com frequência passam por médicos, dentistas e ninguém examina a boca. Talvez esses profissionais nem saibam fazer o diagnóstico. Quem tem que procurar o problema é o médico ou o dentista. O paciente precisa ser educado a fazer o acompanhamento de saúde.
Como evoluiu o tratamento desses tipos de câncer?
Mudou um pouco. Antes a gente tratava o estadiamento, o cancer stage. Examinávamos o paciente e olhávamos para o tamanho, a aparência e a localização do tumor. A nova classificação internacional, a TNM, proposta em 2018, classifica o câncer também com base em biomarcadores. Não é só o tamanho do tumor, mas se ele tem altas concentrações da proteína P16. Esse fator passa a influenciar o prognóstico, ou a chance de cura, e orienta para um tratamento mais preciso.
Faz-se o teste genético do tumor?
Teste de imuno-histoquímica, que usa anticorpos para detectar a presença da proteína. Se o tumor é P16 positivo, significa que há presença do HPV. No Brasil e nos Estados Unidos temos modalidades de tratamento adequadas aos pacientes que têm o vírus. Se for negativo, fazemos o tratamento de rotina. Os marcadores moleculares fazem hoje parte do estadiamento e, para alguns cânceres, são fatores prognósticos associados à cura. Isso permitiu dirigir melhor o tratamento e a sobrevida aumentou. A doença pode se tornar estável, o que permite à paciente conviver com ela. Hoje existem muitas drogas de uso oral, antes era tudo endovenoso. Também mudou o conceito de cura. Não se olha mais apenas para a eliminação completa do câncer. A pessoa pode ter uma sobrevida funcional, com capacidade e qualidade de vida, mesmo que continue com o tumor.
A pessoa pode ter uma sobrevida funcional, com capacidade e qualidade de vida, mesmo que continue com o tumor
Cura passa a significar conviver com a doença com qualidade de vida.
Exatamente. Antes o tratamento tinha que matar o câncer, mas matava a pessoa junto. Hoje estamos diante de um equilíbrio. Por exemplo, a mulher tem um câncer de mama grande e, na hora de fazer a mastectomia, descobre-se uma metástase pulmonar. No meu tempo de cirurgiã isso era sinônimo de morte. Agora, tiram-se os nódulos e a mulher segue vivendo. O novo enfoque é dar vida ao paciente. A cura é relativa, não é definitiva. Tem também uma série de drogas novas: agentes imunossupressores, anticorpos monoclonais, células CAR-T para tratar tumores hematológicos. A indústria farmacêutica está investindo muito e mudando o tratamento.
Os tratamentos mais avançados estão disponíveis a todos no país?
Uma coisa muito necessária, que falta no Brasil, são diretrizes que ajudem a tornar o tratamento universal. Para câncer de cabeça e pescoço, não temos. O médico no interior de Mato Grosso, por exemplo, recebe um paciente com tumor na borda da língua, vê um linfonodo ou dois aumentados. Qual conduta deve adotar? Se existem diretrizes, ele as acessa, toma uma decisão e pode justificar a conduta ao paciente. Há dois anos defendi o assunto em uma reunião com dirigentes regionais e conseguimos criar essas diretrizes para a América Latina. Estão publicadas, mas ainda não implementadas. Quando há suspeita de tumor de cabeça e pescoço, a orientação é fazer uma biópsia: tirar um pedacinho, pôr em um frasco e mandar para análise em laboratório. Um problema é que esse processo pode levar um ou dois meses no sistema público de saúde. Enquanto isso, o paciente fica esperando e o tumor cresce.
O diagnóstico precoce é importante?
