HÉLIO DE ALMEIDAAntes tarde do que nunca: isso pode valer para muitas situações, mas foi fatal para a cidadania brasileira. “Foi com um atraso de 40 anos que se deu a chegada no Brasil do Estado de bem-estar social, a incorporação do paradigma dos ‘anos de ouro’ do welfare state, adotado pelos países capitalistas centrais logo após a Segunda Guerra Mundial. A aplicação dessa agenda, por meio da Constituição de 1988, surgiu na hora errada e vinha na contramão da nova agenda, neoliberal, que negava esse projeto”, explica Eduardo Fagnani, da Unicamp, autor da tese de doutorado Política social do Brasil (1964-2002): entre a cidadania e a caridade.
“O projeto de Estado de bem-estar social, que se anunciava na chamada Constituição Cidadã como a definiu Ulysses Guimarães, foi progressiva e calmamente destruído de 1990 em diante, em pequenas doses, e o ponto comum dos 40 anos analisados na tese é que, para os miseráveis, sempre se reservaram as sobras de um processo de crescimento que alçou o país ao rol de uma das maiores economias do mundo”, observa o pesquisador.
Nesse caso, o tarde significou nunca. “Verificam-se dois movimentos opostos da trajetória da política social brasileira entre 1964 e 2002. Um deles aponta para a estruturação das bases institucionais e financeiras típicas do welfare state em nosso país, num processo esboçado a partir dos anos 1930, com notável impulso nos anos 1970, na redemocratização, e desaguou na Constituição de 1988″, diz. “O outro aponta no sentido contrário: o da desestruturação daquelas bases. Após as primeiras contramarchas, nos últimos anos da transição democrática, a desestruturação da frágil cidadania conquistada em 1988 foi revigorada a partir de 1990”. Na travessia, que Fagnani divide em quatro etapas históricas, o Estado de bem-estar social transforma-se em distribuição de migalhas para os pobres.
Intervenção
O sistema social brasileiro começa a emergir nos anos 1930, mas ganha a sua primeira “cara”, feia por sinal, no período da ditadura militar, marcado pela implementação de uma estratégia de modernização conservadora, que potencializava a capacidade de intervenção do Estado. “Essa modernização possibilitou o aumento da oferta de bens e serviços para as classes de média e alta renda, mas o seu caráter conservador impediu que seus frutos fossem direcionados para a população mais pobre e tiveram impacto reduzido na redistribuição de renda”, analisa Fagnani.
Mas deixou marcas profundas na política social: um financiamento do gasto social de caráter regressivo; centralização do processo decisório no Executivo; privatização do espaço público; fragmentação institucional. A partir dos anos 1970 e mais intensamente no fim do regime, nos anos 1980, as forças de oposição começaram a formular uma agenda cujo núcleo era a construção de um efetivo Estado de bem-estar social, em que o MDB teve um papel de destaque como agente catalizador. Em 1984 esse ideário passa a ser assimilado pela chamada Frente Liberal, o bloco de dissidentes da base da ditadura, e, entre 1985 e 1986, pela retórica governamental da Nova República.
Agora a luta ocorria dentro do próprio Estado, provocando, em 1985, a criação do Ministério da Reforma e Desenvolvimento Agrário (Mirad) e, um ano depois, a instituição do seguro-desemprego. Pouco depois houve iniciativas de mudanças na previdência, na saúde, na educação e chegou-se mesmo a implantar um programa de ações emergenciais de combate à fome com os Programas de Suplementação Alimentar. Parecia que o Brasil caminhava para o “melhor mundo dentre os mundos possíveis”. Pangloss nos trópicos? A Constituição de 1988 parecia indicar esse caminho.
“Ela foi uma etapa fundamental, embora inconclusa, da viabilização do projeto de reformas socialmente progressistas. Pela primeira vez na história do país havia um embrião de Estado de bem-estar social, universal e equânime”, avalia o pesquisador. “Seu âmago residia nos princípios da universalidade, da seguridade social (em vez do seguro social, em que só tem direito quem contribui), da compreensão da questão social como um direito de cidadania, e não caridade ou assistencialismo clientelista”, avalia o economista.
Estávamos, enfim, como queria Voltaire, cuidando do nosso jardim. Mas o francês logo deu lugar à truculência hobbesiana e as primeiras contramarchas ocorreram logo em 1989, com a fragmentação da base da Aliança Democrática. “As forças que haviam servido de apoio para o regime militar, em especial o PFL, voltaram para o poder e, comandadas pelo então presidente José Sarney, iniciaram o processo de desestruturação do precário Estado de bem-estar social, recém-saído das gráficas do Congresso”, observa o autor.
