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Física

Matéria efêmera

Estudo detalha a interação de partículas que nascem e morrem no núcleo atômico a todo momento

EDUARDO CESARDiferença essencial: vácuo é o estado de energia mínima e a matéria (bolhas) de energia mais altaEDUARDO CESAR

Há uma intensa agitação no núcleo atômico. Os prótons e os nêutrons, elementos constituintes do núcleo, estão cercados por nuvens de outras partículas que surgem e desaparecem a todo momento. Olhando em detalhe no interior dos prótons e dos nêutrons encontramos as partículas básicas da matéria, os quarks. Mas dentro de cada próton e nêutron não há só três quarks, como se vê nos livros didáticos, mas muitos, formando pares de partículas e antipartículas, com cargas opostas, de modo que se anulam e na contabilidade geral sobram apenas três. Os quarks se movimentam quase à velocidade da luz, colidem entre si e com as paredes internas dos prótons e dos nêutrons.

Desse modo, originam mais partículas efêmeras, que também somem sem avisar. “É uma bagunça”, reconhece Marina Nielsen. O trabalho dela e de outros físicos da Universidade de São Paulo (USP), em conjunto com especialistas da Universidade Estadual Paulista (Unesp), está ajudando a entender melhor como nascem e morrem as partículas que fazem os prótons e os nêutrons engordarem ou emagrecer numa velocidade alucinante, com base em teorias que modificam o conceito de matéria e de vácuo, visto não mais como algo vazio, mas cheio.

Os resultados obtidos por esse grupo se devem à intensa exploração das ramificações de uma teoria criada há quase 30 anos, a cromodinâmica quântica (QCD), que explica as interações dos quarks – bastante distintas se as partículas se encontram em situações normais, chamadas de baixas energias, ou nos aceleradores de partículas, túneis com quilômetros de extensão em que os núcleos atômicos colidem, em patamares de energia milhões de vezes mais alto.

Nas situações corriqueiras, aparecem, principalmente, os píons – partículas formadas por pares de quark e antiquark, idêntico ao quark, a não ser pela carga contrária. Descobertos em 1947 por um grupo de físicos que incluía o brasileiro César Lattes, os píons se espalham em todas as direções e constituem a nuvem ao redor dos prótons e nêutrons. Os píons mantêm prótons e nêutrons unidos no interior do núcleo e garantem a estabilidade tanto do núcleo mais simples, o dêuteron, constituído por apenas um próton e um nêutron, quanto de núcleos mais complexos, como o de ouro, formado por 79 prótons e 118 nêutrons.

Para estudar os fenômenos de baixa energia, os pesquisadores da USP e da Unesp adotaram uma abordagem chamada simetria quiral, análoga à que explica a semelhança das mãos (chiros, em grego): diante de um espelho, a imagem da mão esquerda se parece com a da mão direita e vice-versa. Do mesmo modo, o mundo dos quarks praticamente não muda quando refletido num espelho imaginário. “A simetria quiral embasa o tratamento rigoroso da interação entre píons e outras partículas”, comenta Manoel Robilotta, coordenador do projeto. Os físicos paulistas mostraram que essa abordagem pode ser adotada também para entender o comportamento das partículas em altas energias.

No interior dos aceleradores, núcleos atômicos colidem entre si e produzem milhares de partículas diferentes, que impressionam também pela diversidade de tamanhos e comportamentos. Para distinguir o que se formou, os físicos procuram um tipo especial de partícula, chamada jota-psi, formada por um par de quark e antiquark. A quantidade de jota-psi pode ser um indicador importante da criação de um tipo de matéria que teria existido apenas logo após o Big Bang, a explosão que, acredita-se, originou o Universo. Esse estado é um plasma, uma sopa muito quente, feita de quarks e glúons (os glúons funcionam como uma espécie de mola ou elástico que une os quarks no interior dos prótons e nêutrons). De tão quente, com até 10 trilhões de graus Celsius, esse plasma deve dissolver o jota-psi.

Procuram-se pistas do jota-psi porque essa partícula funciona como uma espécie de termômetro: quando não é encontrado entre os fragmentos da colisão, é um sinal de que a temperatura atingiu um valor altíssimo e o plasma primordial foi recriado. Ou, de modo inverso, quando é encontrado entre as partículas produzidas na colisão, é quase certo que o plasma não se formou. “Esse termômetro seria bom mesmo?”, indaga Fernando Navarra, outro integrante do grupo.

“Em princípio, sim, mas há um problema: o jota-psi poderia desaparecer de outro modo, interagindo com os píons que surgem abundantemente nas colisões.” Essa possibilidade já havia sido estudada, sem conclusões. O problema renasceu em 1998, quando o Centro Europeu de Pesquisa Nuclear (Cern) registrou um fenômeno estranhíssimo, chamado supressão anômala do jota-psi, que poderia indicar que o plasma poderia ter finalmente aparecido. Foi um episódio passageiro, verificado quando o equipamento atingiu o máximo de energia, momentos antes de ser desativado e substituído pelos atuais.

Os físicos da USP, em colaboração com Gastão Krein, da Unesp, refinaram os cálculos e chegaram à conclusão de que a probabilidade de o jota-psi ser destruído nas interações com píons é a metade do que se pensava. Assim, o Cern teria produzido, de fato, plasma de quarks e glúons, portanto, uma espécie de filhote do Big Bang. “O que foi observado no Cern mais provavelmente é plasma do que matéria normal”, diz Navarra. Os resultados, publicados no ano passado na Physical Review C e neste ano na Physics Letters B, jogam lenha na fogueira, sugerem outra forma de identificar o plasma e, se confirmados, poderão enriquecer a pesquisa do mundo atômico. Em julho, Marina Nielsen e Fernando Navarra apresentaram as conclusões numa reunião de especialistas na área, o Quark Matter, realizada em Nantes, na França, com mais de 600 participantes. Foram ouvidos com interesse.