Aqui no A.C.Camargo, cerca de 40% dos tumores de boca estão no estágio inicial. No SUS [Sistema Único de Saúde], que atende 75% da nossa população, 76% dos casos já chegam avançados. Nessas situações, não conseguimos saber onde o tumor começou. Para fazer política pública, temos de conhecer onde está a maioria dos tumores em estágios iniciais, para saber como agir. Precisamos fazer esse mapeamento porque influencia o prognóstico. Quando o paciente chega com um tumor em estágio avançado, mesmo aqui no A.C.Camargo, com acesso a exames tecnológicos e tratamento, não adianta. Ele morre. Se ele inicia o tratamento nas fases iniciais, tem mais chance de cura.
Você atende ainda?
Fui cirurgiã de cabeça e pescoço até 2007. Em Goiânia eu não tinha dinheiro para fazer pesquisa, então operava. Brinco que de cirurgiã rica passei a epidemiologista pobre. Vim completar minha formação e propus ao Luiz Paulo Kowalski, que era meu amigo, fazermos um estudo epidemiológico. Juntamos dados de Goiânia, Curitiba e do A.C.Camargo. Começamos em 1991 a recrutar pacientes para entender seus hábitos e saber por que desenvolviam câncer. Insisti para incluirmos fogão a lenha na análise. A fumaça era mesmo um dos fatores de risco para câncer de boca em Curitiba, onde usavam muito. Conseguimos publicar no Journal of the National Cancer Institute. Foi nosso primeiro artigo. Éramos eu, o Kowalski e o Benedito Valdecir de Oliveira, do Hospital Erasto Gaertner, de Curitiba. Depois, nos juntamos ao grupo da USP. Eu queria fazer epidemiologia porque acho que o importante é investigar os fatores associados à doença, para mudar o comportamento.
A experiência na epidemiologia já vinha de antes, não?
Montei o registro de câncer de base populacional de Goiânia. Começou porque perdi um paciente de 37 anos com câncer de boca. Fiz uma cirurgia ótima, estava toda orgulhosa, coisa de cirurgiã metida. Alguns meses depois, ele voltou com recidiva. Pensei: “Cirurgia já sei fazer, mas não adianta”. Então fui fazer um curso no Instituto Nacional de Câncer, no Rio de Janeiro. Lá, tinha uma professora colombiana, que vivia nos Estados Unidos. Quando terminavam as aulas, todos iam embora e eu ficava. Então, ela veio falar comigo. Contei que queria aprender a fazer registro epidemiológico e ela me ensinou um monte de coisas, trabalhava na Organização Pan-americana da Saúde e até me mandou um computador.
E criou o registro em Goiânia?
Comecei. É preciso pegar todos os casos de câncer da cidade, ir atrás de todos os hospitais, convencer os dirigentes a passar as informações. Eu já tinha mobilizado as fontes, mas precisava de autorização do Ministério da Saúde. Um dia vim a São Paulo e o Eduardo Franco e o Humberto Torloni (1924-2017) me chamaram para uma reunião em Brasília. Me disseram que, no ministério, perguntariam onde era preciso criar um registro no país e que eu deveria responder que era Goiânia. Aproveitei para convidá-los a conhecer o hospital onde eu trabalhava. Não era nada, comparado ao que já existia aqui no A.C.Camargo.
Como funcionava o registro?
Coletávamos idade, sexo, topografia [localização do tumor], estadiamento. Eram 24 horas por dia fazendo isso.
O registro já existia quando ocorreu o acidente com césio em 1987?
Tínhamos feito pouco antes. Trabalhamos muito. O governador pediu que eu ajudasse as vítimas e fui atender, com a condição de transferir, por lei, o registro para o Hospital do Câncer de Goiânia, onde eu trabalhava. Fizemos tratamentos preventivos, cirurgias para retirar lesões iniciais e impedir que se tornassem malignas. A situação causou muitos problemas mentais na população, as pessoas ficaram abaladas. Aprendi muito, principalmente a questão da comunicação. Dar a informação correta, confiável.
Houve alterações no padrão de câncer depois do acidente?
