Dados inéditos obtidos no Grande Colisor de Hádrons (LHC), da Organização Europeia para Pesquisa Nuclear (Cern), forneceram uma pista importante na procura pela origem da matéria escura, que compõe 85% de toda a matéria do Universo, mas cuja natureza é desconhecida. O experimento Alice, um dos quatro grandes projetos tocados no maior acelerador de partículas do mundo, situado nos arredores de Genebra, na Suíça, produziu evidências de que núcleos leves de anti-hélio, também chamados de antinúcleos de hélio, podem viajar longas distâncias no interior da Via Láctea e determinou a frequência com que esse tipo de antimatéria chegaria aos arredores da Terra. Segundo estudo publicado na segunda-feira (12/12) por membros do Alice na revista científica Nature Physics, metade desses núcleos de anti-hélio originados em processos associados à presença de matéria escura pode cruzar a galáxia sem ser destruído.
Os dados sinalizam que esse tipo bastante raro de antimatéria poderia ser usado no espaço como traçador da gênese da matéria escura, um dos maiores mistérios da cosmologia. “Nossos achados demonstram que a procura por núcleos leves de antimatéria vindos do espaço sideral é uma maneira poderosa de caçar a matéria escura”, disse, em comunicado de imprensa, o físico italiano Luciano Musa, do Cern e porta-voz do experimento, uma colaboração internacional que reúne 2 mil pesquisadores de 40 países, inclusive do Brasil. Instrumentos como o espectrômetro Alpha Magnetic, instalado na Estação Espacial Internacional, ou o envio de balões de observação podem, em tese, ser capazes de medir os núcleos leves de antimatéria e, por consequência, mapear melhor a presença de matéria escura. “O artigo é um trabalho multidisciplinar, que juntou física de partículas e cosmologia, pesquisadores experimentais e teóricos”, comenta o físico David Chinellato, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), membro do experimento Alice, que passa uma temporada de dois anos no LHC e é um dos autores do estudo.
Conforme explica a teoria física, a antimatéria é gerada simultaneamente à matéria, da qual é uma versão com algumas propriedades idênticas, como massa e energia, mas com carga elétrica e certos parâmetros quânticos de valor invertido. O elétron, por exemplo, é uma partícula com carga negativa. Seu par, a antipartícula pósitron, é positivo (essa antipartícula é usada na tomografia por emissão de pósitrons, exame conhecido como PET). Quando uma partícula colide com sua respectiva antipartícula, eles se aniquilam e produzem energia. Era de se esperar que a mesma quantidade de matéria e antimatéria deveria existir no Universo. No entanto, por motivos parcialmente desconhecidos, há um predomínio quase completo da matéria sobre a antimatéria, o que torna o Cosmo um ambiente letalmente inóspito para antipartículas . A novidade do trabalho no LHC é mostrar que os núcleos de anti-hélio sobrevivem muito mais do que parecia possível.
Dois processos são associados à produção de núcleos leves de antimatéria: colisões de alta energia entre os raios cósmicos e o meio interestelar, o espaço entre as estrelas de uma galáxia, que, apesar de parecer vazio, contém alguma matéria, em especial hidrogênio; e a fraca interação entre componentes das partículas da elusiva matéria escura. “O papel dos raios cósmicos na geração de antimatéria é documentado. O da matéria escura ainda é uma hipótese, prevista por vários modelos”, comenta o físico experimental Mauro Cosentino, da Universidade Federal do ABC (UFABC), que faz parte da equipe brasileira do Alice que assina o trabalho. “Mas, a priori, não é possível saber qual dos dois processos gerou um eventual núcleo de antimatéria detectado no espaço. O que o artigo faz é fornecer um parâmetro que pode ser útil para discriminar qual mecanismo teria produzido o antinúcleo.”
Os pesquisadores do Alice analisaram os resultados de colisões de prótons e núcleos de chumbo promovidas no LHC. Os choques geraram núcleos de um isótopo (uma forma) da antipartícula do hélio, o anti-hélio 3, composto de dois antiprótons e um antinêutron. Essa forma de antimatéria interage com a matéria que constitui os detectores do experimento. Nesse processo, parte desses antinúcleos desaparece e outra se mantém. Grosso modo, os detectores registram quantos núcleos de anti-hélio foram produzidos pelas colisões iniciais de prótons e núcleos de chumbo e quantos sobraram após a antimatéria interagir com a matéria. Dessa forma, os físicos determinaram a taxa de sobrevivência dos núcleos de anti-hélio nesse cenário. Em seguida, com o emprego de modelos computacionais, usaram esse valor para simular qual deveria ser a probabilidade de antinúcleos leves de hélio 3 criados na Via Láctea atravessar a galáxia sem serem destruídos e atingir as vizinhanças da Terra.
Para antinúcleos derivados da interação entre matéria escura, metade das antipartículas chegaria ao nosso planeta. No caso dos antinúcleos originados pelo contato dos raios cósmicos com o meio interestelar, entre 25% e 90% das antipartículas teriam capacidade de sobreviver e cruzar a Via Láctea. Apesar de os números gerados pelos dois processos poderem coincidir se a taxa de sobrevivência ficar em torno de 50%, a antimatéria oriunda dos raios cósmicos teria energias mais elevadas do que as provenientes da matéria escura. “Essa diferença permitiria distinguir qual é a fonte dos antinúcleos de hélio”, explica Chinellato. “Assim, teríamos uma assinatura energética da origem da antimatéria.”
Apenas 15% da matéria do Universo é composta pela matéria bariônica, “normal”, que forma as galáxias, estrelas e planetas visíveis em algum comprimento de onda. O restante é formado por um tipo de matéria invisível, a escura, que não reflete, absorve ou emite luz. Não se sabe de que é feita a matéria escura. Sua existência é determinada somente de forma indireta, pelo efeito enorme que sua força gravitacional do Universo.
Artigo científico
The Alice Colaboration. Measurement of anti-3 He nuclei absorption in matter and impact on their propagation in the Galaxy. Nature Physics. 12 dez. 2022.