Os experimentos que procuram gerar jota-psis e plasma prosseguem no Acelerador Relativístico de Íons Pesados (Rhic), construído nos Estados Unidos, com uma energia de colisão dez vezes maior que a do Cern. No Rhic, núcleos pesados como os de ouro atingem quase a velocidade da luz e se achatam como uma pizza, encolhendo 100 vezes no diâmetro, momentos antes de se chocarem. Mas só dentro de dois anos, com todos os detectores instalados, é que se poderá saber se é realmente possível formar o plasma de quarks e glúons.

Na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Cesar Vasconcellos procura desvendar o processo de formação de plasma por meio de uma forma alternativa, que dispensa os aceleradores: o estudo dos pulsares, objetos celestes compactos, com uma e meia massa solar condensada em apenas 10 quilômetros de raio, constituídos predominantemente de nêutrons. Também atuam nessa área, a chamada física de hádrons (hádron é qualquer partícula constituída de quarks), equipes das universidades federais do Rio de Janeiro (UFRJ) e de Santa Catarina (UFSC), além do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF).

Seja por meio dos aceleradores, seja por meio das estrelas, para os físicos dessa área – em que se destacam Frank Wilczek, do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), nos Estados Unidos, e Gerard’t Hooft, do Instituto de Física Teórica da Universidade de Utrecht, na Holanda -, as revelações que possam surgir da interação entre as partículas constituem a esperança de finalmente entender a massa das partículas e, em última instância, do próprio Universo.

Acredita-se que essa interação possa criar massa, já que as partículas constituem muito pouco da massa existente. Cada quark tem uma massa de 5 a 10 MeV (milhões de elétron-Volt, a unidade de massa das partículas atômicas), mas os três quarks de cada próton ou nêutron correspondem a apenas 5 milésimos da massa de cada uma dessas partículas. “A maior parte da massa dos prótons e dos nêutrons vem da interação dos quarks entre eles e com o vácuo que os cerca”, comenta Celso Luiz Lima, físico do grupo. “Quando interagem, quarks e antiquarks acionam um mecanismo de geração de massa, criando píons.”

Para apagar a impressão de que os píons surgem do nada, temos de entrar na essência do trabalho desse e de outros grupos que estudam o comportamento das partículas do interior do núcleo atômico. É uma inversão completa do conceito de matéria. “Matéria não é o que existe, mas o que falta”, anuncia Robilotta. “E o vácuo não é vazio, mas cheio.” O núcleo atômico, portanto, seria um defeito no vácuo – bolhas vivas cercadas por um vácuo denso, feito de partículas, tal qual as bolhas da água mineral ou do gel para cabelo. O que os difere é apenas o nível de energia: o vácuo é o estado de mínima energia possível, enquanto as bolhas – a matéria – representam um estado de energia mais alta.

“Se acreditarmos nessa idéia, conseguimos saber qual a energia gasta para três quarks cavarem um buraco no vácuo”, diz Robilotta, que calculou essa energia: é de 46 MeV, próxima do valor experimental. Essa abordagem de vácuo cheio, lançada pelo físico inglês Paulo Dirac (1902-1984), permite afirmar: do total da massa de um próton ou de um nêutron, estima-se que 90% se deve à energia cinética e potencial (a integração com o vácuo e a criação contínua de partículas), 7% ao fato de terem cavado um buraco no vácuo (os tais 46 MeV) e 3% à massa dos próprios quarks.

Agora, a maior parte da massa dos prótons e dos nêutrons pode ser atribuída à interação dos quarks com o vácuo. “Quarks isolados não existem, a não ser dentro dos buracos no vácuo”, ensina Lima. Quando quarks se juntam a antiquarks, podem formar um méson ou dar origem a um estado condensado cujas características são similares às da supercondutividade, um fenômeno que ocorre em certos materiais em baixas temperaturas.

Mas há outra possibilidade: “Quando um quark se une a outros dois, quetambém não conseguiram acoplar-se com antiquarks, eles empurram o vácuo, formando prótons ou nêutrons cujo interior é quase o vazio realmente vazio”, conta Lima. “Batendo nas paredes internas dessa bolha, os quarks perturbam o vácuo do lado de fora e criam os píons, as partículas das nuvens que envolvem os prótons e nêutrons.”Como num balanço contábil de uma empresa, as contas têm de fechar.

Não importa se na bolha, que representa um próton ou um nêutron, existam três quarks, quatro quarks e um antiquark ou cinco quarks e dois antiquarks: o resultado final tem de conter três quarks em excesso, como em uma simples adição, feita e refeita a todo momento num mundo que parece um imenso vazio: se o átomo tivesse 10 quilômetros, o núcleo teria 1 metro, os prótons e nêutrons, 10 centímetros e cada quark, 10 mil vezes menor, teria 1 centésimo de milímetro, o equivalente a uma ameba. Ali, como pessoas, prótons e nêutrons ganham ou perdem peso, alimentando-se de partículas.

O Projeto
Física de Hádrons; Modalidade Projeto temático; Coordenador Manoel Roberto Robilotta – Instituto de Física da USP; Investimento
R$ 141.660,00

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