Criamos um protocolo para fazer o acompanhamento das vítimas e vimos que não teve um pico de casos de câncer. Uma mulher teve câncer de mama, mas não sabemos se tem relação com o acidente. Acho que não. No grupo exposto, de 249 pessoas, um funcionário teve mielodisplasia, um quadro pré-cancerígeno no qual ocorrem falhas na produção das células sanguíneas na medula óssea.
Em Goiânia, vimos mudanças na incidência de câncer de mama, de colo do útero, que hoje aparecem em pacientes mais jovens
O registro continua ativo em Goiânia? O que revelou nesse tempo?
Até hoje funciona. Foi o primeiro do Centro-Oeste, agora Brasília também tem. Nesses 30 anos, conseguimos mostrar como está a situação do câncer em Goiânia e servir de referência para outros lugares. Vimos mudanças na incidência de câncer de mama, de colo do útero, que atualmente aparecem em pacientes mais jovens. Melanoma também está aumentando. Também vimos impacto de medidas de prevenção. Agora encafifei que temos de estudar os tumores raros. As pessoas vivem mais, então aumentam as chances de aparecerem esses tumores. Os médicos precisam ser treinados para suspeitar dos casos e fazer os diagnósticos.
Como funciona o Headspace?
É um consórcio internacional que reúne centros de pesquisa de 15 países para investigar as características genéticas e epidemiológicas dos cânceres de cabeça e pescoço. Quando fui para a França, em 2007, fizemos um segundo projeto de câncer de cabeça e pescoço, com colaboradores de vários estados brasileiros e alguns países da América do Sul. Recrutamos cerca de 4 mil pacientes e analisamos a ocorrência e os fatores de risco que predispunham a esses tumores. A partir desse trabalho, um amigo, o epidemiologista britânico Paul Brennan, sugeriu criarmos o Headspace. Ele veio para cá, reunimos os grupos, discutimos e fizemos a proposta que ele apresentou na Comunidade Europeia. Ganhamos os fundos. Depois fizemos um acordo, mandamos à FAPESP e conseguimos o financiamento para o projeto que terminou em agosto e tenta entender as razões para o atraso no diagnóstico dos cânceres de cabeça e pescoço. Começou com pesquisadores de Goiânia, São Paulo, Argentina, Uruguai e dos Estados Unidos. No meio do caminho, entraram Irã e Índia. Hoje, somos 15 centros. Tratamos de comunicação, diagnóstico e análises do genoma. Queríamos conhecer quais são as mutações mais frequentes nesses 15 países, como funcionavam os sistemas de saúde e por que o diagnóstico de câncer de cabeça e pescoço era tardio.
A situação é semelhante nos 15 países?
É bem diferente. Na América do Sul – Uruguai, Colômbia, Argentina, Brasil –, somos mais ou menos parecidos, mas as diferenças entre os sistemas particular e privado influenciam. Aqui, o SUS oferece diagnóstico e tratamento sem custo, mas o paciente que pode pagar convênio ou atendimento particular tem atendimento mais ágil. Na Itália, por exemplo, o sistema é público, mas dizem que há fila. Fizemos um artigo com base em questionários e ficou evidente que há diferenças no tempo de diagnóstico. No Reino Unido há um prazo máximo de 60 dias para começar o tratamento.
Também temos uma legislação que estabelece esse prazo, não?
Temos. Depois que se faz o diagnóstico, o tratamento deve ser iniciado em até 60 dias. Mas não há mecanismos para obrigar a cumprir esse prazo. O sistema britânico funciona porque o controle é muito rígido.
Mesmo assim, lá surgem tumores em estágio mais avançado?
Sim, não sei por quê. A sobrevida para câncer de mama na Inglaterra, por causa da fila do NHS [Sistema Nacional de Saúde], é a mais baixa da Europa.
A fila parece ser um problema comum nos sistemas públicos de saúde. Qual a solução?