O Mirad foi extinto e perdeu-se, diz Fagnani, de fazer, como nos países capitalistas avançados, a necessária reforma agrária no Brasil. No Ministério da Saúde os defensores do Sistema Único de Saúde (SUS), visto pelo pesquisador como um dos maiores programas gratuitos de saúde do mundo, foram substituídos e assim por diante. “O governo retornou ao velho caminho da ditadura, marcado pelo clientelismo, centralização financeira, assistencialismo e privatização do público. A tese que surge é que o país seria ‘ingovernável’ com a nova Constituição, argumento usado pelos segmentos retrógados cujos privilégios haviam sido arranhados por ela”. O jardim murchava.
A área econômica dos sucessivos governos pós-ditadura seria o herbicida a matá-lo. “As equipes econômicas sempre tinham argumentos técnicos sobre a inviabilidade financeira das propostas parlamentares e o gasto social brasileiro, aplicado em políticas que asseguravam direitos universais conquistados na Constituição, foi se tornando, progressivamente, o vilão da estabilidade da moeda e das contas públicas. Além de ‘elevado’, ele seria apropriado por uma casta de ‘velhos e vagabundos’, em detrimento da educação das crianças”, conta o pesquisador. O ambiente externo era favorável a esse tipo de pensamento. Estava em curso a Terceira Revolução Industrial, que exigia competitividade e produtividade e pregava a contenção neoliberal na direção do Estado. No Brasil, argumenta Fagnani, esse movimento, que era desfavorável à inclusão social e à redução das desigualdades, aterriza num momento em que o modelo de Estado nacional desenvolvimentista se esgotava. Chegou a contra-reforma e o seu inquisidor foi Fernando Collor.
“Os princípios que orientam o contra-reformismo neoliberal na questão social eram antagônicos aos da Carta de 1988: o Estado de bem-estar social é substituído pelo Estado mínimo: volta o seguro social, a focalização, o Estado regulador com suas privatizações e os direitos trabalhistas são destituídos pela sua flexibilização. A Constituição Cidadã vira vilã”. A fragilidade da Carta foi a força de Collor. O texto constitucional delimitava apenas princípios gerais e era necessário a regulamentação da legislação complementar.
“A intenção clara do governo, ao lado das elites, era obstruir ou desfigurar essa legislação usando manobras que incluíram descumprimento de regras constitucionais, esconsideração de prazos, interpretação espúria de dispositivos legais e descaracterização das propostas por veto do presidente”, lembra Fagnani. O que se pretendia, acredita o autor, era aproveitar a revisão constitucional, prevista para 1993, para jogar tudo na lata do lixo. Mas o impeachment, em 1992, impediu o movimento direto. “A ‘modernização’ da Constituição foi adiada, pois não havia clima para mudanças após toda aquela movimentação popular, e implementada em pequenas doses, em sucessivas contra-reformas, por leis tópicas, eficazes, entre 1993 e 2002”. Homeopaticamente.
Pobreza
Segundo Fagnani, a estratégia do conta-gotas funcionou bem, mas acarretou o aumento da crise social, observada, em especial, na desestruturação do mercado de trabalho e seus efeitos sobre o emprego e as condições de vida da população. Além disso, lembra, houve também uma limitação à expansão do gasto público social e em infra-estrutura para ampliar o espaço de pagamentos de juros da dívida pública, que, diz, recebeu a denominação impertinente de responsabilidade social. Cria-se no Brasil a mentalidade de que a “pobreza está universalizada” e pouco se pode fazer, além de ações filantrópicas, em acordo com o setor privado, para ajudar os miseráveis a sobreviverem como tal.
“O interesse em manter o status quo social foi determinante para termos perdido a chance magnífica de implantar um Estado de bem-estar social”, lamenta. “O que pagamos em três dias de juros das dívidas interna e externa é o mesmo que o Brasil gasta em um ano com a reforma agrária. Vinte dias de juros é o que gastamos em dez anos de habitação popular e o mesmo vale para o saneamento básico”.
Embora sua tese não chegue até o governo Lula, Fagnani acredita que “o espectro do desmonte do sistema de proteção social de caráter universal e igualitário em favor do Estado mínimo, marcado pela crescente importância de programas de transferência de renda, continua a rondar os bastidores do poder do Brasil”. “Essa percepção apóia-se na constatação do contínuo estreitamento das possibilidades de financiamento do gasto social e no não menos formidável poder que as instituições internacionais de fomento ainda detêm na definição do destino da nação. Sem falar no conservadorismo das nossas elites políticas e econômicas e na tentação do caminho fácil do assistencialismo e seu uso clientelista e eleitoral, revigorado na atual conjuntura de fragilização do governo”. O “me dá um dinheiro aí” está forte como nunca.
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