Acho que falta regionalização. Em Goiânia, o SUS funciona de um jeito. No Nordeste, a gestão local será de outra forma. Não há um modelo que funcione em todo lugar. O equipamento que existe no SUS de Barretos, no interior paulista, não é o mesmo disponível em Goiânia ou em Aracaju. Essa diferença tem que ser balizada.
O que viu no período que passou na Iarc, na França?
Aprendi muita coisa. É uma instituição já cristalizada e bem europeia, diferente do que estou acostumada. Me puseram para fazer um dos volumes do CI5, um livro que publicam a cada quatro anos sobre a incidência de câncer nos cinco continentes.
Você quis mudar algo?
Sim, duas coisas. Os registros eram pobres e não estavam digitalizados. Quem queria ter acesso tinha de comprar os programas. Criamos um software que se chama CanReg5, aberto para todo mundo, sem pagar licença. Hoje, está mais avançado, tem outras versões. Outra coisa que queria mudar era que, no CI5, só usavam a topografia para descrever os casos: câncer no nariz, por exemplo. Mas a morfologia é mais importante para o tratamento do que o lugar onde ele está. Pela primeira vez, começamos a fazer o registro internacional da incidência do câncer, incluindo informações sobre a morfologia. Fiz muitos amigos nesse período, temos projetos juntos até hoje. Mas eu quis voltar. Aqui tem muita coisa para se fazer.
Quando voltou, você quis fazer algo diferente do que fazia?
Eu queria fazer epidemiologia do câncer, porque no Brasil não tinha. Aqui é um hospital de câncer e é importante os estudantes aprenderem mais sobre epidemiologia. Precisava criar uma mentalidade nova, e isso toma tempo.
Quando os europeus vieram, trouxeram os hábitos de beber, fumar, usar rapé, associados ao câncer de cabeça
Qual é essa mentalidade?
Olhar o câncer não como um número. Há sempre uma pessoa, um impacto social. Quando dizem que 50 mulheres em cada grupo de 100 mil têm câncer em um ano, pergunto aos estudantes: “O que isso quer dizer? Qual a faixa etária? Como essas mulheres estão morrendo? Como está o acesso dos pretos e pardos ao sistema de saúde?”. A incidência de tumores de cabeça e pescoço está aumentando e os pretos estão morrendo mais do que os pardos, sem nem ter diagnóstico. Os pardos estão começando a ter acesso ao sistema de diagnóstico e tratamento, então diminui a mortalidade. Os pretos ainda não.
Você participou de um artigo de 2024 sobre o impacto do colonialismo no câncer no Brasil. Pode explicar?
Quando os europeus vieram, eles trouxeram os hábitos de beber, fumar, usar rapé. O câncer de cabeça, principalmente o de boca, está associado a esses hábitos. O colonialismo não só foi a conquista da terra, mas também a inclusão de novos hábitos culturais.
Como surgiu o seu interesse pela cirurgia oncológica?
Sou edipiana, meu pai era médico. Ele era otorrino e me levava para ajudar na cirurgia quando eu tinha 11 anos. Isso me influenciou a ir para a cirurgia e a me interessar por cuidar, correr para atender às pessoas. Para a epidemiologia, quem me influenciou foi minha mãe, que era uma mulher de opinião. Ela fazia campanha política, ia para a rua. Era uma leitora assídua e fazia a gente ler. Li muito sobre Marie Curie. Meu avô tinha a maior biblioteca de Goiás Velho. Eu ficava pensando naquela mulher lá no frio, comendo cenouras sem luz e descobrindo tantas coisas. Fazia as radiografias, levava para a guerra. Aquilo me impressionou muito e me despertou para a ciência.
Como foi vir para São Paulo completar a formação em cirurgia oncológica, área dominada pelos homens?
Vim de Goiânia no meu fusquinha, papai arrumou um rapaz para me ajudar a dirigir até aqui. Quando cheguei, encontrei um residente e pedi orientação, não sabia onde devia ir. “Te vira”, ele disse. Tive que descobrir onde era o quarto. Eles apostavam quanto tempo eu ia durar.
Por quê?
Porque eu era a única mulher na cirurgia, uma especialidade masculina. Na primeira cirurgia de cabeça e pescoço em que entrei, me puseram para ficar de pé só segurando o afastador, por 12 horas. Em geral, o residente júnior é quem faz a traqueostomia, mas, nessa vez, não fiz. Quando terminou, fui lá e disse: “Essa foi a primeira e a última vez que vocês fizeram a minha traqueostomia”. A mulher que mais fez traqueostomia neste hospital fui eu.
Você enfrentou os dois estigmas, o de ser mulher e o de não ser paulista.
Uma vez houve uma reunião com uma autoridade e todos só diziam “sim, senhor”. Quando chegou ao fim, peguei minhas anotações e contestei várias coisas. No dia seguinte, ele mandou me chamar: “Quem é você?”. “Sou Maria Paula, de Goiânia”, respondi. “E lá tem faculdade de medicina?” Eram coisas assim que eu ouvia, por ser de outra região do Brasil.
Como foi presidir a Sociedade Brasileira de Cirurgia de Cabeça e Pescoço?
Havia uma divisão entre São Paulo e Rio de Janeiro. Em uma reunião, disse que precisávamos sair do eixo Rio-São Paulo. Foi posto em votação, perdemos. Avisei que na vez seguinte não perderíamos, era necessário mobilizar os integrantes. Juntamos gente do Nordeste, votamos e levamos a reunião para Natal. A primeira vez em 25 anos fora do eixo Rio-São Paulo. A seguinte foi em Goiânia.
Abriu caminho para mais gente.
Fico superfeliz com isso. Não foi fácil, mas, no final, eles também gostaram de olhar o Brasil. Precisei brigar, parecia que os mandachuvas já tinham combinado quem seria o próximo presidente. Mas ganhei a eleição. Com o tempo, as coisas mudaram. A Fátima de Matos é agora a segunda mulher, depois de quase 20 anos.
Tudo isso lhe rendeu a homenagem no Prêmio Octavio Frias de Oliveira.
Acho que sim. Na cerimônia, eu disse que o Brasil tem muita desigualdade e que São Paulo deveria colaborar mais com outros estados, conhecer o país e mostrar o que é possível fazer. A FAPESP pode contribuir para isso.
Precisamos informar mais e ouvir os pacientes, como aquele cujo problema era não conseguir beijar a mulher após a cirurgia
Como é sua atuação na formação de novos médicos?
Sou muito ativa. Já disse aos meus alunos que tem uma suíte presidencial no céu para mim. Adoro os estudantes, mas é difícil. Eles são muito jovens e têm um jeito de encarar a pesquisa científica muito diferente daquele do meu tempo. Aprendo com eles. Essa geração não tem compromisso, faz as coisas quando e como quer. Tento fazê-los pensar e enxergar as pessoas mais do que os números, o salário.
Por que viu a necessidade das mídias sociais para o Headspace?
Temos que ampliar. Por que a identificação e o rastreamento do câncer de mama melhoraram? Por causa da comunicação. Quando se criou aquele alvo azul, gerou-se conscientização. Estamos em outro momento, que é o de investir nas mídias sociais. Nós, especialistas, temos o costume de falar em código, “carcinoma espinocelular”. Precisamos decodificar e informar mais, ouvir os pacientes, como aquele que nos disse que o maior problema era não conseguir beijar a mulher depois da cirurgia, porque a boca ficou torta. Precisamos fazer menos terrorismo e falar mais de saúde, da importância de se cuidar.
Você também teve um câncer. O que aprendeu como paciente?
Como médica, aprendi que informar bem o paciente é importante. Não foi uma época fácil, eu fazia quimioterapia e vinha trabalhar. O que ia ficar fazendo em casa?
A reportagem acima foi publicada com o título “Maria Paula Curado: De olho nos
padrões do câncer” na edição impressa nº 356, de outubro de 2025.
